Busca interna do iBahia
HOME > MUITO
Ouvir Compartilhar no Whatsapp Compartilhar no Facebook Compartilhar no X Compartilhar no Email

ABRE ASPAS

A Bahia “sempre foi mais aberta” a uma revolução LGBT, diz pesquisador

Baianos mudaram para sempre a cena queer

Gilson Jorge

Por Gilson Jorge

23/11/2025 - 5:06 h
Rodrigo Faour é um respeitado pesquisador de música e autor de livros
Rodrigo Faour é um respeitado pesquisador de música e autor de livros -

Respeitado pesquisador de música, e autor de livros como História da Música Popular Brasileira: Sem preconceitos, Rodrigo Faour estava mergulhado na epistolografia do maestro Tom Jobim. Ou seja, a análise das cartas do músico a partir da época e do ambiente cultural, seu tema de doutorado. Veio a pandemia e, com o isolamento, Rodrigo começou a publicar nas redes sociais fotos pessoais suas em ambientes gays do Rio, como forma de passar o tempo.

A intensa resposta de amigos que frequentavam esses locais o levou a fazer lives com representantes da cena gay, como o seu grande amigo Edy Star, artista baiano que fez história na noite carioca. Foi o bastante para que Rodrigo decidisse trocar o tema do seu doutorado e iniciasse uma pesquisa sobre o universo queer de sua cidade entre os anos 1950 e 1980.

Tudo sobre Muito em primeira mão!
Entre no canal do WhatsApp.

O resultado é o livro A Audácia dos Invertidos: estratégias de sobrevivência e visibilidade LGBT+ Rio de Janeiro (Ed. Record), que será lançado em Salvador no próximo dia 26, às 19h, na Casa Rosa (Rio Vermelho), integrando a programação do Festival Mínimos Óbvios. Nesta entrevista, o autor mapeia a grande influência de artistas baianos, como Caetano Veloso, Gal Costa, Evandro Castro Lima, Silvio Lamenha e o próprio Edy no período que desafiou uma sociedade conservadora e inclusive a ditadura militar.

É notável a presença baiana no universo queer carioca durante os anos 50 e 80, o período analisado no livro. Não apenas com artistas da Bahia na cena, mas também a vinda à Bahia de personagens. Até o bloco Muquiranas ajuda a contar essa história...

É interessante essa pergunta porque o meu livro não é bairrista. Eu apenas mostrei o que encontrei na minha pesquisa. E nesse momento, realmente, o Rio de Janeiro era o epicentro LGBT. Não apenas por mérito dos cariocas, mas por ser uma cidade historicamente importante desde os tempos da Colônia e do Império. Aqui a coisa se desenvolveu de uma forma mais cosmopolita, os costumes obviamente ficaram mais liberais, apesar de sempre ter tido muita repressão. Pessoas de vários estados, e até de fora do Brasil, acabaram se encontrando aqui e criando uma cultura que a gente chama hoje de queer. É por isso que eu fiz questão de frisar no subtítulo as estratégias de sobrevivência e visibilidade. Entre eles, alguns baianos que vieram para cá e foram muito influentes.

Quem, por exemplo?

Edy Star foi um grande inspirador do meu trabalho, até por ter sido meu amigo até os seus últimos dias. [Edy morreu em abril deste ano]. Ele sempre guardou muitos documentos sobre esta cena, desde o tempo em que ele morava na Bahia. As revistas do Rio iam para lá, revistas Cruzeiro, Mundo Ilustrado, e ele guardava as matérias sobre Carnaval, por exemplo, e matérias sobre travestis no Rio. Ele sempre foi muito pra frente. Depois, ele conta no livro o momento em que ele viu Evandro de Castro Lima antes da fama fazendo número de travesti em um cabaré da Bahia. E ele disse que se alguém chamasse Evandro de 'veado' ele quebrava tudo, era violento. Eu contrastei esse depoimento com a revista Manchete de quando Evandro morreu, em 1985, e tinha uma fala dele dizendo que Caetano Veloso era tratado como pioneiro, mas que muito antes do cantor ele já tinha feito muita coisa para ser quem ele era. Bate exatamente com o que Edy falou.

Essa cena de Evandro foi no final dos anos 50. E ele foi um cara que quebrou os limites entre o masculino e o feminino com aquelas fantasias luxuosas, assim como o querido Clóvis Bornay. E Edy foi outro. Imagina. Em 1959, ele conheceu Caetano em Santo Amaro e o Caetano já achou ele uma pessoa muito assumida para os padrões da época. Ele falou isso na entrevista com ele e o Edy que eu fiz. Ninguém me contou. Então, ele já era uma pessoa pra frente e na Bahia não conseguiu grande coisa. Quando ele veio para o Rio, o pessoal do Pasquim o descobriu fazendo uma peça incrível, chamada Cabaré é o décimo show, na Praça Mauá, uma zona de prostituição pesadíssima. E virou um cult. Era um lugar afastado e uma peça em que no final os homens viravam mulheres e as mulheres viravam homens. Tinha de tudo nessa peça.

E aí tem um depoimento de Ciro Barcelos, que trouxe Lennie Dale de São Paulo para o Rio antes de eles fundarem o Dzi Croquettes. Edy também foi pioneiro dessa cena andrógina. Ele interpretava Liza Minelli. A peça acontecia às 2h da manhã, porque tinha coisas proibidíssimas. Mas a sociedade ia em peso ver. E a turma do Pasquim foi. Isso foi decisivo para que o Edy ficasse enfim conhecido.

Quem mais você destacaria?

Caetano é outro personagem. Na fase tropicalista, ele já se vestia de cor-de-rosa. Levou um gringo para fazer um número do É Proibido Proibir e foi vaiado. Ele volta do exílio cabeludo, com aqueles tamancos, ele imitou a Carmen Miranda de uma maneira bem gay, descalço. Isso já foi um negócio. Uma epifania para as pessoas. Tem um depoimento maravilhoso do Luiz Carlos Góes, intelectual e parceiro de Eduardo Dussek, sobre como Gal e Caetano foram realmente pessoas que inventaram moda no Rio de Janeiro daquela época e como isso influenciou as comunidades. A contracultura é muito falada de uma forma mais geral.

Do ponto de vista LGBT, eu nunca vi direito. Esse meu livro reforça a importância da contracultura para a população LGBT, que no Rio foi muito forte. Gal e Caetano não expunham a sua vida pessoal, mas as pessoas que frequentavam Ipanema e iam aos shows viam que eles eram pessoas muito libertárias no comportamento. Nas roupas, cabelos, em algumas canções. Tudo isso fazia a cabeça dessa gente que não aguentava mais aqueles padrões tão rígidos. E o Bloco Muquiranas foi uma das coisas curiosas da minha pesquisa, pois influenciou tanto o primeiro espetáculo em que Edy participou no Rio, em 71, quanto o figurino de Dzi Croquettes. Homens vestidos de mulheres sem querer ser travestis. É muito interessante.

A Bahia sempre foi também um lugar mais aberto. Agora, com a ascensão dos evangélicos, menos. Na época, era um lugar em que a sexualidade, também por influência do Candomblé, era mais fluida. Mais do que é hoje.

Leia Também:

Edy Star foi um dos primeiros artistas brasileiros a assumir publicamente a sua homossexualidade...

Havia Rogéria e Valéria, que como eram travestis, todo mundo sabia a sua sexualidade. Entre os homens gays, Edy foi um dos primeiros. Tinha alguns como Clóvis Bornay, que todo mundo sabia, e ele sempre se posicionou a favor da classe, sem chegar em um veículo e dizer 'eu sou isso ou eu sou aquilo'. Até porque não se podia falar isso naquela época. E o próprio Edy quando falou disse 'eu nunca tive problema de assumir o que eu sou'. Na época da ditadura, você não podia falar 'eu sou homossexual'. Se não, o próprio veículo era fechado. Dentro do que era possível na época, ele foi um dos primeiros.

O próprio Ney conta numa entrevista que ele falava em não ter problema em dormir com homem ou com mulher. E alguns veículos não colocavam isso por medo de represálias. Leila Diniz por muito menos teve que se esconder, porque falou palavrão. No livro tem outro baiano, Silvio Lamenha, que era um cara bem assumido, e teve uma coluna em uma publicação alternativa, o Já, Jornal de Amenidades. Uma raridade que eu achei na minha pesquisa em uma época em que a imprensa gay estava sufocada. Mesmo os fanzines, as pessoas ficavam com medo de distribuir. E houve uma coluna chamada Gay Power, desse camarada, em um jornal editado por Tarso de Castro.

E há uma entrevista claramente gay com Jesus Henrique, um cara que desfilava no Carnaval. Eu não lembro de antes de 71 ter visto algo parecido. E teve outra baiana que marcou época, Simone. Ela foi um ícone para as lésbicas brasileiras, tendo o corte de cabelo muito imitado. E seu romance com a modelo Isis de Oliveira na década de 80 em que apareciam juntas frequentando a alta sociedade também foi muito marcante para as lésbicas do Rio e do Brasil.

O livro menciona o fato de que Edy Star só foi reconhecido como parceiro de Gil na composição de Procissão muito tempo depois que a música foi lançada. O que houve?

Quando Gil foi editar a música, não tinha essa facilidade de comunicação. Gil tinha ido para São Paulo e Edy continuava em Salvador. E naquela confusão para assinar e tudo, Edy não tinha grandes pretensões. Ele nem imaginava o que ia ser o Gil e nem o que ia ser essa música, então ele abriu mão na época dessa parceria. Só que o Edy, como eu, sempre teve mania de guardar tudo o que é documento. Ele guardava tudo. Então, ele tinha prova de que ele realmente era parceiro, porque na época isso saiu na imprensa da Bahia. E aí quando ele teve um câncer e precisou de dinheiro, nos anos 90, ele foi atrás do Gil para regularizar isso. Foi isso que aconteceu.

Mas isso chegou a afetar a relação entre os dois?

Edy tinha um lado meio desligado, porque ele fazia tanta coisa ao mesmo tempo. Ele não era só compositor, só cantor, só ator, só humorista, só artista plástico. E ele gravava pouco também, não era um cara assim que tinha uma carreira muito constante, então isso para ele até determinado momento... Edy era uma pessoa que trabalhava todos os dias. Ele trabalhava nos puteiros do Rio de Janeiro, todos. E puteiro não fecha. Ele tinha muita energia. Então, essa coisa de Procissão foi ficando. Quando ele precisou, foi atrás do Gil.

Fale um pouco do encontro entre Michel Foucault e Madame Satã...

Eu cheguei a essa história através do Luiz Carlos Lacerda, o Bigode, um intelectual, raro cineasta gay assumido. Ele conta essa história, que realmente é verdade. Quer dizer, o encontro só ele que foi testemunha. Mas é verdade que Foucault esteve no Rio nessa época, nos anos 70. E ele, Foucault, como bom gay que era, queria conhecer o bas-fond [palavra francesa que pode significar área degradada ou de intensa atividade sexual]. Luiz Carlos Lacerda, embora fosse gay, na verdade bissexual, não era muito de frequentar o gueto gay, digamos assim. Ele era um cara mais ligado às artes. Mas ele sabia que o Cabaré Casa Nova era o grande ponto de encontro da comunidade naquela época, era um lugar famoso na Lapa. Um lugar com mulheres que, aos poucos, os gays e as travestis foram invadindo. E ele levou o Foucault lá.

E qual foi a surpresa? Em uma das cadeiras estava Madame Satã, que não era travesti. Era um homem gay. Ele só se travestia no Carnaval ou quando ia fazer alguma peça. O nome veio de uma fantasia que ele usou nos anos 30. Luiz Carlos contou a história de Madame Satã para Foucault e ele, um grande intelectual, ficou fascinado. E Madame Satã, claro, não fazia ideia de quem era aquele cara. Não sabia que era um dos maiores gênios da nossa cultura. E o cumprimentou sem grande eloquência. Mas para nós, à distância, é uma coisa engraçada, porque são mundos completamente distantes. Água e vinho, né?

Que personagens dessa cena mais te encantaram?

Olha, existem personagens famosos, personagens anônimos e os famosos apenas no gueto. O objetivo do meu livro não era fazer uma catalogação de LGBTs que circularam pelo Rio de Janeiro, senão eu precisaria de 100 volumes. É muita gente. Só da Globo seriam elencos inteiros de atores, atrizes e bailarinos, mas não era o objetivo. E nem é um livro de entregação. O meu objetivo era fazer alguns estudos de casos. Usar pessoas que foram influentes, como algumas dessas que eu citei, e pegar pessoas que estavam dispostas a falar, além de algumas que já estavam mortas mas eram importantes, como Rogéria e Clóvis Bornay. O Clóvis Bornay começou a fazer fantasias de luxo para homens, coisa que não existia, em 1940. A Rogéria começou a atuar em 64 e foi outra porrada. É muito lá atrás. Uma coisa muito à frente do tempo. Essas travestis da época de Rogéria e Valéria também são figuras de vanguarda, audaciosas. Travesti hormonizada, de peito, era uma coisa raríssima.

A coragem de se hormonizar, sair do Brasil, vencer como artista e depois voltar e triunfar era uma coisa de louco. Rogéria foi um divisor de águas. Nenhuma travesti chegou onde ela chegou. Hoje você tem uma Pablo Vittar com fama internacional, mas ela se restringe à música. Rogéria foi jurada de TV, atriz, humorista, fez novela. Ela fez tudo, foi primeiro time e era respeitada por todas. Ney Matogrosso é outra figura imprescindível. O Brasil é antes e depois de Ney Matogrosso. Ninguém foi mais longe que Ney, nesse sentido. Figura absolutamente fascinante. Ainda é. Mas naquele momento uma pessoa que rebolasse, que se pintasse, na TV, que cantasse com voz de mulher, era uma coisa absolutamente nova.

Siga o A TARDE no Google Notícias e receba os principais destaques do dia.

Participe também do nosso canal no WhatsApp.

Compartilhe essa notícia com seus amigos

Compartilhar no Email Compartilhar no X Compartilhar no Facebook Compartilhar no Whatsapp

Tags:

LGBT

Siga nossas redes

Siga nossas redes

Publicações Relacionadas

A tarde play
Rodrigo Faour é um respeitado pesquisador de música e autor de livros
Play

Filme sobre o artista visual e cineasta Chico Liberato estreia

Rodrigo Faour é um respeitado pesquisador de música e autor de livros
Play

A vitrine dos festivais de música para artistas baianos

Rodrigo Faour é um respeitado pesquisador de música e autor de livros
Play

Estreia do A TARDE Talks dinamiza produções do A TARDE Play

Rodrigo Faour é um respeitado pesquisador de música e autor de livros
Play

Rir ou não rir: como a pandemia afeta artistas que trabalham com o humor

x