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Médica faz alerta sobre cuidados paliativos: “O último dia de vida faz parte da vida”
Médica e escritora Ana Claudia Quintana Arantes propõe novo olhar sobre a morte e o luto

Por Gilson Jorge

Em 1988, Bob Dylan escreveu a bela e pungente canção Death is not the end, que em tradução livre significa a morte não é o fim. A música sobre perda de pessoas amadas aponta para a reconfortante ideia de que o espírito nunca morre. A médica, palestrante e escritora paulista Ana Claudia Quintana Arantes, que se dedica a preparar pacientes com pouco tempo de vida, seus familiares e cuidadores para enfrentar esse momento, costuma dizer que o foco não deve ser o fim de uma vida, mas a celebração do tempo em que se está vivo.
A escritora propõe, por exemplo, que as lápides enfatizem não a cruz que simboliza a morte, mas a expressão viveu até tal dia. A TARDE conversou com a escritora, que estará em Salvador no dia 24 de setembro para uma palestra na Pupileira, em Nazaré, dentro do projeto Florence Fronteiras, uma ação social da Clínica Florence, estabelecida em Salvador e Recife, e especializada em cuidados paliativos.
O nome é uma referência à italiana Florence Nightingale, pioneira da enfermagem. O ingresso para o evento custa R$ 60 e 1 kg de alimento não-perecível. A renda será revertida para as ações sociais da Santa Casa da Bahia. Além da clínica, fundada em 2017, Salvador ganhou este ano o Hospital Estadual Mont Serrat, também voltado aos cuidados paliativos.
A senhora tem livros que enfocam a maneira como se deve encarar a morte. Em Morte é um dia que vale a pena viver, publicado em 2017, há essa noção de que não se trata tanto da chegada do fim, mas de que ainda há vida. Que mensagem pode ser enviada a quem tem alguns dias pela frente e a quem está ao seu redor?
O contexto mais importante que precisa ser compreendido é que o nosso último dia de vida faz parte de nossa vida. Já está dito na frase: último dia de vida. Então, a morte é o último evento, nesse último dia de vida. Uma pessoa que é cuidada, que recebe alívio do seu sofrimento pela progressão da doença ou decorrente de um tratamento agressivo, é uma pessoa que aprecia a vida, dentro do contexto que é possível. Ao longo do adoecimento, nós vamos ter perdas talvez muito significativas de independência e de autonomia. A gente vai precisar ser cuidado, vai precisar de apoio, vai estar em uma situação física muito frágil
Podemos estar em uma situação emocional e familiar frágil, mas se tivermos acesso a cuidados que aliviem esse sofrimento, temos condições de enfrentar o nosso tempo final de uma forma viva, de uma forma cuidada, de fato. E aí, se você não tem dor, você pode expressar o seu afeto, você pode apreciar as suas últimas experiências humanas com o olhar de quem realmente sabe receber o que é bom da vida. E o que está ruim, está sendo cuidado.
A senhora também escreveu para o público infantil Onde fica o céu?, que foi lançado em maio deste ano. Como explicar a morte para as crianças? Que cuidados a gente deve ter ao abordá-las e explicar que uma pessoa querida do seu convívio não vai estar mais presente?
Quando temos uma pessoa querida enfrentando uma doença, isso não vai ser difícil de entender para uma criança. Porque ela vai ter acompanhado o processo de mudança dessa pessoa amada. Então, ela vai ter um avô ou avó, a madrinha, o irmão, o pai ou a mãe que vão mostrar que tem alguma coisa errada acontecendo. Mudou o corpo, mudou a disposição, a pessoa não trabalha mais, ela fica mais tempo de cama, precisa ir várias vezes ao hospital, então, ela está doente. A criança não precisa ter acesso a situações muito críticas, como quando a pessoa está gritando de dor. Mas a criança precisa permanecer no cotidiano que lhe permita perceber que há alguma coisa diferente acontecendo.
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E quando as coisas se agravarem e a pessoa for para um hospital, se for possível, é bom perguntar à criança se ela gostaria de mandar alguma mensagem para a pessoa querida que está no hospital. Para que ela se sinta participando do processo de apoio. Ela pode mandar um desenho, pode mandar um áudio ou vídeo para o avô, a avó, seja quem for que esteja internado. Porque não são todos os hospitais que estão preparados para monitorar a visita de uma criança. Se o hospital estiver preparado para isso, muito bem. Então, a criança pode ir visitar o vovô, a vovó e tudo ser explicado a ela em um modo de entendimento que ela possa alcançar.
Pode exemplificar?
Você tem uma pessoa que está com uma sonda. Você tem que explicar à criança que tem um canudinho que está entrando pelo nariz, que vai até o estômago e que está alimentando essa pessoa. E aí pode ser como uma trombinha de elefante. E que tem um remédio que está indo para o corpo dela, que ajuda o corpo dela a cuidar do que está fazendo mal para ela. Não dá para usar termos técnicos, dizer que está tomando antibióticos para o tratamento de septicemia. Pode ser que seja preciso um profissional como um psicólogo infantil que ajude essa família a traduzir ou modificar essa informação para a criança compreender e, ao entrar na UTI, não ficar chocada com o que está vendo.
Essa explicação precisa ser compatível com a idade da criança. Se ela não puder ir ao hospital, os desenhos feitos por ela podem ajudar a contar a história que ela está entendendo. A gente não vai explicar nada que a criança não tenha perguntado. E se ela perguntar, temos que dar respostas objetivas. Outro dia, eu ouvi a história de um menino que perguntou à mãe o que era virgem. A mãe, muito sábia, questionou onde ele tinha visto essa palavra. Ele disse "aqui, no azeite". Se você vai direto responder à pergunta que você acha que a criança está fazendo, você vai falar besteira. Tem que perguntar "onde você viu isso" antes de responder.
Se a criança perguntar se o avô vai morrer, pergunte o que ela sabe sobre a morte. Você vai perguntando para chegar ao lugar em que a criança realmente está e, a partir disso, contar a verdade na linguagem dela. As pessoas têm a ilusão de que é preciso poupar a criança. Você começa a arrumar balé, futebol, aula de inglês e tênis, e a criança vai ficar na casa dos amiguinhos. Tudo para mantê-lo afastado da realidade do adoecimento. E isso traumatiza a criança. Se alguém que ela ama foi embora sem se despedir, ela entende que não é amada o suficiente. Isso causa muitos danos ao processo da vida adulta dela. A gente tem muito adulto que não sabe lidar com o luto, com a perda, porque foram crianças, entre aspas, poupadas. A vida não poupa. Podemos ajudar as crianças a atravessar esse momento difícil de tristeza, de desamparo, de não compreensão. Ela não pode achar que ela está errada por sofrer e aí a gente arranja mais coisas para ela se distrair. Assim, a pessoa cresce acreditando que ter sucesso na vida é não enfrentar as coisas tão difíceis.
A partir de que idade se entende a morte?
A criança tem um entendimento a partir da idade da linguagem. Com dois ou três anos, ela tem um grau de entendimento. As crianças acham que é uma coisa meio mágica. As crianças com cinco ou seis anos que têm um irmão com câncer e dizem a ele "eu odeio você, quero que você morra", vão achar que causaram a morte dele. A ideia de irreversibilidade e de universalidade da morte fica mais clara por volta dos dez anos.
A senhora fala que alguém que cuida de pessoas no fim da vida precisa ter mais do que boas intenções. O que considera necessário para quem está nessa posição, seja familiar ou cuidador profissional?
Olha, cuidar de alguém no fim da vida exige muito mais do que boa vontade. Claro que amor e intenção são fundamentais, mas não bastam. É preciso estar presente de verdade, ter preparo técnico para aliviar dor e sofrimento, saber escutar e acolher. E também é essencial que quem cuida saiba cuidar de si, porque esse é um processo muito exigente. Só assim o cuidado se sustenta: quando o conhecimento caminha junto com a compaixão
=A senhora defende a substituição do termo "morreu no dia tal" por "viveu até tal dia". Fale um pouco sobre essa postura de enfatizar o viver e de viver cada momento.
Eu costumo dizer que ninguém ‘morreu no dia tal’, mas que ‘viveu até aquele dia’. As palavras importam. Quando mudamos esse olhar, percebemos que a vida não se apaga no momento da morte. Cada instante vivido tem valor. Essa forma de falar nos ajuda a honrar a existência inteira de uma pessoa e a compreender que até o último dia pode ser vivido com sentido e dignidade.
Salvador ganhou este ano um hospital estadual para cuidados paliativos. O que acha desse tipo de equipamento? O que deve conter um hospital para quem está nos últimos dias?
Eu vejo como um avanço enorme a criação de um hospital dedicado aos cuidados paliativos em Salvador. Esse tipo de espaço precisa oferecer mais do que tecnologia: precisa oferecer humanidade. O que deve ter? Uma equipe completa multiprofissional preparada, recursos para controlar sintomas, apoio psicológico e assistente espiritual também são fundamentais, e ambientes que permitam a presença da família, o acolhimento, a intimidade. É um lugar para cuidar do corpo, mas também da alma.
Fale um pouco da palestra que vai fazer em Salvador, por favor.
Na palestra que vou dar em Salvador, eu quero justamente falar sobre isso: sobre a vida diante da morte. A ideia é mostrar como o cuidado muda a experiência do fim, como ele pode devolver dignidade e até beleza a esse momento. Quero que as pessoas saiam dali com a certeza de que a morte faz parte da vida, e que a forma como cuidamos nesse tempo final pode ser um ato profundo de amor, compaixão e legado.
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