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Edil Pacheco faz 80: o baiano que encantou Clara Nunes e mudou o samba
Sambista celebra 80 anos com documentário e homenagens
Por Gilson Jorge

Em 1966, a Rádio Globo do Rio de Janeiro, que tinha uma audiência considerável nas classes A e B, abriu espaço entre a meia-noite e às 4h para um programa popular. Era um horário em que a estação ficava fora do ar e, apesar das reticências da direção da rádio, com viés elitista, um radialista paranaense conseguiu emplacar a ideia de um programa sobre samba, que entrevistasse músicos do Brasil inteiro.
O programa Adelzon Alves, o amigo da madrugada tornou-se um grande sucesso e foi transmitido pela Globo até 1990. O programa era bem ouvido no Nordeste, no Sul e até em Belém do Pará.
O sucesso nacional de “Ijexá”: como Edil Pacheco conquistou Clara Nunes

Por décadas, Adelzon levou ao ar ícones do samba baiano: Batatinha, Chocolate da Bahia, Ederaldo Gentil, Edil Pacheco, Nelson Rufino, Riachão e Tião Motorista. A influência exercida pelo radialista, que também foi produtor de Clara Nunes, no mercado fonográfico era grande.
Por sua sugestão, ao divulgar o LP Nação (1982), que viria a ser o último álbum de estúdio de Clara, a gravadora EMI Odeon desistiu de divulgar nas rádios a faixa-título, composta por Aldir Blanc e João Bosco, e passou a apostar em Ijexá, composição de Edil Pacheco. Os versos iniciais exaltavam: “Filhos de Gandhy, Badauê, Ilê Aiyê, Malê Debalê, Oju Obá, tem um mistério que bate no coração, força de uma canção que tem o dom de encantar”.
"O meu diretor da rádio na época, Mario Luís, me chamou para dizer que a gravadora de Clara Nunes estava preocupada porque o disco dela estava encalhado nas lojas. Eu disse que estavam trabalhando a música errada, que a música do momento era a do compositor da Bahia Edil Pacheco", afirma Adelzon, com a experiência de quem conhecia a sua carreira como ninguém.
O diagnóstico foi acatado pela gravadora e a música estourou nacionalmente e impulsionou as vendas de Nação. "Uma das maiores felicidades da minha vida foi ver Clara Nunes cantando minha música no Chacrinha, no sábado, e no Fantástico, no domingo", lembra emocionado Edil, que completa 80 anos de idade no próximo 1º de junho.
Poucos dias após a exibição do videoclipe de Ijexá no programa dominical, a cantora foi internada para uma operação de varizes. Uma reação alérgica a um dos componentes da anestesia provocou uma parada cardíaca. A cantora permaneceu na UTI por 28 dias até a declaração de sua morte em 2 de abril de 1983.
O último grande sucesso de Clara começou a ser composto no Rio de Janeiro, para onde Edil havia se mudado a convite de uma gravadora. O baiano de Maragogipe, que incialmente confundia afoxé, a entidade carnavalesca, com ijexá, o ritmo, decidiu fazer uma canção que fizesse a distinção entre os dois. Assim, além de aprender acabou ensinando a um país inteiro.
O jeito com que a música de Edil foi parar no álbum de Clara foi pitoresco. O compositor havia cantado Ijexá no aniversário do sambista João Nogueira, em uma roda de samba, depois de ter recebido o violão acompanhado do pedido "toca uma aí, baiano". Presente ao aniversário, o compositor Paulo César Pinheiro ouviu a música e ao chegar em casa comentou sobre ela com sua mulher, Clara Nunes.
No dia seguinte, a cantora convidou Edil para almoçar em sua residência e solicitou que ele cantasse uma música. "Eu cantei uns dez sambas, mas ela disse que eu não tinha cantado a do aniversário e aí cantei Ijexá e ela perguntou se podia gravá-la", lembra Edil.
O compositor diz que durante a gravação da música por Clara Nunes pipocaram lâmpadas no estúdio, o que o deixou impressionado. "Tem gente que não acredita nessas coisas. Eu também não acreditava", diz o sambista, místico.
De Maragogipe para o Brasil: a trajetória musical de Edil Pacheco

Edil começou a frequentar o samba na juventude em Maragogipe, numa roda sem instrumentos de corda, e ganhou um violão por acaso. Um de seus amigos de batuque na rua ficou incomodado quando a irmã começou a sair com um rapaz mais velho, que era goleiro em um time de futebol. O garoto ameaçou contar ao pai sobre o namoro escondido e, para ficar quieto, ganhou do atleta um violão. Mas o pai, um saxofonista, que não aprovaria a relação da filha, curiosamente também desaprovou o instrumento do filho, e este solicitou a Edil que guardasse consigo o presente. Com a ajuda de um método de violão, o jovem sambista aprendeu a tocar sozinho aos15 anos.
Quando completou a maioridade, Edil mudou-se para Salvador e foi trabalhar na Pastelaria Moderna, na Rua do Cabeça. "Era pastelaria, mas não vendia pastel. Vendia vinhos e doces importados e queijos da melhor qualidade", lembra Edil. Depois, aceitou o convite de um tio que tinha uma transportadora de carga e o queria no setor operacional. "Com as comissões, eu ganhava mais do que ele", conta o sambista.
A vida profissional prometia, mas era o samba que movia o seu coração. Morador do Largo Dois de Julho, Edil foi apresentado a Batatinha, que seria um vínculo fundamental para o desenvolvimento de sua carreira e com quem compartilharia as delícias da noite do centro de Salvador em um tempo em que andar a pé pela Carlos Gomes de madrugada não dava medo.
O único temor era mesmo a recém-instalada ditadura militar. Mesmo sem ter qualquer militância política, Edil foi preso em 1964 e passou dois dias na cadeia. O motivo foi o fato de estar reunido com amigos no Largo da Palma com um violão. Os jovens boêmios tentavam impressionar as estudantes da recém-criada Universidade Católica do Salvador. A polícia viu na pequena aglomeração um descumprimento das regras. "Eu fui preso junto com o músico Joel Nascimento. Chegou um camburão e levou nós dois", lembra Edil.
Mas há muitas lembranças boas daquele período. Frequentemente, Edil passava na sede dos Diários Associados, na Rua Carlos Gomes, às 2h da madrugada, hora em que Batatinha deixava o trabalho na composição gráfica do jornal que amanheceria nas bancas. Juntos, os dois saíam a perscrutar a noite soteropolitana, com cerveja, comida e samba, fosse no Comércio, fosse no Mercado das Sete Portas.
"Batatinha que me levou para conhecer as pessoas do samba. Ele me pedia para acompanhá-lo em suas músicas", lembra Edil. Em 1971, os dois amigos fizeram shows em uma boate na antiga Rua Senador Costa Pinto (atual trecho da Carlos Gomes, do Dois de Julho ao Campo Grande). No show, Batatinha se apresentava com a caixa de fósforo e Edil com o violão.
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Nos seus tempos de Rio de Janeiro, tendo o programa de Adelzon como referência, Edil se enturmou com compositores cariocas e fez diversas parcerias. João Nogueira (De amor é bom e Salve a Bahia), Paulo César Pinheiro (Ojú Obá) e Jairo Simões (Boas notícias) são alguns exemplos.
Com Paulinho Diniz, Edil compôs entre outras músicas Estamos aí, que em princípio seria gravada por Caetano Veloso. "Eu fui à casa de Caetano com o fotógrafo Artur Ikishima, que era meu amigo. Cantei Estamos aí para ele e ele disse que ia gravar", conta Edil, que voltou à casa do cantor dois meses depois e ouviu que ele não gravaria a música, mas a repassaria para Gal. A mudança seria decorrente da decisão da gravadora de que Caetano gravaria um compacto naquele momento.
Edil foi avisado que a música na voz de Gal seria lançada em um programa noturno da Rádio Mundial, emissora carioca cujo sinal chegava a Salvador. "Eu estava passeando de carro com Paulinho Diniz, quando ouvi a introdução da música. Foi um dos dias mais emocionantes da minha vida", afirma.
Curiosamente, Edil compôs apenas uma música com Batatinha (Rosa Tristeza). Das parcerias com Nelson Rufino, o destaque é Aruandê, gravada há 50 anos por Alcione. Rufino gosta de se referir ao amigo Edil pelo nome de nascimento, Edmilson de Jesus Pacheco. "É só para sacanear, só para brincar", diz Rufino rindo, antes de pontuar que ao longo de todos esses anos de convivência eles conseguiram manter o carinho mútuo e o respeito. "Eu sou muito fã da obra dele e, de repente, ele se faz fã também do que eu faço", pontua Rufino.
O autor de Verdade afirma que a religião dele e do parceiro Edil é o respeito. "É esse amor que existe entre os homens. Eu me pergunto como pode o tempo ter passado assim. Aruandê está comemorando 50 anos e nós nos conhecemos antes disso", destaca Rufino, que lembra de estar com Edil em uma festa no Pau Miúdo há 54 anos, na época em que Rufino se casou. "Que Deus o mantenha com saúde. Ele ainda tem muito para dar. Além de parceiro na música, todo grande evento que eu faço Pacheco é meu convidado", declara Rufino.
Com 82 anos, o sambista brinca que antes nessa idade a pessoa estava de bengala, mas que atualmente há respeito pelos artistas experientes. "Graças a Deus, virou moda. E Edil Pacheco conseguiu fazer uma coisa linda, que foi a valorização do ijexá. Ele me respeita como sambista. E além de eu respeitá-lo como sambista, ele tem essa coisa bonita com o ijexá", afirma Rufino.
Dia do Samba: como Edil Pacheco manteve viva a tradição após Batatinha

Após a morte de Batatinha, a organização da festa pelo Dia do Samba, em 2 de dezembro, ficou a cargo de Edil Pacheco. E há dois anos ele conta com a ajuda do produtor paulistano Camilo Árabe, que há anos se envolveu com o samba da Bahia e vive desenvolvendo projetos por aqui. Foi ele, por exemplo, que produziu o primeiro álbum de Guiga de Ogum, com o apoio do deputado Robinson Almeida.
Na semana passada, Camilo esteve de novo na Bahia e conversou algumas vezes com Edil. O jovem paulistano participa da produção de um documentário sobre o sambista octagenário, que tem na discografia álbuns como Pedras afiadas (1977), Estamos aí (1984), Dom de passarinho (1996), O Samba me pegou (2003), Eu quero São João (2006), e Mel da Bahia (2017).
"Edil é um dos principais nomes da vanguarda do samba urbano de Salvador. Ele deu sequência ao trabalho iniciado por Panela, Riachão e Batatinha, que inclusive virou o mestre dele", afirma Camilo.
O produtor destaca que Edil é um sambista autoral que teve sua obra cantada por nomes como Jair Rodrigues, Alcione e João Bosco. Com Rodrigues e Bosco, aliás, ele também fez parcerias.
Camilo também destaca o papel importante de Edil como produtor e articulador do samba. "Ao longo da carreira, ele produziu discos de outros cantores e atua também no sentido de facilitar e promover relações", analisa Camilo.
O sambista maragogipense que na adolescência improvisava até em caixas de papelão para tirar algum som viveu aventuras como largar o emprego bem remunerado para passar um ano no Rio, a convite de uma gravadora. Mas sempre foi pé no chão. Antes de viajar, exigiu que a multinacional pagasse antecipadamente o dinheiro correspondente a um ano de contrato.
"Eu lembro de passar no banco com uma mala de viagem e levá-la para casa abarrotada de cédulas. Algo impensável hoje em dia", diverte-se. Edil não enriqueceu, mas leva uma vida confortável. Vira e mexe, vai até a bucólica Lagoa dos Patos, na Pituba, e senta-se em uma barraquinha para bater papo com vizinhos, que são amigos e fãs. Sua popularidade dentro e fora do condomínio é notável. Camilo brinca que o sambista é na verdade um vereador. Nada mais adequado para um músico que adotou o nome artístico de Edil.
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