O FUTURO CHEGOU?
Uso da Inteligência Artificial na arte avança, preocupa e gera debates
Portal A TARDE ouviu artistas e especialistas sobre o assunto, repleto de desafios e inquietações
Por Matheus Calmon
Medo, entusiasmo, dúvida e curiosidade são alguns dos sentimentos que norteiam a sociedade quando o assunto é tecnologia. A mais recente delas, a Inteligência Artificial, tem revolucionado os espaços por onde tem passado, e a lista desta 'viagem' só faz crescer.
Apesar de estar em alta, as primeiras impressões do mundo com o tema são antigas. Os primeiros contatos do mundo com inteligência artificial na cultura popular se deram no século XX, quando a ficção científica começou a explorar a ideia de máquinas inteligentes e autônomas.
Avançando um pouco na história, aplicativos e recursos de entretenimento, como os filtros do Snapchat, rede social lançada em 2011, permitiam que os usuários aplicassem efeitos interativos em suas fotos e vídeos, como máscaras faciais animadas, reconhecimento facial e outras modificações de imagem.
A arte das deepfakes: a fronteira entre o real e o irreal
Essa introdução da IA na vida cotidiana foi uma demonstração inicial do potencial da tecnologia para criar experiências divertidas e interativas. Outro caso mais recente aconteceu na ação comercial comemorativa pelos 70 anos da Volkswagen, no início de julho. Com o objetivo de retratar as gerações atravessadas, a empresa usou ferramentas da inteligência artificial e promoveu um encontro entre Elis Regina, morta em 1982, e sua filha, a também cantora Maria Rita.
Uma das ferramentas que possibilitam a criação virtual próxima da realidade de algo de no mundo real não aconteceu é a deepfake, que utiliza algoritmos avançados para criar vídeos ou áudios falsos, nos quais pessoas são manipuladas digitalmente para parecerem fazer ou dizer coisas que nunca aconteceram.
Foi exatamente através desta tecnologia, por exemplo, que Lula e Bolsonaro fizeram um dueto cantando Evidências, de Chitãozinho & Xororó. Na verdade, e obviamente, este dueto nunca aconteceu, mas o deepfaker Bruno Sartori fez a parceria musical inusitada ganhar vida.
A deepfake está em debate atualmente em Hollywood. Em meio à greve de atores e roteiristas, a SAG-AFTRA, Sindicato dos Atores de Hollywood, afirmou que os estúdios propuseram que os atores pudessem ter suas imagens escaneadas e vozes gravadas.
Em resumo, um ator ou atriz forneceria sua imagem e voz durante um dia e o estúdio poderia criar dezenas de filmes, séries e outras produções sem precisar pagar pelo trabalho, tendo em vista que estaria sendo realizado pela cópia virtual.
Há também o debate sobre a preparação da sociedade para lidar com esta tecnologia. Na dramaturgia, Brisa, personagem da novela global "Travessia", interpretada por Lucy Alves, teve sua vida destruída após dois amigos brincarem de colocar o rosto dela na imagem de uma sequestradora de crianças.
Na vida real, uma pesquisa da Accenture Technology Vision 2022, intitulada Meet me in the metaverse, aponta que 65% dos consumidores em todo o mundo não sabem reconhecer ou identificar vídeos deepfakes ou conteúdo sintético.
Como é que você regulamenta isso? Como é que prova que essa inteligência artificial pode estar se utilizando da marca autoral de um outro autor?
Questões e Discussões
Thoran Rodrigues, CEO e fundador da BigDataCorp, maior empresa de dados da América Latina e principal especialista em inteligência artificial do Brasil, cita duas grandes discussões que permeiam o debate sobre o uso da tecnologia na arte.
A primeira é sobre quem é dono da nossa versão digital. A segunda é quanto a produção de conteúdo. "O que me dá o direito de copiar o estilo de uma outra pessoa, de usar o algoritmo pra copiar um estilo? Então, você tem uma discussão também sobre essa questão do direito de propriedade, ou do direito autoral em cima do conteúdo que é novo, que não é simplesmente uma réplica de alguma coisa que já existe".
Ele pontuou que no mundo onde as redes sociais fazem com que conteúdos atinjam grande circulação em segundos, surge o desafio da diferenciação e da identificação entre as artes digitais e as humanas.
"Dado que esses modelos de inteligência artificial permitem a gente produzir o conteúdo num volume muito grande, é cada vez mais importante você ter bem mapeado de onde o conteúdo está vindo e como que você vai trabalhar com ele".
"O lance da propagação rápida da informação é que do mesmo jeito que é fácil você propagar coisas interessantes, relevantes, também é muito fácil você propagar mentiras. É importante você ter uma forma simples de identificar o conteúdo que foi produzido por uma pessoa - e quem foi que produziu aquele conteúdo - versus um conteúdo produzido por um algoritmo".
Para Thoran, este é, inclusive, um dos maiores desafios enfrentados. Ele considera que a sociedade vive um momento de transformação do que é possível.
"Isso é muito legal, é muito diferente. Hoje a gente tem tecnologia para treinar um modelo de inteligência artificial usando essas técnicas que criam uma réplica digital sua. Quer dizer que consegue responder da forma como você responderia ou de alguma coisa que é próxima o suficiente da forma como você responderia pra enganar alguém que te conhecesse".
Thoran pontua que assim como outras tecnologias, a inteligência artificial pode democratizar a produção de conteúdo. "A gente caminha pra novos conceitos, novas interpretações de vida, novas formas de vida, novas formas de viver. Isso vale tanto na arte quanto em em qualquer que seja a área".
Ele lembra que o momento atual é propício a aprender e se adaptar. "Sempre vão aparecer outros trabalhos. E o próprio ritmo de mudança sempre é menor do que a gente estima. A gente precisa entender e aprender a usar a inteligência artificial como uma ferramenta de produtividade, como a gente aprendeu a usar tantas outras".
Teste de réplica digital com Luís Miranda
O Portal A TARDE treinou um modelo de inteligência artificial, de forma simples e amadora, a responder fingindo ser o ator e diretor Luis Miranda, que vive o Eraldo na série 'Encantado's', da GloboPlay. Após alimentar a base com informações sobre o baiano, perguntamos sua opinião sobre o avanço da inteligência artificial na arte. Confira a resposta do Luis Miranda virtual:
"É algo fascinante e repleto de possibilidades criativas. A IA tem o potencial de ser uma ferramenta inovadora para os artistas, permitindo-nos explorar novas formas de expressão e experimentar ideias que talvez não fossem possíveis de outra forma".
O robô afirmou ainda que a tecnologia poderia ser usada para criar efeitos especiais e cenários no teatro e ajudar os músicos na composição e criação de canções. "A criatividade e a emoção genuína que vêm da expressão humana são fundamentais e insubstituíveis".
O Portal, então, conversou com o próprio Luis Miranda, desta vez o real, no instante de pausa de uma gravação. "Eu acho que toda a ciência que é utilizada para salvar pessoas, salvar vidas, melhorar a tecnologia, a qualidade da vida humana, é absolutamente bem-vinda. Depois disso, é uma coisa que a gente tem que tomar cuidado sempre, principalmente quando diz respeito a envolver isso com arte e criatividade humana. Então, há de ser patrulhada, vigiada e controlada".
Mais cuidadoso do que a sua "versão digital", o ator contou também que avalia o avanço da inteligência artificial na arte com cautela e defendeu a existência de controle governamental. "Perigosa, preocupante e tem que ser controlada, vigiada, legislada. Tem que estar na lei", disse Luis.
Cineasta e roteirista baiana, Ana do Carmo reflete que antes, o que parecia distante nos filmes de ficção, hoje está mais próximo. Ela pontua que, assim como em Hollywood, o Brasil também discute questões sobre direito autoral há muito tempo, bem como salários justos, sobrecarga de trabalho, a regulamentação e a ética.
"Há muitas experiências já com o uso de inteligência artificial na arte de maneira geral. Muitos roteiristas, inclusive, têm utilizado o Chat GPT como ferramenta de pesquisa. O problema é quando as pessoas criam essa expectativa de que a inteligência artificial é capaz de substituir o artista. Então, essa é a minha preocupação".
Ana afirmou que quando se popularizaram os apps de geração de imagens, a questão era sobre a origem das marcas autorais geradas pela IA. Ela defende a ampliação dos debates e também é a favor da regulamentação da tecnologia.
"Como é que você regulamenta isso? Como é que prova que essa inteligência artificial pode estar se utilizando da marca autoral de um outro autor? Então, nesse sentido, é muito urgente que a gente discuta e regulamente, conversando justamente não só com as instituições privadas, os grandes canais de streaming, mas também com o estado?"
No caso do Brasil, Ana sugere que entender as especificidades de cada região é fundamental. "O Brasil é um país muito macro e existem diferentes demandas quando a gente fala em mercado de trabalho, ética e precarização do trabalho. E aí a gente que está nessa interseccionalidade, sobretudo pessoas negras, pessoas LGBTQIAPN+, pessoas indígenas, pessoas nordestinas, pessoas do norte... Como é que a gente pode se fortalecer se entendendo enquanto classe e entendendo quais são os nossos direitos no mercado de trabalho, assim como qualquer outra área?".
Cofundadora da produtora audiovisual Saturnema Filmes, Ana explica que a empresa nasceu fruto da vontade de ocupar um espaço historicamente negado. "Quando a gente se torna donos dos meios de produção a gente se afasta cada vez mais do medo de ser sugado pelo mercado, de ficar refém desses meios de produção que eles criam e das novas metodologias que eles recriam e a gente se aproxima cada vez mais do poder de decisão".
Ela conta que tem buscado utilizar a tecnologia nas suas rotinas, mas alerta que é necessário atenção, tendo em vista que o desenvolvimento foi realizado por outro ser humano.
"No meu dia a dia, no trabalho, eu tenho incorporado algumas ferramentas de inteligência artificial que tem me auxiliado em fazer pesquisas. Muitas vezes no Google eu me deparo com mil fontes diferentes e em alguns aplicativos você consegue ter um acesso muito mais filtrado a essas informações".
"Não tem como eu dizer que através de uma uma fonte de inteligência artificial eu vou conseguir a melhor fonte de pesquisa para todos os assuntos e muitas vezes, ainda pensando em tempos de fake news, é muito fácil que recursos de inteligência artificial sejam manipulados pra que pessoas tenham acesso a informações deturpadas".
A gente caminha pra novos conceitos, novas interpretações de vida, novas formas de vida, novas formas de viver. Isso vale tanto na arte quanto em em qualquer que seja a área
Legislação brasileira e os desafios da arte com IA
A Dra. Patricia Peck, CEO e sócia fundadora do Peck Advogados e advogada especializada em Direito Digital, explica que a legislação brasileira tem pontos que se enquadram nesse contexto, tanto na legislação civil quanto na Lei de Direitos Autorais, que regulam o direito de imagem e os direitos morais de autores e intérpretes.
"Quando se usa IA na produção artística, devemos nos atentar aos direitos autorais, ao modo como a IA foi treinada e com uso de que materiais (fontes de dados), se há remuneração ou autorização de um artista para que sua obra seja usada no treinamento da IA, se a criação da IA não pode ser entendida como plágio, entre outras questões, até mesmo éticas".
Ela pontua, no entanto, que não há legislação específica que regule o uso de deepfakes na criação artística. "É um assunto muito novo. Nosso país ainda não conseguiu sequer chegar a um consenso sobre os pontos e a abordagem da Marco legal Da IA. O que podemos fazer por enquanto é nos embasar na lei de direitos autorais e nas questões de propriedade intelectual já normatizadas", afirmou.
Ela citou o Enunciado 670 da IX Jornada Direito Civil da CJF: Art. 11 da Lei n. 9610/1998, que diz: "Independentemente do grau de autonomia de um sistema de inteligência artificial, a condição de autor é restrita a seres humanos".
Peck frisa que mesmo após a morte, o direito à imagem e à honra da pessoa falecida têm proteção legal e pontua que o aumento de casos judiciais nos EUA sobre o reconhecimento de direitos autorais para obras criadas por IA induz à reflexão e debate sobre as novas possibilidades de se enquadrar o direito de autor a um sistema de inteligência artificial.
"Não devemos ter medo da inovação, tampouco cerceá-la, mas podemos orientar o seu uso para evitar desvirtuamento e para que seja benéfico ao setor".
É uma coisa que a gente tem que tomar cuidado sempre, principalmente quando diz respeito a envolver isso com arte e criatividade humana. Então, há de ser patrulhada, vigiada e controlada
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