CRÔNICA
A noite em que um desconhecido me ofereceu uma profecia gratuita no bar
Leia a crônica da Muito deste domingo, 22
Por Evanilton Gonçalves*

Era uma sexta-feira à noite comum. No entanto, um homem que nunca vi antes se agachou ao lado da mesa do bar em que eu estava e me encarou. Sobre a mesa que eu ocupava, uma cerveja, três copos, uma cumbuca da Zira, outros petiscos e o panfleto da peça teatral Ana e Tadeu. Eu conversava justamente com a escritora Amanda Julieta e a jornalista Lidiane Borges sobre o espetáculo que tínhamos acabado de assistir.
Reverberava em nós os incômodos e encantamentos da história de um casal que está se separando e precisa lidar com um tiroteio em seu entorno. O texto de Mônica Santana nos fez rir, também fez com que nos indignássemos e pensássemos nos absurdos cotidianos dos bairros periféricos, nas subjetividades negras, nas masculinidades contemporâneas e em tantas outras coisas que compõem a existência humana em uma certa geografia.
Outras pessoas ocupavam as mesas com risos soltos e conversas descontraídas. Eu o encarei de volta. Então tudo ao redor desapareceu. Seus olhos carregavam um mistério indecifrável. Um tanto surpreso pela aparição repentina e pela situação em si, esperei que o sujeito dissesse o que desejava. Eu não estava com medo. Fazia tempo que eu não sabia o que era temer pela minha própria vida. A consciência de que hoje estou aqui é minha nitidez possível. Assim recupero os fragmentos que me constituem a cada momento.
Leia Também:
De modo antecipado, julguei ser ele mais um entre tantos outros seres que perambulam pelas ruas do centro da cidade com as mais variadas ofertas e estratégias para conseguir algo que se deseja. Logo, me vi entre cálculos mentais sobre constrangimento social e solidariedade. No meu coração, habitam todas as circunstâncias de uma vida.
Só muito recentemente tenho aprendido a dizer não. Juntar essas três letras, para mim, é semelhante à árdua tarefa de Sísifo. Há algum alívio em tocar a língua na parte de trás dos dentes superiores, abrir um pouco a boca, arredondar os lábios e permitir a passagem do ar para dizer o que verdadeiramente se quer dizer. A tarefa, porém, é infinita. A força e coragem necessárias para realizá-la não são reservas que possuo em demasia.
Dizer ene, a, ó, til, assim como eu dizia na adolescência cheio de deboche em alto e bom som em uma situação que demandava pouco de mim, é muito diferente de encarar o mundo adulto, a luta interior entre a necessidade de agradar ou não magoar e a necessidade de cuidar do próprio bem-estar, e proferir um breve som que pode ser traduzido por limites para uma vida em que não me envergonho de ser quem sou.
– Sim. Este ano é seu. Ouviu bem? Este ano é seu. A voz resoluta do ser nebuloso finalmente me fez olhar ao redor. Eu já não bebo tanto quanto antes. Na medida em que o tempo passa sobre mim e me transforma em outra pessoa, minha tolerância alcoólica parece cada vez menor. Mas eu estava atento. Meus gestos continuavam coordenados. Alcancei meu copo e bebi um gole.
Minhas companhias de mesa continuavam existindo, agora perplexas com a fala oracular do sujeito. As pessoas seguiam em seus lugares com risos e conversas como se a vida fosse mesmo uma grande encenação. O que responder? Subitamente, o oráculo ambulante se levantou e desapareceu com seus passos profundos e levianos. Com as sobrancelhas ainda erguidas e a mão no queixo, eu tentava descobrir minha própria verdade.
*Evanilton Gonçalves é autor de Ladeira da Preguiça (Todavia)
Compartilhe essa notícia com seus amigos
Siga nossas redes