REI DO CRIME
Ravengar: a ascensão e queda do maior império de drogas da Bahia
No auge, traficante controlou 90% do comércio de entorpecentes
Por Gabriel Moura

Um Chevrolet Vectra forçava ao máximo o motor 2.0, chegando a 160 km/h na Linha Verde, para escapar de dois Ford Fiesta com giroflex berrando. No volante, Raimundo Alves de Souza, mais conhecido como Ravengar, descobriu da pior forma que seu grande talento era traficar drogas, não ser piloto de fuga.
Ele até tentou escapar da polícia desviando para Monte Gordo, distrito de Camaçari, mas a manobra mostrou-se equivocada. As estreitas ruas da vila obrigaram-no a reduzir a velocidade, a possibilitar que a viatura emparelhasse com o sedã, deixando o fugitivo na mira do policial, que não hesitou em disparar.
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Aquele tiro de .40, disparado em 16 de fevereiro de 2004, atingiu o tórax de Ravengar, que foi preso em seguida e levado ao hospital; aquele tiro de .40 deu fim ao maior império de drogas que a Bahia já viu; aquele tiro de .40 iniciou a disputa pelo controle do tráfico em Salvador que dura até hoje.
Início de tudo
Se hoje a Praça da Sé e o Centro Administrativo da Bahia (CAB) monopolizam a administração em Salvador, entre os anos 80 e 2000 um terceiro endereço emergiu como polo de poder: o Morro do Águia, no Retiro. Lá ficava o bunker que servia como centro de operações de Ravengar.
Maior traficante da história da Bahia, ele dominou o comércio de cocaína na capital. No auge da fama, chegou a controlar 90% do mercado em Salvador. No anonimato, ele era só mais um entre os muitos taxistas da cidade disputando passageiros.
Nos anos 70, Raimundão, cria da Liberdade, fixou seu ponto no Pelourinho. Rodando pelas ruas do Centro Histórico, ele se aproximou de turistas, artistas, intelectuais, jornalistas e boêmios. Passageiros que, vez ou outra, desabafavam durante as corridas sobre a dificuldade de comprar drogas de maneira segura e prática em Salvador. O taxista viu ali uma oportunidade.
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Fez amizade com traficantes e passou a vender narcóticos aos passageiros e o carro para fazer delivery à clientela VIP, incluindo famosos cantores e políticos.
Após entender o mercado, percebeu que a melhor forma para lucrar mais era comprar a droga no atacado com os grandes distribuidores e vender no varejo para os clientes grã-finos.
Abandonou a mobilidade do táxi e fincou raízes no Morro do Águia. O local era estratégico: próximo da BR-324, facilitando a chegada dos entorpecentes que, quase sempre, vinham de Feira de Santana. Além disso, tinha a Barros Reis ali do ladinho para escoar o produto para o Centro da cidade.
Pablo Escobar baiano
No Morro da Águia, Raimundão logo conseguiu o apoio da população adotando táticas similares às de Pablo Escobar em Medellín, na Colômbia. Distribuía dinheiro para a população, ajudava na compra de gás e comida, fazia obras na região e fazia festas com cerveja liberada.
O traficante também prestava atenção na juventude, dando 'emprego' aos adolescentes e jovens. Os mais acanhados ocupavam funções como fogueteiro (aquele que avisa quando a polícia se aproxima) e aviãozinho (o que vende a droga), enquanto os 'corajosos' recebiam armas para defender o território e 'cobrar' os viciados caloteiros.
Em um lugar onde o poder público virava as costas, ele virou liderança. Dava migalhas travestidas de caridade à população e, em troca, recebia proteção, transformando-se em quase incapturável pela polícia, mesmo circulando tranquilamente pelas ruas.

Nos anos 80, aproveitava-se dos laços que criara com policiais e políticos para expandir os negócios, atendendo cada vez mais bairros, como Itapuã e Fazenda Grande do Retiro.
Nesta mesma época, passou a ter um vulgo para chamar de seu. Em 1989, foi ao ar na TV Globo a novela 'Que Rei Sou Eu?'. Um dos personagens mais marcantes da trama era Ravengar, interpretado pelo fundamental Antônio Abujamra.
Na ficção, escrita por Cassiano Gabus Mendes, Ravengar era o conselheiro mor do rei e da rainha, e fazia de tudo para ter poder. Na vida real, Raimundo construiu o império o que tanto almejava.
Auge
Na década de 90, Ravengar consolidou-se como maior traficante da Bahia. Neste mesmo período, passou a "diversificar" seus investimentos, abrindo um um bar chamado Reluz - numa referência à cocaína -, a casa de espetáculos chamada Megashow, creche e até agenciando bandas de samba.
Estes lugares eram usados para lavar dinheiro, vender drogas e passar uma imagem positiva de Raimundo. Para todos os efeitos, ele sempre se apresentava publicamente como um "empresário da noite soteropolitana".
Em 92, ocorreu uma das raras operações para tentar acabar com o reino do traficante. Os policiais prenderam uma série de usuários, fizeram busca e apreensão no bar Reluz e no ‘QG’ do magnata da droga. Acharam tudo, menos Ravengar.
Uma reportagem de A TARDE sobre a operação, publicada em 16/03/1992, explica os planos e modus operandi do criminoso.
"Ele anuncia abertamente que pretende transformar o Campo do Águia num ponto de drogas semelhante aos morros do Rio de Janeiro. Já é dono de dezenas de residências no local, algumas adquiridas de forma questionável. Quem não comunga com suas ideias e ações é obrigado a se mudar", diz o texto assinado pelo jornalista Erival Guimarães.
A sorte do traficante mudou em 17 junho de 95. Naquele dia, policiais camuflados subiram até o Campo da Águia como se fossem usuários à procura de pó. Após serem abordados por um “aviãozinho” chamado Augusto Pereira dos Santos, conhecido como “Neguinho Augusto”, deram voz de prisão ao rapaz. Detido, Augusto guiou os agentes até a casa de Ravengar, que foi capturado.
Sem saída, Ravengar tentou jogar uma porção de cocaína que carregava no vaso, além de entrar em luta corporal com o policial chamado agente Barbosa. Na casa do criminoso foram encontradas armas, cartuchos de calibre .12, drogas, fotos e uma conta de telefone no valor de R$ 655 – valor extremamente alto para a época – revelando ligações para Ponta Porã, Roraima e Paraguai, locais de onde adquiria a droga.

Vergonha policial
A prisão durou apenas alguns meses. Solto, Raimundão mudou de estratégia para garantir a perene liberdade. Policiais de baixa patente, que antes eram apenas subornados, foram contratados para fazer a segurança pessoal, da boca de fumo e demais negócios 'legítimos' do criminoso.
Já a verba da propina foi turbinada e redirecionada: Ravengar comprou o apoio de delegados, políticos e até comandante da Rondesp. Por quase 10 anos, choviam acusações contra o homem, todo mundo da Barra até Itapuã sabia das atividades ilegais, mesmo assim nenhuma operação era feita. Quando as denúncias chegavam aos “de cima”, eram imediatamente barradas.
A sorte mudou quando o delegado Edimilson Nunes de Almeida assumiu o Departamento de Tóxicos e Entorpecentes em 2003. Ele tinha ambição de tornar-se chefe da Polícia Civil baiana e elegeu a captura de Ravengar como estratégia perfeita para catapultar seu nome.
“Os moradores estão sufocados e muitos deles evitam dizer onde residem para que não sejam confundidos como empregados de Ravengar. A situação já está servindo de chacota. A polícia e a sociedade não podem ficar à mercê de um traficante", disse o policial em entrevista ao jornal A TARDE à época.
Por meses, o policial aglutinou provas contra o chefão e, em janeiro de 2004, liderou duas operações nos dias 9 e 11 daquele mês. Em ambas, Ravengar escapou.
Em compensação, foram detidas mais de 200 pessoas, incluindo policiais que faziam a segurança do bandido e membros da high-society soteropolitana que eram usuários da branquinha.
Na relação de compradores de drogas estavam médicos, empresários, advogados, funcionários públicos de alto escalão, advogados e estudantes de renomadas instituições de ensino.
“Os famosos que não podem aparecer lá com medo de escândalo mandam representantes. Mas a gente conhece todo mundo”, disse um morador em anonimato, sobre artistas renomados que também eram usuários.
Enquanto isso, Ravengar desfilava pelas ruas do Morro da Águia um dia após escapar da operação. “Aqui tem pessoas sérias, mas tem muito aliado dele. Gostaria que a polícia realmente desmantelasse o tráfico de drogas, mas acho que será difícil, porque tem muita gente grande envolvida que dá poder a ele”, garantiu, em entrevista à A TARDE na época, outro residente da área.
Outros moradores apontaram que juízes e até um deputado federal com "muita influência em Brasília" também eram aliados do traficante. “Por que a polícia não ia atrás dele? Porque não tinha ordem para prendê-lo”, revelou o presidente do Sindicato da Polícia Civil à época, Crispiniano Daltro.
Ou seja, a operação não prendeu o líder do crime organizado em Salvador, mas conseguiu algo mais importante, expor aos baianos os bastidores da operação de Ravengar. A partir deste momento, prendê-lo passou a ser questão de honra e prioridade número 1 do então governador Paulo Souto para não apenas limpar a barra da polícia, mas de todo o poder público.

Suposta pedofilia e idolatria
Foi mais de um mês de uma busca que iniciou-se, oficialmente, em 16 de janeiro, dia em que a fortaleza de Ravengar foi alvo de uma busca e apreensão. Ao entrar na mansão de três andares, a polícia encontrou poucas provas, mas destrinchou a personalidade do bandido.
Logo no início da operação, os policiais receberam uma ligação do próprio Raimundo. Ele quis saber o que os agentes faziam por lá e ainda os “advertiu”, alertando que “tivessem cuidado para não plantar nada na casa dele, pois não havia droga por lá”.
Também chamou a atenção dos policiais e promotores a grande quantidade de fotos em cores, inclusive, de adolescentes do sexo masculino, em trajes femininos e poses eróticas, muitos deles deitados na cama, encontrada no interior da casa do traficante, levantando a suspeita de crimes de pedofilia. Esta acusação nunca foi pra frente.
No térreo, havia vários compartimentos, como oficinas, sala de estar, grandes aquários com muitos peixes, uma loja, onde ficava guardado o material esportivo e outros objetos. As paredes eram pintadas com cores berrantes, com desenhos alusivos ao movimento negro.
No segundo andar, numa ampla sala, há um televisor de 52 polegadas – considerado de alto luxo na época; numa área contígua, uma mesa de sinuca, dois cofres e outros objetos, além de uma cozinha bem instalada. Nessa sala, Ravengar mostrava sua extravagância com pinturas de líderes políticos, entre outras personalidades, a exemplo de Adolf Hitler, Fidel Castro, Gandhi, Zumbi dos Palmares, Irmã Dulce e Antônio Carlos Magalhães.

Numa parede lateral, a figura de um policial algemado e preso. Na outra, a exposição de uma pessoa sendo julgada. Em outra parede, desenhos de helicópteros de emissoras de televisão “filmando” um possível ataque ao Morro do Águia numa crítica à espetacularização da mídia em relação aos criminosos.

No último pavimento, móveis e geladeira, uma suíte com um bar cheio de bebidas, dentre as quais uísques finos e cachaça de vários alambiques brasileiros. Grande parte desse material, inclusive as pré-históricas fitas de videocassetes, pastas, documentos e o CPU de um computador foram apreendidos, além de uma planilha com anotações dos nomes dos clientes e os valores correspondentes ao preço do papelote de cocaína. Nas duas folhas, totalizava a quantia de R$ 950.
Na época, a grama da cocaína era vendida entre R$ 20 e R$ 25.

Inabalável
A devassa ao lar não intimidou Ravengar, que circulava tranquilamente pelo Morro da Águia dias depois. “Ele não fica aqui o tempo todo. Parece estar sondando a área. Vem, demora um pouco, e vai embora. Depois, volta novamente. Faz isso várias vezes”, disse à época um dos moradores que se identificou apenas pelo prenome Antônio, falando sobre a rotina diária do fugitivo.
Os dias tornaram-se semanas, e a PM seguia incapaz de rastrear Ravengar. Enquanto isso, policiais trocaram a farda pela algema, sentando no banco dos réus. Dentre eles um militar de apelido Juca, e um soldado identificado como Jairo, que atuava como segurança da Mega Show, casa de entretenimento de Raimundão.
A relação entre polícia e bandido era tão próxima que a Mega Show patrocinava o Jaguar, bloco da Lavagem do Bonfim que era ligado ao Sindicato dos Policiais Civis da Bahia (Sindipoc). “Isso quer dizer que há uma relação entre o Sindipoc e o tráfico de drogas. Ou ele [Crispiniano Daltro, líder do sindicato] vai dizer que não sabia da existência dessa relação?”, indagou na época o promotor Oscar Araújo

Com competência e honestidade questionadas, as polícias Civil e Militar da Bahia passaram a mirar em familiares de Ravengar. Foram presos o sogro, cunhados e até filhos adolescentes do traficante.
Acuado, Ravengar abriu a boca. O que a polícia não foi capaz em 20 dias, uma equipe de reportagem conseguiu: ficar frente a frente com Raimundo. No dia 5 de fevereiro, foi publicada no jornal A Tribuna uma entrevista com o homem mais procurado da Bahia.
Na conversa, ele fez questão de se apresentar como empresário, benfeitor e até “humanitário”. “Eu tinha um programa na rádio comunitária, chamado ‘Linha Torta’, onde distribuía como prêmios cestas básicas e o pagamento de contas de água, luz e gás em atraso”, diz, revelando que, curiosamente, “muitos policiais de origem humilde eram beneficiados”.
“Não me considero um bandido. Não uso armas e não tenho medo de morrer. Com grandes traficantes encontram 20, 30 quilos de cocaína. Comigo nunca encontraram uma grama. O que falam de mim é puro folclore. Mas faço o que for preciso para sustentar minha família”, ressaltou ao periódico baiano.
Ravengar também negou veementemente a informação revelada por investigadores que os negócios liderados no Morro do Águia lucravam R$ 100 mil por dia. “Se tivesse mesmo esse dinheiro, toda semana eu viajava para Nova York e ia jogar nos cassinos de Las Vegas. Para se ter ideia da minha situação, a luz do Mega Show foi cortada ontem e todos os funcionários estão com salários atrasados”, alegou na época.
Fim da linha
37 dias separam a primeira operação no Morro do Águia e a perseguição na Linha Verde que resultou na prisão de Ravengar. Ele estava em companhia da mulher Suely Napoleão e foi atingido no tórax por um tiro de .40, sendo conduzido ao Hospital Menandro Farias, em Lauro de Freitas, Região Metropolitana de Salvador, e logo depois para o Hospital Geral do Estado (HGE).
Ravengar teve um pulmão perfurado, lesões no diafragma e perdeu o rim direito.
O casal estava utilizando um imóvel situado no Condomínio Chácara do Rio Jacuípe, em Barra do Jacuípe, e vinha deslocando-se constantemente para Salvador, o que facilitou a ação policial.

Ravengar, que não estava armado, saiu do carro com as mãos para cima gritando que estava ferido, enquanto Suely era algemada sem qualquer reação.
Internado, passou por duas cirurgias: uma intervenção torácica para drenagem do pulmão e outra abdominal para a retirada do projétil, que foi entregue à polícia técnica.
A sentença saiu dois anos depois. O magistrado decretou oito anos e seis meses por tráfico de drogas, seis anos e meio por manusear, refinar, produzir entorpecentes ou possuir apetrechos para tal, outros seis anos e meio por associação para o tráfico, mais quatro anos por corrupção a agente público. O juiz absolveu o réu, porém, da acusação de formação de quadrilha.
Após ouvir a sentença, o mega criminoso ficou cabisbaixo, apelou à clichês como "entrego meu destino a Deus" e "a Justiça é a mãe da verdade", mas também não deixou de alfinetar.
“Vocês sabem que esse processo é político. Dizem que é de drogas, mas foi parar na tribuna da Assembleia Legislativa”, declarou, ao ser levado.

No fim, apenas Ravengar, familiares e alguns traficantes de baixo clero viram o sol nascer quadrado. A maioria dos policiais citados nos inquéritos voltaram às ruas fardados anos depois. Os supostos políticos e empresários envolvidos no esquema nem chegaram a ter os nomes levados à Justiça ou divulgados.
Culto, Ravengar costumava citar figuras como Maquiavel e Maomé em suas falas, mas para explicar o fato de só ele ter caído, recorreu à um popular cantor. "É como Tom Jobim falou: “O sucesso incomoda”. Especialmente para alguém como eu. Um negro aqui nesta terra não pode chegar nem a metade do topo, que ele é logo cortado. É uma raiz da cultura do racismo que nós temos", justificou em entrevista a A TARDE.
Em 8 de junho de 2023, Ravengar morreu após período internado no Hospital Geral Ernesto Simões Filho. O criminoso passou os últimos anos de vida na Penitenciária Lemos Brito, onde chegou a ficar preso ao lado dos filhos e até netos.
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