CRÔNICA
Coisas que salvam: um livro barato, uma velha casa, uma lembrança
Confira a crônica da Muito deste domingo, 20
Por ró-Ã*

Dora andou implicando com o visual de muitas moças de hoje, “tudo a mesma coisa.” Rabugice pura, pois cada época tem sua cara própria. Não é descabido que, se agora contássemos 25 anos, exibiríamos também cabelos longos e escorridos, beições forjados no ácido hialurônico, bolas de silicone simulando peitos, corpos musculosos zero gordura. Sem falar em algumas bundas, cuja empinada volumetria poderia facilmente sustentar bandejas repletas de quitutes.
Minha amiga pariu uma filha temporã na virada do milênio, cuja beleza contesta de maneira resoluta a moda vigente; fosse fotografada ao estilo anos 80, ninguém suspeitaria de que o registro datava de então, quando sua metade ainda era óvulo, e ali estivesse Dora na juventude, perturbações e questionamentos se engalfinhando sob a estampa agradável.
Talvez porque ninguém conhecido parecesse sofrer de aflições semelhantes, todos já cientes de seus lugares no mundo e com eles satisfeitos, Dora encontrou uma aliada na perguntante Clarice Lispector, insuperável em expressar de maneira original e surpreendente a intranquilidade que a atormentava. “Graças a ela, estou aqui.”, me confessou um dia.
Nem só os bombeiros salvam vidas; em se tratando das almas que as alentam, aos artistas devemos muitas. Pelo menos, aquelas sensíveis aos frutos de suas dores tempestuosas. Não tenho dúvida: Clarice adoraria saber que a querida Dora continua respirando por causa dela, embora tenha inventado de se casar com um neozelandês, assim nos privando de seu convívio. A Oceânia é longe pra cacete, nem parece fazer parte do planeta.
Jaguaquara é zilhões de vezes mais perto e o único lugar que conheço onde a imigração italiana deixou zero marca cultural, exceto o delicioso Ristorante Biancamano, nome do navio que trouxe a galera. Visita obrigatória a cada semestre, quando vou à cidade por carinho a quem me precedeu e já a habitava décadas antes da chegada dos fratelli. Na viagem mais recente, passei pela tristeza de ver demolida a casa onde minha mãe nasceu e cresceu, provavelmente para dar espaço a um xópin espelhado, modernoso e horrendo, entendido como progresso. E então me veio a nostalgia que acometeu o poeta Fernando Pessoa, de um tempo quando “todo mundo estava vivo.”
Suavizando o desaparecimento da casa de meus avós, conheci D. Pequena, bem miudinha mesmo; aos 90, ainda se lembra de 7 Trouxa, mendigo que perambulava cheio de sacos nas costas e me causava fascínio durante as férias meninas passadas na cidadezinha então acanhada. Diziam que tinha xingado a mãe, motivo que considerei justíssimo para a sua danação.
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Em 2025, Hiluxes circulam pela rua que Tá parecendo a 5ª Avenida! - segundo meu pai, sempre afiado, em sua derradeira visita à terra natal. Numa loja de variedades situada na Fifth Avenue jaguaquarense, encontrei uma versão adaptada de “Os Miseráveis” por R$ 10. Comprei na hora, pois sempre me incomodou essa lacuna no currículo. Felicidade é reconhecer pensamento concordante com um ser humano do quilate de Victor Hugo, que ainda por cima gerou a desvairada Adele, escancarada em sua paixão através de François Truffaut num de seus filmes mais belos.
É diferente você ter contato com uma obra literária quando ainda está em formação. Erico Verissimo fez totalmente esta cabecinha entre os 11 e 13 anos, período em que o devorei com fúria - em especial, os romances “Saga” e “Olhai os Lírios do Campo”. Este último, de tanto reler, quase aprendi de cor, e à personagem Olívia devo muito do que sou. No caso de “Os Miseráveis”, a experiência é diversa porque já tenho a cabeça feita e ele só confirma minhas crenças. Claro que preciso tomar vergonha e ler a obra integral, agora que tive um gostinho.
Mas é tanto livro por aqui! Dezenas deles esperam há anos por atenção. Para que houvesse alguma justiça, seria realmente necessário viver múltiplas vezes; numa única existência, é impossível se inteirar de todas as belezas que já foram criadas, e ao pensar nelas me sinto menos sombria. Ainda bem que sentei para escrever, em vez de ficar tentando dar conta da inquietação por meio de um aparelho digestório que exige muito e entrega cruéis movimentos peristálticos. Com eventuais leitores posso dividir desassossegos e a lembrança de 7 Trouxa, a quem dedico este texto e o meu amor.
*ró-Ã é autora do livro Dor de facão & brevidades
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