CRÔNICA
Você nunca ouviu essa palavra, e talvez não consiga esquecê-la
E se tudo o que chamamos de sobrenatural fosse, na verdade, parte da natureza?

Por ró-Ã*

Como não padeço de exclusividade, deve também acontecer com os outros: informações jamais aprendidas. Tantas vezes já consultei o significado de “anátema” e minha memória se recusa a retê-lo. Há definições, no entanto, que se guardam imediatamente. Qual o motivo? Afinidade orgânica com algumas palavras, resistência natural por outras?
O que fazer com aquilo impossível de elucidar, seja por falta de conhecimento ou porque humanamente carecemos da capacidade de sabê-lo, portanto permanecerá mistério, mesmo se o desenvolvimento das ciências vier a atingir pináculos inimagináveis? Tudo não demonstrado por a+b costuma ser atribuído a forças transcendentes, e então se estabelece cisão irreconciliável entre o sacramentado pelos cientistas e o que despreza comprovação.
Precisamos de fundamentos mas principalmente de colo, daí as superstições, preces, despachos e as adoráveis simpatias: “Escreva num papel branco o seu pedido. Acenda uma vela cor-de-rosa e segure o papel firmemente, concentrando-se em seus sentimentos. Coloque o papel dentro de um pote de mel, dizendo: ‘Com este mel, atraio meu desejo’”. Caso funcione, a mesma certeza do vaqueiro cara a cara com o Saci se estabelece, indubitável como a energia que nos move.
Amigos versados em Física me falam de uma Teoria das Cordas, ou Supercordas, sobre a qual muitos estudiosos têm se debruçado; contudo, por mais plausível que pareça, não tem como ser validada, pelo menos por enquanto. Algum dia será? E, caso aconteça, aproximará São Tomé daqueles que não precisam ver pra crer?
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Anos atrás, a amiga Sylvia me convidou para uma palestra acerca da alma das pedras. Quero hoje lhe pedir desculpas pela indelicadeza: “Tanta aporrinhação em minha vida, quero lá saber de alma de pedra?”. Acontece, porém, que desde então diversas ocorrências me instruíram a não fazer pouco de quem remove o prefixo da palavra “sobrenatural”: todos os fenômenos são manifestações legítimas da Natureza.
Ainda me vejo em cima do muro em relação a muitas questões metafísicas, superfície encimada por cacos de vidro mas que não me afasta, como aos ladrões – embora eles e eu tenhamos a mesma pretensão de nos apoderar do que não nos pertence.
Tenho lado bem definido quanto ao mundo material; deriva de intuições viscerais que sempre me bastaram. Só recentemente comecei a estudar o pensamento de quem eu mal conhecia, porém sentia próximo. Em 1985, primeira visita a Londres, encasquetei em visitar o túmulo de Marx, quando só sabia que foi ele quem espalhou que a religião é o ópio do povo. O que levou minha versão muito mais bestona a querer prestar homenagem ao barbudo? O materialismo dialético teria a resposta? A sincronicidade proposta por Jung, talvez sim.
Este mundo não me parece somente concreto, suspeita que se impõe como autoridade e me confirma, berrando de profundezas que não mais me atrevo a desobedecer. No mínimo, estou em concordância com minhas partes constituintes, a exemplo de pele e órgãos – entre eles, a vesícula extirpada por causa de uma pedrinha quase invisível, mas os médicos consultados acharam muito risco deixá-la nas mãos do insondável Destino. Continuo revoltada pelo pedaço arrancado; acho impossível a inexistência de outra solução, talvez mais trabalhosa e não tão bem remunerada.
Minha tendência é acreditar que o Regente tem preocupações mais forçosas do que nossos apertos e cálculos biliares, por isso sou de rocha com santos e outros espíritos: aqui viveram e manifestam o poder de dar carteiradas. A mim já me valeram muito, desde quando eu era adolescente e rogava à Virgem que meu pai me deixasse ir a uma festinha. O bicho era brabíssimo, mas ela sempre dava um jeito. Em minha ignorância e horror à presunção, apelo para a equivalência entre matéria e energia.
Numa viagem a Cachoeira, grudou em mim um rapazote de seus 13 anos, se oferecendo como guia. Me levou a diversos lugares, os quais identificava, dizendo: “Quer que eu exfrique? Vou exfricar!” E assim desfiava com entusiasmo e confiança uma série de nomes e datas, que jamais saberei se eram fruto de aprendizado ou imaginação. Nem importa; não me recordo de nada, mesmo. Importa é que nunca mais a lembrança do menino e suas exfricações me deixaram sozinha.
*ró-Ã é autora do livro Dor de Facão & brevidades
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