57ª EDIÇÃO
Filmes desafiadores são destaque nos últimos dias do Festival de Brasília
Primeiro foi exibida a produção pernambucana ‘Salomé’, dirigida por André Antônio
Por Rafael Carvalho | Especial para A Tarde*
Ficaram para os últimos dias os filmes mais disruptivos da mostra competitiva de longas do 57º Festival de Brasília. Primeiro foi exibida a produção pernambucana ‘Salomé’, dirigida por André Antônio, jovem realizador que chega a seu segundo longa apresentando segurança e vigor criativo.
Leia também:
>> Diretora afirma que ‘Ainda Estou Aqui’ está quase garantido no Oscar
>> Ator negro é cotado para série de Harry Potter e público critica
>> Buscas sobre ‘Ainda Estou Aqui’ e ditadura militar crescem no Google
O filme acompanha o retorno de Cecília (Aura do Nascimento) para casa, depois de se tornar uma ícone da moda em São Paulo. É recebida pela mãe (Renata Carvalho) e amigos próximos, mas logo se envolve com um rapaz misterioso da vizinhança, João (Fellipy Sizernando).
Nas festas e baladas alternativas de Recife, os dois iniciam um namoro tórrido e ele oferece a ela um estranho líquido verde para cheirar como entorpecente. Cada vez mais envolvida na relação, Cecília adentra um universo onírico e que se mostra cada vez mais perigoso. Logo descobriremos que o rapaz faz parte de uma misteriosa seita que cultua a mítica figura bíblica de Salomé, cujo retorno é esperado ao mundo contemporâneo.
André Antônio faz de ‘Salomé’ um filme de marca muito única. Ele cria um universo entre o místico e o horror, também passando pelo melodrama, banhado em cores quentes e luz neon, sem medo de enveredar pela fantasia ou de cair no ridículo.
Aprofunda-se ainda na cultura queer e nas vivências de pessoas LGBT+ daquele microcosmo, sem fazer disso uma bandeira meramente militante. A própria protagonista é uma mulher trans, mas o filme não precisa discutir a questão abertamente. A simples presença desses corpos em tela, explicitando seus desejos sem constrangimentos, perfaz uma postura política forte o suficiente como algo desafiador das normatividades.
Tais elementos já estavam presentes no longa de estreia do diretor, intitulado “A Seita”. Agora ele amadurece muitas dessas ideias e consegue criar uma roupagem consistente, com um roteiro mais coeso e redondo. O filme possui uma cadência mais lenta e, num filme de duas horas, cria um ritmo mais arrastado. No entanto, até isso faz parte da assinatura inebriante do jovem realizador pernambucano.
Petardo político
Para finalizar a mostra competitiva, o festival deixou para o último dia de competição o novo longa do mestre Ruy Guerra, dessa vez dividindo a direção com Luciana Mazzotti. Com ‘A Fúria’ eles resgatam os personagens e os embates sociopolíticos já descortinados nos filmes anteriores de Guerra, ‘Os Fuzis’ (1964) e ‘A Queda’ (1977).
‘A Fúria’ é, portanto, a formatação do que agora se torna uma trilogia, mas difere bastante dos outros dois filmes, tanto em termos estéticos, como na maneira de endereçar um discurso político muito direto e incisivo.
O tempo presente em que o filme foi feito, mais as contradições e as arbitrariedades da vida política brasileira e seu circo de aberrações e infâmia dos últimos anos, moldaram uma narrativa que se distancia demais dos outros dois filmes predecessores. ‘A Fúria’ foi filmado em estúdio, os personagens interagem entre si dentro de salas com iluminação artificial, projetada como numa instalação, e a própria dramaturgia e o gestual dos atores são teatrais e farsescos
Na trama, Mário (vivido aqui por Ricardo Blat, depois de ter sido interpretado nos filmes anteriores por Nelson Xavier) retorna do mundo dos mortos para se vingar de Salatiel (Lima Duarte), agora um influente e desprezível político, junto com seu comparsa Feijó (Daniel Filho). Do lado da esquerda progressista, a deputada Petra (Grace Passô) pretende confrontar os poderosos e subir ao poder.
O filme lida com os jogos de influência e as articulações políticas de cada lado, mas faz isso do modo mais explícito e carregado possível. Não há lugar para sutilezas. Os personagens explicam seus panos e anseios a todo instante, tudo está claro e é jogado na cara do espectador sem meias palavras.
É como se, chegado nessa idade – o cineasta, nascido em Moçambique, mas radicado no Brasil desde o final dos anos 1950, completou 93 anos –, Guerra não tivesse mais tempo e disposição para alegorias ou entrelinhas. Pode ser uma forma de diálogo direto com o público, mas com isso ‘A Fúria’ se torna também um tanto óbvio ao cair nos lugares comuns do discurso politizado e militante.
*O jornalista viajou para Brasília a convite da organização do evento.
Compartilhe essa notícia com seus amigos
Cidadão Repórter
Contribua para o portal com vídeos, áudios e textos sobre o que está acontecendo em seu bairro
Siga nossas redes