CÊNICAS
Professor pede que alunos o xinguem e o resultado é surpreendente
Obra da feminista bell hooks ganha vida em montagem que questiona escola e sociedade

Por Maiquele Romero*

A vida de uma turma de ensino médio vira de ponta-cabeça quando um novo professor de filosofia traz uma proposta extraordinária: pede que os alunos lhe xinguem em sala de aula. A partir desse gesto aparentemente grosseiro, um mundo de pensamento crítico invade a rotina desses adolescentes – com consequências tanto libertadoras quanto dolorosas. É nesse ponto que começa a trama de Ensinando a Transgredir, em cartaz no Teatro Molière, na Aliança Francesa, todas as sextas até 26 de setembro.
Inspirado na obra da escritora feminista bell hooks (em minúscula mesmo) e dirigido por Marconi Arap, o espetáculo é uma realização do Teca Teatro e Outras Artes, grupo baiano criado em 2003.
A companhia tem como missão a popularização do teatro entre crianças e jovens, estimulando a produção de uma arte que sensibilize e provoque reflexão em todas as idades.
Mais do que uma adaptação, a montagem nasce também da experiência do Teca como escola de teatro de ensino não formal, que tem como fundamento o entusiasmo, entendendo que aprender pode ser prazeroso, desafiador e transformador.
Apresentado como um exercício de colagem, o espetáculo reúne passagens de hooks, textos do grupo e referências de autores como o português Tiago Rodrigues, em O Coro dos Maus Alunos, e o alemão Bertolt Brecht, que consolidou o teatro épico e político no século XX.
No palco, transgressão e confusão aparecem como motores do aprendizado neste teatro político. “Eu espero que o público leve dúvidas para casa, que saia questionando tudo, que pense, sonhe e continue refletindo no dia seguinte”, afirma Arap.
Sua fala ecoa justamente o que a peça se propõe a fazer, aparecendo inclusive no texto do professor em uma passagem emblemática: “vocês me acusam de confundir os jovens, mas sem a confusão não se ensina, não se avança”.
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Educação e liberdade

A busca do espetáculo por deslocar certezas encontra eco no pensamento de hooks, que propôs uma educação crítica, humanizada, interseccional e feminista, fortemente influenciada pelo pedagogo Paulo Freire. Ambos viam a educação como prática da liberdade, baseada no amor, no diálogo e na transformação social.
Para Arap, no entanto, a liberdade é sempre tensionada. “A liberdade é uma utopia, tendo em vista que essa história de livre-arbítrio é uma falácia, não existe livre-arbítrio sobretudo no capitalismo. Ainda assim, a gente é capaz de fazer escolhas que podem determinar como vai ser a nossa vida”.
O diretor também chama atenção para a precarização do trabalho docente: professores sobrecarregados, sem tempo para pesquisa, cultura e reflexão, o que enfraquece o entusiasmo e abre espaço para o desamor em sala de aula.
No elenco, a atriz e educadora Mariana Freire dá voz às palavras de hooks. Leitora assídua da autora desde 2020, ela afirma que a obra atravessa tanto sua prática como educadora quanto sua vida pessoal.
Ao levar esses textos ao palco, Mariana destaca a urgência de repensar a educação em tempos de crise. “Todos nós somos forjados dentro de uma educação autoritária, machista, patriarcal. Trazer essa educação humanizada, feminista, que pensa no outro com empatia e respeito é extremamente urgente”, diz.
A juventude também está representada em cena. Cecília Vasconcelos, de 22 anos, estudante de psicologia, interpreta uma aluna que vive sua própria forma de transgressão.
“Minha personagem está no grupo das meninas mais populares, mas é mais retraída, espera a reação dos outros para se expressar. Acho bonito como ela expõe a mudança nela causada pelo professor. Ela foge desse roteiro que os outros esperavam dela, e acho que isso é muito transgressor: se permitir ser o que é”, afirma Cecília.
Sua vivência recente no ensino médio atravessa a leitura do texto. Marcada pelo peso de uma formação voltada quase que exclusivamente para exames seletivos e pela experiência estudantil em tempos de polarização política, ela percebe o texto refletir sua geração.
“Acho muito importante lembrar que existem outras coisas para além de um vestibular. O professor tem que influenciar que os jovens pensem, que façam e deem sentido à vida deles”, relata a atriz.
Projeto coletivo

Ensinando a Transgredir abre a temporada do projeto ‘1, 2, 3, Salve Todos!’, uma iniciativa coletiva capitaneada pelo Grupo Teca voltada à produção de espetáculos e leituras dramatizadas de autores contemporâneos.
O projeto nasce da convicção de que teatro e educação são práticas políticas inseparáveis. Para Arap, não há salvação fora da política, pois os valores que moldam a sociedade resultam do debate coletivo. “A educação é transformadora e só pode haver transformação se houver pensamento, debate e política”, resume Marconi.
Além de Ensinando a Transgredir, o projeto segue em outubro com o espetáculo A Revolta dos Pinguins (título provisório), com texto inédito de Luciana Comin e direção de Diogo Watanabe.
Em novembro, estreia Cartas de Gaza, com direção de Sérgio Farias - cuja dramaturgia parte de monólogos de crianças e adolescentes que faziam teatro na Faixa de Gaza em 2008 e 2009 - em parceria com o ator Camilo Fróes.
Entre entusiasmo, crítica e confusão, o espetáculo – e o projeto como um todo – não oferece respostas prontas, mas convida a plateia a formular novas perguntas. Uma convocação para educadores, estudantes e espectadores refletirem sobre a urgência de uma educação capaz de transgredir limites e reinventar o mundo comum.
Ensinando a Transgredir / 12, 19 e 26 de setembro / 20h / Teatro Molière, na Aliança Francesa, Ladeira da Barra / R$ 50 (inteira) e R$ 25 (meia) / Vendas: Sympla
*Sob supervisão do editor Eugênio Afonso
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