CRÔNICA
Você não faz ideia do quanto o mundo testa a nossa paciência
As pequenas loucuras do cotidiano que dizem mais do que imaginamos

Por Franklin Carvalho*

Um velho amigo reclama que não gosta do lugar em que está morando, e eu sugiro que se mude para o centro antigo da cidade, que está abandonado, mas já é um local que ele frequenta assíduo. O sujeito me respondeu com uma sinceridade desconcertante:
— Tudo bem, eu vou ver isso depois. Por enquanto não ando bem da cabeça…
E nós rimos daquela franqueza meio sem jeito, daquela verdade que ficará na parede da memória. Claro que não é comum tratarmos as coisas assim, nem quando estamos sozinhos com nossa própria consciência. A verdade é como um sol, e não dá para aguentá-la o tempo todo. Também não convém forçar o olho alheio a sempre mirar a luz.
Se a gente pensa, por exemplo, nas bobagens das redes sociais e que as milícias estão entranhadas no mercado financeiro, no poder público e até em concursos de miss, sente vontade de esmorecer. Mas a consciência das nossas próprias falhas e nossa esperança (ou ingenuidade) amenizam esse juízo severo sobre o mundo. Alguma paciência é necessária, e certas situações são testes.
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Dia desses, pedi um carro por aplicativo e o motorista foi parar bem mais à frente. Tive que correr para alcançá-lo.
— O lugar indicado foi esse! — Disse-me zangado.
— Eu sei, mas eu vi você passar, fiz vários acenos, levantei os braços, pulei. Você não notou?
— Como é que eu ia notar, se estava dirigindo?
No interior, telefono para o restaurante:
— Boa tarde, pedi um almoço para o bairro do Regalinho, tem já uma hora.
— É que o almoço acabou, estamos fazendo mais para repor. E a mulher passou mal, o rapaz foi levar ela ao hospital. E teve também a chuva desses dias.
— Mas a chuva acabou ontem, não tem a ver com o atraso…
— A chuva é coisa de Deus. Se não gostar vá xingar Deus.
— Amigo, a chuva é de Deus mesmo, e eu não quero xingar ninguém. Pode deixar que espero…
De volta à cidade grande, fim de tarde, espero em pé no semáforo para atravessar a avenida. Trânsito intenso. Ao meu lado chega um idoso, depois uma idosa, depois uma velhinha mais velha que a primeira. O idoso logo comenta: “Se os motoristas tivessem educação, bastava a gente pisar na faixa e todos paravam”. A idosa responde: “Não é assim, não. Aqui tem sinaleira, é nossa obrigação aguardar”. O idoso retruca: “Mas lá nos Estados Uni… Lá nos países desenvolvi… Lá no Sul do país…. Qualquer pedestre, eles param”.
A idosa insiste no seu argumento e a velhinha, falando só para mim, concorda com a outra, mulheres unidas: “É melhor não arriscar, né?”. De repente, os três me olham e eu subo num muro imaginário e fico lá, calado, santo oco num altar.
Eis que o idoso, querendo experimentar sua tese, avança pela rua sem o sinal autorizar. Um automóvel diminui a velocidade, outro breca xingando e o homem sai do outro lado esbaforido, suado, nascido de novo.
A idosa não perde a crítica: “Mal-educado é ele!”. E eu finalmente declaro: “A senhora está coberta de razão!”. Mas acho que só a velhinha mansa se convenceu da minha opinião atrasada.
Logo, no alto, uma luz vermelha abre o mar de carros e os pedestres avançam. Mais acima ainda, sobre um muro maior que o meu, a Razão universal espia tudo também calada.
E é justamente essa Razão antiga, que uns chamam de acaso e outros denominam Deus, que às vezes dá a pouca solução que o mundo ainda acha.
*Franklin Carvalho é autor de Tesserato – A tempestade a caminho (Ed. Noir)
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