ABRE ASPAS
Valdecir Nascimento: "O feminismo negro ainda enfrenta uma certa incompreensão"
“Ganhamos a narrativa mas não mudamos a estrutura”, diz a fundadora do Instituto Odara
Por Gilson Jorge
No próximo dia 25, às 14h, um grupo de mulheres vai se reunir na Praça da Piedade para a Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver, que termina com uma caminhada até o Terreiro de Jesus. Esse é o ponto alto do Julho das Pretas, calendário de eventos do feminismo negro desde 2013. Na concentração, das 14h às 15h, o microfone vai estar aberto a quem quiser se manifestar.
Mas a historiadora Valdecir Nascimento ressalta que a fala está vetada a quem estiver concorrendo nas próximas eleições. "Se pegar o microfone, a gente dá porrada", brinca Valdecir, coordenadora de captação de recursos e articulação política do Instituto Odara. Fundado em 2010, o instituto atua na luta pelos direitos femininos e na formação de mulheres que querem entrar para a política.
Nesta entrevista, a mestre em educação pela Universidade do Estado da Bahia (Uneb) fala sobre a luta contra o patriarcado e a necessidade de ter mais mulheres negras na política.
O feminismo negro tem suas pautas específicas em relação ao feminismo tradicional. Por que é importante demarcar essa diferença?
Apesar de alguns segmentos do movimento negro terem uma visão crítica do feminismo negro, porque dizem que é uma qualificação do feminismo hegemônico, há uma certa incompreensão. O feminismo negro leva em consideração processos organizativos das mulheres negras, ele considera produções intelectuais de mulheres negras a partir de sua realidade. O que produz a ativista negra é a sororidade. Não são estudos e pesquisas que nos produzem. E a perspectiva do feminismo negro não é o homem negro como nosso alvo principal, é a luta contra o patriarcado. E o patriarcado é branco. O homem negro absorve migalhas de um patriarcado branco. No dia em que ele tomar vergonha na cara, ele vira outra coisa. Ele não é o patriarcado branco, não é o gestor da família negra e muito menos tem os privilégios que os homens brancos têm. O feminismo hegemônico tem um sujeito alvo, que é o homem branco heteronormativo patriarcal, que oprime as mulheres e, claro, os negros também. Essa é uma diferença fundante para se pensar o feminismo negro.
O que fazer para eleger mais mulheres negras nos próximos pleitos?
Em uma sociedade capitalista, ninguém se elege sem dinheiro. A quantidade de dinheiro que é jogada nas candidaturas é absurdamente determinante de quem se elege ou não se elege. Você não se elege por estar engajado há 40 anos no movimento negro. Bote minha cara aí para ser candidata, ninguém vai votar em mim. Eu não tenho dinheiro para segurar os processos que determinam o que é uma eleição. Essa é a farsa da democracia no Brasil. Supostamente, todos podem se candidatar. Mas é uma farsa. Um cara como Neto ou como o governador da Bahia elege quem ele quiser. Porque têm uma máquina na mão para garantir isso. Eu não tenho, o Odara não tem. A gente até queria. A gente quer mais mulheres nesses espaços de decisão. As mulheres legislam de uma outra forma. Se você acompanhar a incidência de mulheres na Câmara Municipal e na Assembleia Legislativa, vai ver que elas estão trazendo pautas que impactam na vida das mulheres, na vida da maioria da população. Os homens, sejam eles negros ou brancos, estão vinculados a outros processos de pensar a sociedade. Existe um distanciamento muito grande entre a vida real e a política...
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Como na questão do aborto, por exemplo...
Exatamente. Aí você não é a favor do aborto, mas tem não sei quantos casos de crianças com microcefalia por conta do Zika Vírus e quer dar um salário-mínimo às mães para cuidar de meninos com microcefalia. Não existe. Na verdade, o salário-mínimo não existe para ninguém. Mas para uma mãe que tem uma criança com microcefalia, que precisa de várias terapias, de subir e descer, de camas e de cadeiras especiais... se você liberar o aborto Dona Maria pode decidir se ela vai querer ou não ter esse filho com uma necessidade especial, qualquer mãe de um filho com microcefalia dedica a vida a essa criatura. Isso tem que ser discutido de forma séria. E homem não pode decidir o que a mulher vai fazer com o corpo. E certamente vai ter um monte de mulher que não vai abortar. Não é a liberação do aborto que vai generalizar a prática, mas é o controle sobre o nosso corpo. E só homem pode sentar para discutir sobre estupro e gravidez, inclusive de crianças. A guerra do aborto é contra crianças de 10 a 12 anos que engravidam, e que acontece na maioria das vezes dentro de casa. O pai, o irmão, o tio, o primo.
Como surgiu o Julho das Pretas e com que finalidade vocês promovem a marcha no 25 de julho?
Desde 2013, quando nós inventamos o Julho das Pretas, pensamos que devemos ir para a rua. Porque o movimento precisava da visibilidade sobre porque o Julho e por que a gente estava fazendo esse conjunto de atividades para mostrar a nossa agenda e dizer que somos agentes políticos. A marcha começa no terceiro ano após a ideia do Julho. Talvez o Julho tenha funcionado nos primeiros anos como uma estratégia de mobilização e depois fomos para a rua. Queríamos reagir, demonstrar. E sem dúvidas, a perspectiva da Marcha de 2015 em Brasília nos impulsionou ainda mais a fazer a marcha em Salvador. Nós queríamos marchar em Brasília, mas queríamos um processo de mobilização permanente aqui. Nós começamos a fazer o Julho das Pretas na Bahia e hoje ele se expandiu por todo o país. Nós também idealizamos a Rede de Mulheres Negras do Nordeste. E no dia 25, Dia Internacional da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha, não é só Salvador que faz a marcha. O Brasil inteiro faz marcha nesse dia. Foi em 1992, na República Dominicana, durante as comemorações pelos 500 anos da América, que nós começamos a protestar e decidimos que esse seria o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-americana. De lá para cá, nós percebemos o Julho das Pretas aparecendo apenas como homenagem de vereadores e prefeitos. Começamos a questionar que homenagens não mudavam nossa realidade, não colocavam dinheiro no nosso bolso, não aumentavam os nossos empregos. Queríamos abrir um diálogo para mostrar o que aflige as mulheres negras. Temos uma agenda coletiva hoje com mais de 600 atividades em todo o Brasil. Desde discutir com as crianças em Mussurunga o porquê de bonecas negras à incidência política no parlamento. Estamos em país que mata um jovem negro a cada 23 minutos. Eu não posso ser homenageada pelo mesmo Estado que mata meu filho. Eu não posso receber uma medalha no dia 25 de julho, como se isso resolvesse a vida da gente. O Julho das Pretas, o dia 25 e a marcha nascem nessa engrenagem de protesto.
A propósito da morte de jovens negros, nós tivemos recentemente o episódio de violência policial no Rio de Janeiro contra filhos de embaixadores. O governador Cláudio Costa disse que era complicado para um policial saber se era filho de um embaixador ou alguém que cometia um delito. Isso mostra que há uma normalização da violência policial contra pessoas negras...
Para negros, o tratamento é esse. Se é filho de embaixador, pede desculpas. E a gente está dizendo que não. Independentemente de quem é o pai, meninos e meninas negras têm que ter liberdade de circular, porque segundo a Constituição brasileira, nós temos direito à livre circulação e a polícia não pode nos abordar porque a gente é preto e está andando na Barra, em Copacabana ou na Avenida Paulista. Nós temos liberdade de circulação.
Por falar em São Paulo e Rio, na virada para este ano completaram-se 10 anos dos rolezinhos, como ficaram conhecidos os passeios em grupos de jovens da periferia em grandes shopping centers, uma tentativa de normalizar a presença de jovens negros nos centros de consumo. Como a senhora avalia os efeitos dos rolezinhos uma década depois?
Na realidade, eu faço uma análise de que nós ganhamos a narrativa. A narrativa sobre racismo e sobre a questão racial está na ordem do dia. Mas nós não mudamos a estrutura, a ordem. Eu estava dando aula outro dia para afro-americanas e eu lhes disse que no Brasil o racismo chegou antes do capitalismo. O que prova isso? Eles não querem que a gente consuma. É natural a gente sofrer constrangimentos em espaços de consumo. Em uma sociedade capitalista de consumo todos estão aptos a consumir, qualquer sujeito está livre para consumir. Quando você pensa no Brasil, não é essa a realidade. E isso não depende da roupa que você está vestindo. O cara que entra na Zara é porque tem dinheiro para comprar ali...Eu não entro na Zara... mas você sendo negro, o capitalismo brasileiro não permite que você acesse.
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Mas pensando especificamente nos rolezinhos, a senhora vê que houve um impacto?
É importante a gente refletir, porque a sociedade brasileira, inclusive a esquerda branca, não consegue identificar todas as estratégias que a população negra vai construindo e inventando para reagir. E nem todas as estratégias são oriundas do movimento negro. O rolezinho, por exemplo, foi acolhido aqui por Ana Célia da Silva, Amanaiara Miranda, e por um grupo de educadores que colaram no rolezinho, mas quando você pensa em São Paulo foram os jovens insatisfeitos com aquela ordem. O ganho foi esse, que pessoas comuns que antes não reagiam, passam a reagir em função de uma narrativa que se estabeleceu, a de que racismo é crime. Uma outra coisa, é que as pessoas pensam que o nosso movimento é espontâneo. Não é. Ele tem um projeto, uma perspectiva. E quando eu digo que ganhamos a narrativa é porque o racismo está na ordem do dia, até Vini Jr. virou estrela da reação ao racismo, que há 30 ou 40 anos atrás não tivemos a possibilidade de uma visibilidade tão grande aos que lutaram contra o racismo no futebol. E havia alguns que nem queriam tocar no assunto. Então, nós ganhamos a narrativa, mas não mudamos estrutura. Na semana passada, tivemos dois trabalhadores mortos pela polícia e a imprensa não questiona o argumento. O mesmo argumento da década de 80. Eu tenho 43 anos no movimento negro. A polícia matava o jovem negro na década de 80 com o argumento de que ele reagiu à prisão. A polícia mata os jovens negros hoje com o mesmo argumento: reagiu à prisão, estava envolvido. Como você está envolvido e a família não sabe? Não é possível. Nossas famílias são tão ligadas umas às outras, por estratégia de proteção, que é lógico que se meu irmão estiver envolvido com o tráfico nós vamos saber. E a justiça continua omissa nessa questão do argumento. Nós provamos por A+B que o auto de resistência é fraude. Você não pode ter resistido tomando um tiro na nuca.
E os preparativos para a Marcha?
Este ano, a marcha vai ser grandona. Porque estamos nos preparando para o ano que vem ir a Brasília. Queremos levar em 2025 um milhão de mulheres para lá e dar uns puxões de orelha em Lula, que está sacaneando com a gente, falando besteira demais, como dizer que não há pessoas negras para ocupar cargos de direção e ministério. Ele nem era gente quando já tinha preto pensando.
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