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Ser gordo ainda é permitido? O que a moda do Ozempic diz à sociedade
Ozempic, Mounjaro e Wegovy: canetas ganharam fama mundial nos últimos anos
Por Pedro Hijo

Ozempic, Mounjaro e Wegovy. Os três medicamentos em formato de caneta ganharam fama mundial nos últimos anos pelo uso voltado ao emagrecimento. Na Bahia, as buscas online pelos nomes dos remédios triplicaram nos últimos 12 meses, de acordo com a plataforma Google Trends. Disponíveis em farmácias brasileiras sem exigência de receita médica, as "canetas" viraram os principais itens de desejo de quem sempre buscou a perda de peso.
Antes da popularização desses remédios, movimentos de combate a pressões estéticas ou discriminação contra pessoas gordas ganhavam força no Brasil e no mundo. Agora, eles se deparam com um novo desafio: como a maior acessibilidade ao emagrecimento rápido vai impactar a militância a favor da diversidade corporal e contra a gordofobia? As principais vítimas dessas opressões ficarão mais solitárias nessa luta?
Para muitos, o corpo magro deixou de ser um ideal estético e virou uma possibilidade tangível, ainda que as “canetas” sejam vendidas por preços superiores a R$ 1 mil. Professora e pesquisadora universitária em temas relacionados ao corpo gordo, Malu Jimenez enxerga com preocupação a ascensão dos remédios usados para emagrecimento: "É como se para ser feliz, belo e saudável, fosse preciso estar magro".
Malu conta que sempre foi gorda. "Sentia o preconceito, era como se o meu corpo chegasse antes de mim em todas as minhas relações", afirma. Em 2014, descobriu o movimento antigordofobia e se tornou estudiosa da área. "Fiquei maravilhada porque comecei a entender o meu lugar no mundo". Malu é autora da pesquisa acadêmica Lute como uma gorda, sobre a discriminação com corpos gordos, e promove rodas de conversa, campanhas e debates sobre o tema.
Nos últimos anos, a pesquisadora tem acompanhado o avanço da indústria do emagrecimento, estimulado pelo sucesso comercial do Ozempic. O medicamento, desenvolvido para o tratamento do diabetes tipo 2, ficou famoso por inibir o apetite.
Famosos que usam o Ozempic
Usado por celebridades como as atrizes e apresentadoras americanas Oprah Winfrey e Whoopi Goldberg e os cantores brasileiros Wesley Safadão, Zé Felipe e Luiza Possi, o Ozempic passou a ser desejado como um atalho para a perda de peso.
Para Malu, o crescimento do uso de medicamentos como o Ozempic é motivado por uma lógica capitalista baseada em padrões estéticos: “A indústria farmacêutica se aproveita dessa busca incessante por um corpo magro, influenciando políticas públicas, classificações de doenças e impondo protótipos corporais”.
Ao mesmo tempo, profissionais da saúde apontam que as “canetas” se tornaram aliadas na melhora da qualidade de vida de pacientes com obesidade. A médica endocrinologista Lilian Chehade explica que o emagrecimento pode ajudar no controle glicêmico, na diminuição da gordura hepática e nos níveis de pressão arterial.
No entanto, ela salienta a importância do acompanhamento especializado e dos exames laboratoriais para avaliação da necessidade do uso das medicações: "Cada caso é único".
O analista financeiro baiano Igor Teles pesava 158 quilos quando começou o tratamento contra obesidade com Wegovy. Em três meses, perdeu 15 quilos. O remédio tem o mesmo princípio ativo do Ozempic. "O Wegovy surgiu com a indicação específica para sobrepeso, porque tem doses mais elevadas que o Ozempic", diz Lilian.

Foram os exames de Igor que o levaram a optar pelo tratamento. "Eu estava com açúcar alto, gordura no fígado e pré-diabético", lembra o baiano. Ele afirma que sempre foi gordo, mas que, recentemente, o peso se tornou um obstáculo. "Cheguei a ganhar 20 quilos em dois anos, foi quando procurei por ajuda".
O uso do medicamento melhorou os exames e a autoestima de Igor, levando o analista a adotar uma rotina de exercícios e uma dieta mais equilibrada.
Ainda que os medicamentos possam ajudar na melhoria da qualidade de vida de pacientes como Igor, a pesquisadora Malu Jimenez problematiza a associação entre magreza e saúde. "A gente precisa começar a questionar o que é saúde", declara.
A ativista aponta que é comum que pessoas magras não sigam rotinas de hábitos sadios e, ainda assim, sejam reconhecidas como pessoas saudáveis pelo formato de seus corpos.
"Se a preocupação fosse saúde, de verdade, haveria políticas públicas para pessoas gordas, acolhimento, incentivo à saúde mental e a uma justiça mais inclusiva", afirma Malu, que segue na militância contra a gordofobia.
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Diversidade corporal e ativismo gordo
Outros movimentos relacionados à diversidade corporal perderam força com o sucesso de medicamentos como Ozempic, Mounjaro e Wegovy. Para a consultora de imagem pessoal e ativista baiana Kika Maia, os grupos que defendem a inclusão de corpos diversos foram esvaziados nos últimos anos. “Não existem mais grandes representantes dessa busca por aceitação social. Existe uma retração no debate”, diz Kika.
Malu Jimezez explica que existem diferenças entre o ativismo gordo, do qual faz parte, e movimentos pautados pela diversidade corporal, como o Body Positive e o Corpo Livre.
Fundado em 2018 pela jornalista carioca Alexandra Gurgel, o Corpo Livre se popularizou nacionalmente e Alexandra se tornou um dos expoentes da causa. Malu explica que essa e outras iniciativas similares tratam sobre “pressão estética” e não necessariamente sobre direitos de pessoas gordas.
Pressão estética, explica a professora, é o conjunto de normas, expectativas e padrões impostos pela sociedade sobre a aparência física das pessoas: "O ativismo gordo está focado nos direitos humanos e não na estética".
De acordo com a pesquisadora, a militância antigordofobia reivindica a acessibilidade em equipamentos públicos como transportes e hospitais, que ainda têm carências estruturais para este grupo. "Há quem não consiga macas, aparelhos de ressonância, cadeiras para sentar, estou falando de um tipo de organização social que exclui o gordo".
Já o discurso a favor da diversidade corporal, reproduzido pelos grupos Body Positive e Corpo Livre, foi, na percepção de Kika Maia, cooptado pela indústria farmacêutica. O movimento defende o respeito a pessoas gordas ao invés da culpabilização.
Os médicos utilizam desse discurso, dizendo ‘você não tem culpa, mas se não tomar o remédio, estará sendo negligente’. E trata-se de um remédio que é caríssimo. Sempre recai sobre o indivíduo, e não sobre o social
Kika passou muitos anos tentando perder peso. Ela fez diversas dietas restritivas, se submeteu a exercícios físicos intensos e usou medicamentos para emagrecer, até que notou que a busca por um corpo ideal seria constante e exaustiva. "Eu não queria ficar neste sacrifício eterno", comenta a consultora, que não pensa em usar as canetas emagrecedoras.
A mudança de comportamento abriu novas portas na carreira de Kika. Ela passou a pesquisar sobre o corpo gordo na moda e buscar por marcas de roupas mais inclusivas que pudesse vestir e sugerir para as clientes de consultoria. "Quando eu vi as dores das mulheres que eu atendia, entendi que essa insatisfação com o corpo é algo coletivo", pontua.
A consultora segue lutando pela inclusão social de pessoas gordas, mas lamenta pelo enfraquecimento da causa. “O corpo magro nunca deixou de ser o padrão de beleza, mas houve a tentativa de inserção do corpo gordo no âmbito social, o que não existe mais”, analisa Kika, que associa essa retração com a popularização dos medicamentos emagrecedores. “O corpo gordo passou a ser negligenciado novamente. E, enquanto sociedade, a gente voltou a buscar o padrão inalcançável”.
Risco dos remédios para emagrecer

Especialista em transtornos alimentares, a psicóloga baiana Roberta Mota explica que o crescimento da procura por remédios para emagrecer tem relação com uma busca incessante da sociedade por soluções rápidas. A pressão estética intensifica comportamentos como o de manter dietas restritivas e exercícios excessivos, que comprometem a saúde.
“A crença de que todo corpo magro é saudável e todo corpo gordo é doente é incorreta”, afirma Roberta. Ela defende, no entanto, que a associação entre obesidade e doenças crônicas é inegável. A obesidade é considerada uma doença e fator de risco para outras enfermidades. Essa definição foi oficialmente reconhecida há 77 anos pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
A psicóloga destaca ainda que o estigma e a discriminação contra corpos gordos podem gerar baixa autoestima, tristeza, raiva e até isolamento social. “Essa visão distorcida favorece o uso indiscriminado de medicamentos para emagrecer, muitas vezes com consequências graves para a saúde”, completa.
A esteticista baiana Adriana Oliveira diz que "sempre lutou contra a balança". Ela se submeteu a uma cirurgia bariátrica há 14 anos para emagrecer, viu as taxas dos exames melhorarem, mas um recente princípio de diabetes acendeu o sinal vermelho de que deveria consultar um médico.
Passou a tomar Ozempic e emagreceu oito quilos em poucas semanas. "Não posso descuidar nunca", comenta Adriana, que já fez uso de outros remédios para emagrecer e sofria com crises de ansiedade por não conseguir atingir o peso desejado.
De acordo com Roberta, a preocupação extrema com o corpo pode prejudicar a saúde física e psicológica, favorecendo o surgimento de transtornos mentais como depressão, ansiedade e distúrbios alimentares. "É importante não patologizar tudo e todos, mas sim considerar esses transtornos de forma mais atenta e sem estigmas", alerta.
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