VISUAIS
Salvador ganha sede dedicada a preservar memórias negras e formar novos fotógrafos
Nova galeria baiana vira ponto de encontro

Por Manoela Santos*

No livro Cultura e Representação, o sociólogo Stuart Hall apresenta uma análise crítica dos efeitos da mídia na sociedade. Para ele, é fundamental questionar as imagens e compreender o que elas representam, quem se beneficia dessas representações e quais grupos permanecem à margem. Foi também por compreender a disputa nas representações que nasceu o Zumví Arquivo Afro Fotográfico, um projeto dedicado a valorizar e preservar memórias negras que, por muito tempo, foram apagadas da história oficial.
Agora, em celebração aos 35 anos, o Zumví inaugura sua nova casa no Rio Vermelho e ativa uma programação especial entre terça, 25, e sábado, 29. As atividades serão distribuídas entre o Pelourinho, onde permanece a primeira sede do arquivo, e o Rio Vermelho. As ações formativas serão gratuitas, e a exposição terá acesso livre no dia da abertura pública.
Com curadoria de Lázaro Roberto e da cantora Luedji Luna, o projeto celebra e articula acervo, educação e acessibilidade em uma nova fase institucional. A celebração combina experiência expositiva, debates e mediação com o público, reforçando o papel do arquivo como plataforma de memória, formação e circulação de narrativas negras.
A nova casa no Rio Vermelho consolida um projeto que integra galeria de exposições temporárias, laboratório/estúdio, atividades educativas e mediação, com vocação para formar público e oferecer ferramentas de preservação e ativação do acervo em diálogo com parceiros locais, nacionais e internacionais.
Lázaro, idealizador do Zumví e com quatro décadas dedicadas à fotografia, explica que o novo espaço terá múltiplas funções: sede administrativa, laboratório analógico – “que é a minha fotografia”, como diz –, e área expositiva para fotógrafas e fotógrafos negros. “Desde o início, eu sempre tive dificuldade de encontrar espaços para expor. Então, tudo o que eu passei nesses últimos 40 anos, eu quero agora transformar em possibilidade. Quero que este espaço preencha esse vazio”, afirma.
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História do Zumví
Nascido da organização de fotógrafos negros que, desde os anos 1990, vêm tensionando lacunas históricas de representação, o Zumví construiu um repertório crítico sobre a cidade e seus imaginários, festas populares, ritos de matriz africana, política, cotidiano, afetos e estética.
Lázaro relembra que o arquivo surgiu quando ele já acumulava mais de dez anos de atuação. “Essa história começa quando eu percebi que não era visto na relação com os fotógrafos da cidade. A maioria era branca, muitos ligados a jornais, e eu não via fotógrafos negros”, conta. Esse apagamento o levou a questionar seu lugar e seu propósito. “Chegou o momento em que eu entendi por que eu fotografava e que tipo de fotografia eu fazia. Ali eu percebi que estava produzindo documentação”, diz.
O sentimento de solidão era constante, pois, como ele afirma, não havia outros “pares” para conversar sobre a fotografia que construía. A resposta foi criar um grupo de fotógrafos negros para discutir e fortalecer essa produção. “Aí nasce o Zumví, justamente para isso: para falarmos da nossa fotografia e nos tornarmos visíveis. Queria que nosso arquivo fosse um lugar onde as pessoas pudessem encontrar essas imagens. Porque não tínhamos campo para o que estávamos fazendo”, afirma.
Trinta e cinco anos depois, Lázaro acredita que o Zumví segue atual e necessário, especialmente para enfrentar o apagamento das memórias negras. “A gente não tem fotos dos nossos avós. Eu criei esse arquivo para isso: para guardar nossa memória”. Ele acrescenta que qualquer pessoa pode começar seu próprio arquivo: “Não é um bicho de sete cabeças. Basta estar preocupado com a memória da sua família, do seu terreiro de Candomblé, da sua associação de bairro. Sem memória, a gente não chega a lugar nenhum”.
O Zumví reúne hoje um acervo fundamental para compreender a trajetória do movimento negro no Brasil. Segundo Lázaro, é um dos acervos mais procurados por pesquisadores, professores, universidades e grupos de trabalho, e que, apesar de recente, “o movimento negro tem de 40 a 50 anos”, observa, oferece uma base histórica indispensável.
Ele gostaria que essa documentação fortalecesse a aplicação da Lei 10.639 e defende que essas fotografias “deveriam estar dentro das escolas”. O idealizador garante que a exposição atual também apresenta parte dessa memória e que o acervo seguirá como referência: “As pessoas ainda vão conhecer muito da história a partir do Zumví”.
Trocas de saberes
O desenho curatorial desta edição, ancorado em obras e documentos-chave do arquivo, propõe um percurso em três frentes: o valor documental e poético das imagens produzidas por e sobre a população negra; os modos de leitura e de recontextualização que arquivos vivos possibilitam, do analógico ao digital; e a infraestrutura necessária para garantir preservação, circulação qualificada e acessibilidade. Ao apostar nessa tríade, o Zumví reafirma sua identidade como um quilombo visual: espaço de encontro, pesquisa e produção que conecta gerações, territórios e repertórios.
A programação se divide entre o Pelourinho e o Rio Vermelho, entre os dias 25 e 29 de novembro. No Pelourinho, as atividades acontecem na Rua Gregório de Matos, 29. Nos dias 25 e 26, sempre às 17h, serão realizadas rodas de conversa. No dia 25, o tema será “Questão das religiões de matriz africana, artes visuais e a fotografia”, com Tacun Lecy, Ravena Sena e Junior Pakapym, sob mediação de Hugo Martins.
Já no dia 26, também às 17h, acontece no Rio Vermelho o debate “Instituições negras e a preservação das memórias” , com representantes da Sociedade Protetora dos Desvalidos, Irmandade do Rosário dos Pretos, Centro Digital de Documentação e Memória Olodum e Edson Cardoso (Irohin), mediado por Vilma Neres.
No Rio Vermelho, a programação será sediada na nova casa do Zumví, entre os dias 26 e 29. A abertura, com a exposição inédita Zumví 35 Anos, acontece no dia 26, às 20h, exclusiva para convidados. No dia 27, a exposição será aberta ao público no mesmo horário. No dia 28, às 17h, ocorre a roda de conversa “Do analógico à IA – Produção de imagens e novos horizontes”, com Mayara Ferrão, Lita Cerqueira e Marcelo Ricardo, sob mediação de Beth Pontes.
A nova casa no Rio Vermelho chega para complementar o trabalho da galeria no Pelourinho, onde se concentram as atividades de preservação, catalogação e higienização do acervo, processos impossíveis de serem realizados à beira-mar, por causa do salitre. Já no novo espaço funcionarão o administrativo, o laboratório analógico, que resgata sua prática fotográfica original, e uma galeria voltada especialmente para fotógrafas e fotógrafos negros que buscam espaço para expor.
Casa nova, novos olhares
Ao refletir sobre suas quatro décadas de trabalho, Lázaro observa mudanças profundas na fotografia da cidade. Ele lembra que, antes, a produção visual sobre Salvador era repetitiva. “Antigamente, a fotografia era muito resumida à baiana e ao capoeirista”. Hoje, porém, vê o surgimento de muitos fotógrafos negros que registram a cidade a partir da ancestralidade, da memória e de novas narrativas.
Ele também nota transformações na estética dos corpos negros: “O cabelo é um marcador do racismo. Sou de uma época em que as mulheres usavam lenço para esconder o cabelo e os homens tinham que seguir um padrão. Hoje, Salvador está com outra cara. Homens e mulheres buscam sua identidade o tempo todo”.
Para ele, essa mudança “veio para ficar”.
Sobre a exposição, ele diz que o público mais jovem “vai dar um passeio na história”, pois o conceito do trabalho é trazer lugares e pessoas, comparando a Salvador de 40 anos atrás com a de hoje. “Quem é da minha geração vai voltar no tempo; quem não é, vai se surpreender”, conclui.
Mais informações no Instagram e no site: @zumviarquivofotografico e zumvi.com.br
*Sob supervisão do editor Chico Castro Jr.
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