MUITO
Futuro em risco: o que a crise climática e a violência revelam sobre Salvador
Especialistas discutem clima e autoritarismo na 15ª edição do Seminário de Urbanismo da Bahia urbBA[25]

Por Gilson Jorge
![Retrato urbano das desigualdades será discutido no urbBA[25]](https://cdn.atarde.com.br/img/Artigo-Destaque/1360000/1200x720/Futuro-em-risco-o-que-a-crise-climatica-e-a-violen0136578600202510241826-ScaleDownProportional.webp?fallback=https%3A%2F%2Fcdn.atarde.com.br%2Fimg%2FArtigo-Destaque%2F1360000%2FFuturo-em-risco-o-que-a-crise-climatica-e-a-violen0136578600202510241826.jpg%3Fxid%3D6859050%26resize%3D1000%252C500%26t%3D1761472947&xid=6859050)
Na terceira semana de outubro, tradicionalmente, a Bahia já está em clima de verão. Mas este ano a chegada de uma frente fria nesse período deixou janelas soteropolitanas tremulando, com ventos de até 60 km/h, que espalharam pela paisagem da capital uma chuva gelada típica de inverno.
Açoitado pelo mau tempo, um ferry-boat que faz a travessia Salvador-Bom Despacho balançou tanto na Baía de Todos-os-Santos que a água do mar atingiu os automóveis no interior da embarcação. O gigantesco navio de cruzeiro MSC Preziosa, com seus 333 metros de comprimento e mais de 139 mil toneladas, precisou aguardar um dia para atracar no Porto de Salvador. A água que desabou do céu entre segunda e terça-feira, 122 milímetros, era o que se esperava para todo o mês e provocou transtornos em toda a cidade.
Ao longo dos próximos anos, a intensificação desses fenômenos, que os cientistas atribuem às mudanças climáticas causadas pela ação humana, pode trazer a Salvador consequências que vão além de atrasos no sistema de transporte e de gripes e resfriados.
A arquiteta, urbanista e consultora Liliane Hobeica explica, por exemplo, que o contínuo encharcamento do solo pode elevar substancialmente as ocorrências de inundações e deslizamentos de terra na capital baiana. "Precisamos entender os riscos a que estamos sujeitos com as mudanças climáticas", afirma a doutora em Território, Riscos e Políticas Públicas pela Universidade de Coimbra, em Portugal.
A pesquisadora enfatiza que as ameaças ao solo podem aumentar em caso de eventos extremos, seja excesso de chuva, seja uma severa escassez hídrica. E aponta como fonte de preocupação o tamponamento de rios e canais. "Hoje em dia, no mundo afora, o que estão fazendo é descanalizar os rios. A água sempre tem o seu lugar. Uma hora que tenha uma chuva que exceda, ou ela rompe a tubulação ou ela extrapola e cria problemas de alagamento", explica Liliane.
Outro dado apresentado pela pesquisadora diz respeito às chamadas ilhas de calor, as partes de uma cidade que em função do tipo de urbanização apresentam uma temperatura mais elevada do que outros bairros da mesma cidade. "Entre 2000 e 2018, morreram mais pessoas pelo calor do que por deslizamentos de terra", declara a professora.
A pesquisadora destaca que há um grupo de servidores públicos municipais trabalhando com a questão da crise climática. "Salvador tem o Plano de Mitigação e Adaptação às Mudanças do Clima (PMAMC) e uma estratégia de resiliência. Esses documentos estão acessíveis online, mas o plano nunca virou lei", declara a urbanista da FFA Arquitetos, que presta consultoria a seis municípios brasileiros, incluindo Ilhéus.
Leia Também:
Temas
A crise climática é um dos temas da 15ª edição do Seminário de Urbanismo da Bahia o urbBA[25] , que acontece de 3 a 5 de novembro. O evento promovido pelo grupo de pesquisa Lugar Comum reúne autoridades de seis unidades da federação e vai discutir também violência e democracia.
"A gente acredita que essas três questões colocam desafios específicos para o urbanismo e que ele tem que pensar sobre isso. São os temas mais dramáticos em termos de vida coletiva na cidade, na verdade, no planeta", afirma Ana Fernandes, doutora em planejamento e meio ambiente pela Universidade de Paris, professora titular da Faculdade de Arquitetura da Ufba e integrante da comissão organizadora do seminário.
A professora avalia que há um processo de "recessão democrática", com o aumento do autoritarismo, do desrespeito às instituições democráticas e da violência contra as pessoas. Nesse contexto, quando se pensa em urbanismo, discutir democracia seria discutir a esfera da organização política em geral e, em particular, da política urbana. "Para pensar uma cidade democrática, é preciso pensar de que forma essa cidade é produzida, quais são os mecanismos de decisão, de controle, de acompanhamento do que está sendo feito", afirma.
Para Ana, instrumentos criados no início deste século, como o Estatuto da Cidade, são insuficientes para dar conta da produção urbana. O estatuto foi aprovado em 2001, no final do segundo mandato presidencial de Fernando Henrique Cardoso. "E muitos desses instrumentos, inclusive, estão sendo atacados frontalmente. A ideia, no seminário, é fazer a crítica e se inspirar para outras formas de ação", declara a professora.
No quesito violência, o seminário se propõe a extrapolar a agressão física e abordar outras formas de cerceamento da cidadania. " Tem a violência de uma educação que não consegue cumprir o seu papel, a violência da vida coletiva na cidade, com percursos cada vez mais segregados", afirma Ana.
Um ponto específico citado pela professora e urbanista é a mobilidade. Ana menciona uma reclamação geral de como o sistema de transportes está sendo operado sem corresponder às necessidades da população. "É difícil compreender o grau de precariedade a que ele chega em uma cidade como Salvador. Isso tudo pode ser considerado violência também", avalia a professora.
Mestre em direito e autora do livro Como se fosse da família, a advogada Gabriela Ashanti Ramos participa da mesa sobre violência no seminário e discute, entre outras coisas, a segregação social soteropolitana e o alto grau de letalidade de jovens negros nas ações do poder público no combate ao tráfico de drogas e ao crime organizado.
Gabriela destaca que o urbanismo soteropolitano foi influenciado pelo colonialismo e pelo escravagismo. "Na contemporaneidade, não é diferente. Salvador está dividida entre as áreas que são nobres e as que estão mais vulnerabilizadas", afirma a advogada.
Determinadas áreas da cidade são disputadas pelo mercado imobiliário. "Isso faz com que representações do estado atuem nesses territórios de forma diferenciada", declara. Um exemplo citado pela advogada é a região formada pelos bairros populares do Nordeste de Amaralina, Santa Cruz e Vale das Pedrinhas, que têm na vizinhança bairros de classe média e classe média alta como Amaralina, Pituba e Itaigara.
"O complexo do Nordeste de Amaralina é uma das áreas que mais sofrem com a violência policial, que mais tem incursões policiais violentas, violentíssimas, provocando a morte de crianças e adolescentes, adultos e mesmo de idosos", pontua a advogada.

Na tarde de 27 de março deste ano, Maria de Jesus Silva, 87 anos, foi baleada dentro de casa durante uma operação policial no Nordeste de Amaralina e morreu depois de ter sido internada. "A violência estatal que atinge o Nordeste de Amaralina é indiscriminada, porque nenhuma vida ali é valorizada", afirma a advogada, integrante do Odara - Instituto da Mulher Negra.
Gabriela sustenta que a ação do poder público nesse bairro popular pode estar vinculada ao fato de o Nordeste ser um bairro próximo à praia e que tem no seu entorno edificações de alto padrão. "Tem o interesse de desvalorizar o local e desmobilizar as pessoas que moram aqui, porque é mais interessante que grandes empreendimentos ocupem esse lugar, porque aí você aumenta o IPTU", afirma advogada, que coordena na região o projeto social Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar.
A advogada, aliás, considera o Nordeste de Amaralina um caso emblemático da relação entre urbanismo e segurança pública. E cita o fato de que em 2021, a Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas publicou o relatório Mesmo que você me negue. O documento apontou que na Pituba houve naquele ano houve muito mais apreensões de drogas do que no Nordeste de Amaralina. "No entanto, não houve um episódio de disparo de armas de fogo ou de pessoa intimada a depor pela polícia", afirma a advogada.
Gabriela sublinha uma diferença no tipo de ação do poder público para a apreensão de drogas no Nordeste e na Pituba. Sobre o senso comum de que enquanto as patentes mais baixas das facções criminosas dominam os bairros periféricos, fortemente armadas, e a chefia está em bairros ricos, a advogada pondera que uma política mais eficaz de combate ao tráfico seria a abordagem financeira do tema.
"O que move qualquer mercado? O dinheiro. Para chegar às cabeças grandes, tem que rastrear o dinheiro. No Nordeste de Amaralina, não há heliporto para receber helicópteros com drogas", declara Gabriela, ressaltando que o Brasil não produz cocaína e que existe o tráfico internacional de drogas e de armas. "Quando o grosso desse dinheiro circula, não é dentro dessas comunidades, porque senão elas não seriam mais vulneráveis", afirma a advogada.
Gabriela destaca ainda que o dinheiro grande do crime organizado tem circulado em instituições como bancos e empresas de fachada. "Inclusive agora, com essa coisa dos narcocrentes, até algumas igrejas neopentecostais têm sido utilizadas para fazer essa lavagem de dinheiro", declara.
Ela também enfatiza sua crença de que operações policiais nos bairros periféricos não vão resolver a questão das drogas. "Se você quer, de fato, parar de enxugar gelo, matando traficantes de biqueiras, matando crianças e adolescentes nas comunidades, você precisa rastrear o dinheiro, saber de onde vêm os recursos para comprar essa quantidade de drogas no atacado", avalia a advogada.
Moradia
Outro assunto relevante no urbBA[25] é a democratização no acesso à moradia e, por isso, um dos convidados do seminário é o arquiteto paulistano Nabil Bonduki, vereador em São Paulo pelo PT e autor do livro Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa própria. Professor titular de planejamento urbano da Universidade de São Paulo, Nabil foi superintendente de Habitação Popular da Prefeitura de São Paulo, na gestão de Luiza Erundina (1989-1992).
Conhecedor dos problemas urbanos de Salvador, que já visitou algumas vezes, o arquiteto aposta que a capital baiana poderia atacar o problema do déficit habitacional transformando em residências imóveis abandonados não apenas no Centro Histórico, mas também em bairros vizinhos. "São locais que já contam com uma boa infraestrutura urbana", aponta o arquiteto.
Outro conselho é que conjuntos habitacionais populares sejam também construídos em áreas com alguma infraestrutura urbana e que ofereçam a possibilidade de trabalho perto da residência. "Isso evita grandes deslocamentos e problemas com o tráfego", destaca Nabil.
Interessados em participar do urbBA[25] devem efetuar a inscrição através do site https://urbba25.wixsite.com/urbba25.
Siga o A TARDE no Google Notícias e receba os principais destaques do dia.
Participe também do nosso canal no WhatsApp.
Compartilhe essa notícia com seus amigos
Siga nossas redes
![Retrato urbano das desigualdades será discutido no urbBA[25]](https://cdn.atarde.com.br/img/Artigo-Destaque/1250000/516x363/Filme-sobre-o-artista-visual-e-cineasta-Chico-Libe0125078200202312021958ScaleOutside-t.webp?fallback=https%3A%2F%2Fcdn.atarde.com.br%2Fimg%2FArtigo-Destaque%2F1250000%2FFilme-sobre-o-artista-visual-e-cineasta-Chico-Libe0125078200202312021958.jpg%3Fxid%3D6037460&xid=6037460)
![Retrato urbano das desigualdades será discutido no urbBA[25]](https://cdn.atarde.com.br/img/Artigo-Destaque/1240000/185x140/A-vitrine-dos-festivais-de-musica-para-artistas-ba0124632900202310211922ScaleOutside-t.webp?fallback=https%3A%2F%2Fcdn.atarde.com.br%2Fimg%2FArtigo-Destaque%2F1240000%2FA-vitrine-dos-festivais-de-musica-para-artistas-ba0124632900202310211922.jpg%3Fxid%3D5993804&xid=5993804)
![Retrato urbano das desigualdades será discutido no urbBA[25]](https://cdn.atarde.com.br/img/Artigo-Destaque/1230000/185x140/Estreia-do-A-TARDE-Talks-dinamiza-producoes-do-A-T0123556100202307152004ScaleOutside-t.webp?fallback=https%3A%2F%2Fcdn.atarde.com.br%2Fimg%2FArtigo-Destaque%2F1230000%2FEstreia-do-A-TARDE-Talks-dinamiza-producoes-do-A-T0123556100202307152004.jpg%3Fxid%3D5887930&xid=5887930)
![Retrato urbano das desigualdades será discutido no urbBA[25]](https://cdn.atarde.com.br/img/2021/04/185x140/comedia-pandemia-artistas-humor-muito_2021410151643304ScaleOutside-t.webp?fallback=https%3A%2F%2Fcdn.atarde.com.br%2Fimg%2F2021%2F04%2Fcomedia-pandemia-artistas-humor-muito_2021410151643304.jpg%3Fxid%3D4607460&xid=4607460)