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Quando o fim do ano dói: por que o Natal intensifica o luto

Psicóloga fala sobre luto no fim do ano

Pedro Hijo

Por Pedro Hijo

21/12/2025 - 6:07 h

Enquanto o imaginário coletivo insiste em mesa farta, reencontros e casa cheia nas festas de fim de ano, muitas pessoas vivem justamente o contrário: o silêncio, a ausência e a sensação de deslocamento. A psicóloga baiana Lais Villasbôas, especialista em luto e perdas, lembra que é importante o acolhimento, especialmente numa época em que tudo parece exigir alegria. Segundo a profissional, o final do ano amplia feridas.

"O luto escancara, de forma muito radical, o paradoxo desse momento”, explica. Nesta entrevista, Lais ainda fala dos chamados afetos incongruentes e explica por que cada pessoa precisa encontrar seus próprios rituais para seguir adiante. "O que define a magnitude da dor e do sofrimento são as circunstâncias particulares de cada perda", afirma.

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Por que o fim do ano costuma intensificar sentimentos de tristeza, solidão e saudade em tantas pessoas?

O restante da população, em geral, não costuma se preocupar tanto com isso, mas para nós, que trabalhamos em clínica, o final de ano sempre exige atenção. É um período muito sensível por várias questões de saúde mental, especialmente para quem está vivendo um processo de luto. Em dezembro, existe um imaginário social de celebração: casa cheia, mesa farta e família reunida. O luto escancara, de forma muito radical, o paradoxo desse momento. Porque diante da expectativa de encontro, surge o vazio, surgem as ausências das pessoas que não estarão ali. É algo até clássico, e não exatamente novo.

Quando falamos em luto, porém, estamos usando o termo de maneira ampliada. Não se trata apenas da perda de alguém querido. O luto envolve muitas outras rupturas significativas: perder o emprego, enfrentar uma separação ou passar por um divórcio, por exemplo. Quem já viveu algo assim entende bem como o final do ano mexe com essas feridas. Além da tristeza, do vazio e da dor que fazem parte dessas experiências, aparece também um sentimento de inadequação. Ou seja, além da falta em si, a pessoa ainda enfrenta outra camada emocional: sentir-se deslocada.

Há uma sobrecarga de decisões simples para os outros, mas pesadas para ela. “Eu vou ou não vou à confraternização?”, “acabei de ser demitido… faço o quê agora?”, “passei por uma separação… como será o primeiro Natal com guarda compartilhada dos meus filhos?”. Enquanto o restante do mundo segue com as celebrações, quem vive um processo de luto carrega também o peso de precisar decidir como se comportar, se pode se emocionar e de que forma será acolhida nesses momentos.

Como lidar com o luto durante esse período, quando tudo ao redor parece pedir celebração e alegria?

Se a gente parar para pensar, na nossa sociedade a tristeza é tratada como um inconveniente. A pessoa enlutada, alguém que está em sofrimento, acaba sendo vista como um incômodo diante das normas sociais estabelecidas que são a felicidade, a produtividade e a performance. A experiência de dor é uma forma de contracultura na sociedade atual. Você tem toda razão. Sim, neste período em que tudo parece acelerado e pressionado rumo a uma euforia coletiva, é preciso muito cuidado com a linha tênue entre a alegria real, que é o sentimento de partilha genuíno para algumas pessoas, e o oposto disso, que é o que muitas outras estão vivendo.

Algo que escancara muito essa dimensão, no nosso trabalho, é a vivência hospitalar. Para quem está com um familiar internado nessa época do ano, dezembro é um período extremamente difícil. Estou falando de pacientes, famílias e também a equipe de saúde. Os profissionais ficam especialmente sensibilizados: tanto porque abrem mão de momentos familiares para cumprir seus deveres, quanto porque o sofrimento do paciente e da família inevitavelmente chega até eles. Se durante o ano inteiro eles lidam com uma população emocionalmente vulnerável, no final do ano isso se intensifica.

Costumo dizer que, embora a pandemia tenha reforçado a ideia de “profissionais de linha de frente”, essa linha nunca se encerra. Vivemos um momento dramático e ímpar durante a pandemia, claro, mas nunca deveríamos ter deixado de olhar para o sofrimento desses profissionais. Ao longo de toda a carreira, eles estão gerenciando situações extremas e mantendo contato direto com dores físicas e emocionais muito profundas. Essa convivência com limites tão severos ainda recebe pouco cuidado. Houve algumas iniciativas durante a pandemia voltadas ao bem-estar dos profissionais de saúde, mas o que sabemos é que, na prática, existem poucas ações permanentes dedicadas a esse cuidado.

A psicóloga baiana Lais Villasbôas, especialista em luto e perdas
A psicóloga baiana Lais Villasbôas, especialista em luto e perdas | Foto: Divulgação

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Para quem perdeu um ente querido recentemente, quais passos podem ajudar a atravessar o Natal e o Ano Novo com menos sofrimento?

Acho que isso vale não só para experiências de luto, mas para todas as situações em que vivemos o que chamamos de afetos incongruentes. Ou seja, quando a sociedade, a família, o parceiro – ou até nós mesmos – esperam um sentimento diferente daquele que realmente estamos sentindo. Para quem está passando por essas vivências, é importante pausar e se recolher. Quem já tem um espaço de psicoterapia ou análise conta com uma ferramenta específica para lidar com esse período. Mas, de modo geral, precisamos respeitar nosso próprio tempo e escolher formas mais congruentes de atravessar tudo isso. Para algumas pessoas, manter certos rituais é muito organizador.

Ontem mesmo estava ouvindo uma dica excelente. Existe uma organização chamada Instituto Infinito, que discute luto e cuidados paliativos. A página deles no Instagram é muito boa. Eles desenvolvem projetos interessantes e trabalham especialmente com informação qualificada sobre temas como morte e perda. No ano passado, por exemplo, eles criaram um calendário do Advento voltado para quem está vivendo um processo de luto. A tradição original propõe celebrar acontecimentos do ano a partir de 1º de dezembro. Já o Instituto enviava diariamente, até 31 de dezembro, e-mails com informações, reflexões, exercícios e pequenos rituais. Era um projeto muito sensível. Lembro de uma live de final de ano em que uma pessoa contou que, após perder a mãe, pensou que não ia sentir mais o cheiro do tender assando em casa.

Então ela decidiu assar o tender por conta própria. Para algumas pessoas, honrar quem se foi ou honrar o processo que chegou ao fim pode ser a forma mais reconfortante. Ir à confraternização do antigo trabalho, abraçar o ex-marido ou manter certos gestos, por exemplo. Para outras, o caminho é o oposto: viver algo diferente, viajar, mudar de ares, ficar em casa e se recolher. Precisamos dar espaço e apoiar para que cada pessoa encontre suas próprias soluções, do jeito que fizer mais sentido.

Há situações em que o luto por término de uma relação amorosa pode ser mais doloroso e prolongado do que o luto por morte?

Eu sempre acho muito difícil essa ideia de comparar sofrimentos. É um exercício praticamente impossível. Do ponto de vista psicológico, olhamos para uma interação de vários fatores que influenciam a vida das pessoas: fatores internos, externos, as circunstâncias específicas de cada perda, além do que chamamos de fatores de risco e fatores de proteção. Toda experiência de rompimento significativo pode representar um processo de luto, simplesmente porque isso tem a ver com a natureza do vínculo. Investimos afetivamente em uma pessoa, em um trabalho, em um animal de estimação... Colocamos ali o nosso tempo, nossa energia, nossa dedicação. Por isso, a perda pode doer de várias formas e em diferentes intensidades.

Comparar dores não costuma fazer sentido. Podemos dizer, porém, que todas essas situações são potenciais experiências de luto para grande parte das pessoas. O que define a magnitude da dor e do sofrimento são as circunstâncias particulares de cada perda. Uma coisa é o raio cair numa terra arrasada; outra é cair sobre uma árvore ou uma vegetação mais resistente. O impacto é diferente. Da mesma forma, a circunstância da perda importa. Porque uma morte violenta, por exemplo, é uma categoria especial de luto. A violência acrescenta camadas extras de sofrimento, muito distintas de perder alguém por causas naturais. E também importa a condição emocional e social da pessoa enlutada. Uma situação é viver isso contando com boa rede de apoio, acompanhamento psicológico e amigos presentes.

Outra é enfrentar a perda tendo histórico de depressão, pertencendo a uma comunidade religiosa que julga ou exclui, ou vivenciando perdas simultâneas. Se recebo um paciente que teve um câncer, está se separando e ainda corre o risco de perder um animal de estimação, acendem-se todas as bandeiras. Sabemos que precisaremos cuidar dessa pessoa com muita atenção, porque são perdas – ou potenciais perdas – acontecendo em um intervalo muito curto. Esse histórico de dores significativas pode intensificar o sofrimento e gerar outra necessidade psicológica importante: lidar com esse acúmulo de rupturas em tão pouco tempo.

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