CRÔNICA
Por que parei de comemorar aniversários no dia certo (e isso foi libertador)
Leia a Crônica da Muito deste domingo, 29 de junho
Por Franklin Carvalho*

Por mais estranho que pareça, só depois dos 50 anos de idade descobri que não calço 41, mas 42. E isso porque estava em falta o meu número numa pequena loja no interior, e a vendedora me convenceu a levar um calçado um pouquinho maior, já que eu havia gostado da peça. Senti muito conforto nos pés nos dias seguintes, resultado de uma simples mudança. Até hoje não sei por que usava 41, mas entendi o fato de os tênis antigos rasgarem rápido.
Também só recentemente resolvi “mudar” o dia do meu aniversário. Quer dizer, não sou muito de comemorar datas, e tenho uma certa preguiça de responder mensagens eletrônicas, por isso escondo dos meus perfis nas redes sociais o momento em que vim ao mundo. Acho que dia bom é aquele em que sai o pagamento ou ocorre outra alegria, na hora em que acontece, e em que deve ser imediatamente aproveitada, sem muita complicação. A formatura festejada quando sai o resultado da última avaliação, o casamento quando o casal estiver bem. No entanto, entendo que é possível aproveitar a passagem do natalício de alguma maneira leve, e achei uma oportunidade de fazê-lo.
Nasci às 18h do dia 1º de julho, então é quase 2 de julho. E o Hino da Bahia diz que o sol brilha mais no dia 2 que no primeiro, o que projeta uma melancolia nebulosa sobre as primeiras 24 horas do mês. Além disso, o dia 2 é data de festa nas ruas de Salvador, em homenagem à Independência do Brasil na Bahia, citada no mesmo hino. Feriado e tudo, com o desfile de fanfarras e a concentração de milhares de estudantes, de famílias e de batalhões de fotógrafos e antropólogos de várias patentes.
Então, de uns anos para cá, é no dia 2 que estou celebrando, misturado na multidão de artistas, místicos, desportistas e outros anônimos. Renasço daquelas cores, azul, vermelho, branco, verde e amarelo, e daqueles gritos e suores, no cortejo que rasga as gargantas estreitas do Centro de Salvador. Sigo com os vaqueiros, que passam a cavalo, e com os devotos que vão ao lado das imagens do Caboclo e da Cabocla, gente que atribui a essas entidades muitas graças alcançadas.
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Pronto, aniversário resolvido sem formalidades, decido outro dilema: olhar as redes sociais apenas uma vez por semana, como quem passa nos atuais supermercados atacadistas: sem muita esperança de achar novidade. Uma vez só por semana mesmo, para ver a caixa de mensagens, dar um salve para as pessoas e lutas de bom propósito e deixar alguma manifestação.
Estou numa fase em que as semanas se arrastam e cada sexta-feira custa a chegar, mas o ano acaba logo. Preciso ficar longe das falsas polêmicas, dos redemoinhos de bobagens e dos espirais de escândalos fabricados para eleger moralistas sebosos. Longe também dos golpes de inteligência artificial, das pilantragens graciosas e dos heróis de araque que o algoritmo recomenda.
Também estou praticando uma fisioterapia que eu mesmo inventei, de viver mais presencialmente, distante do computador, exercitando pernas e olhos, superando os maus hábitos criados na pandemia. Vale ver uma missa numa igreja antiga, assistir um filme como Premonição num cinema às quartas-feiras, tomar um ônibus para a velha cidade de Araci ou ir conhecer pessoalmente a bela São Gonçalo do Campo, de que eu só tinha ouvido falar uma vez, num programa de TV. E tem sido tudo muito bom. Até onde poderia ir esta lista?
Outra coisa que vem demandando atenção são estas cicatrizes que o Tempo faz silenciosamente na minha face, à medida que ele passa. Arrumei um creme baratinho, importado da China, mas esqueço de usar. Também esqueço de banhar o cabelo com o chá de alecrim que diminui a calvície, e que fica numa garrafa na pia. O poeta tem razão: a vida arrasa e contamina.
De qualquer forma, cicatrizes e tatuagens falam demais, e são más conselheiras. Mais tarde passo o creme para rugas.
Mais tarde, talvez.
*Franklin Carvalho é autor de Tesserato - A Tempestade a caminho (Ed. Noir)
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