LGBTFOBIA
Violência e seus atravessamentos: Brasil é o país que mais mata LGBTs
Em 2023, 257 pessoas LGBTs foram vítimas de crimes de ódio no Brasil, diz relatório do GGB Bahia
Por Andrêzza Moura

"Ele me xingou, me chamou de 'lá ela' [desgraça]. [perguntou] 'O que é que essa sapatão drogada está querendo? Depois, só senti o tapa no rosto do lado esquerdo, o lado direito bati no poste e nisso eu fiquei desorientada. Quando dei por mim, já estava na casa da minha comadre", lembrou a autônoma Roseli* - nome fictício - a agressão que sofreu de um soldado da Polícia Militar, no feriado do dia 1º de maio último, quando retornava para casa, durante uma operação policial em um bairro de Salvador.
Embora tenha registrado ocorrência em uma unidade da Polícia Civil e na Corregedoria da PM, a mulher, de 42 anos, preferiu não revelar a verdadeira identidade e a comunidade onde mora, por temer represália.
Casos de agressão e violência como o vivenciado por Roseli*, infelizmente, não é isolado e faz parte da realidade, se não da maioria da população LGBTQIAPN+, com certeza, de uma grande parcela.
Dados do Atlas da Violência 2025, divulgado na segunda-feira, 12, apontam o aumento das ocorrências de violência contra pessoas LGBTQIAPN+, no Brasil, entre os anos de 2022 e 2023. Segundo os registros gerados a partir da Ficha de Notificação de Violência das bases do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), os casos de violência contra homossexuais e bissexuais aumentaram 35%. Já os contra pessoas transexuais e travestis cresceram em 43%.
Ainda conforme as anotações do sistema, que é parte do Mistério da Saúde, embora, as mulheres transexuais sejam as principais vítimas de violência, o maior aumento foi verificado entre os homens transexuais. Apesar de o relatório apontar o crescimento no número de casos de violência contra a população LGBTQIAPN+, o documento do Sinan não dá detalhes sobre as ocorrências.
"Li o Atlas da Violência LGBTIfóbica no Brasil e ela [violência] cresceu absurdamente, consideravelmente, mais de mil por cento. O Atlas da Violência é uma pesquisa que o próprio Ministério da Saúde faz, eles têm dificuldade de informar qual a violência é sofrida, porque de fato isso não dá para colocar no estudo. Então, a falta de informações também denuncia a naturalização dessas violências. Uma facada, um tiro, um espancamento, isso até mesmo pela própria vítima", explica Keila Simpson, coordenadora-geral do Centro de Promoção e Defesa dos Direitos de LGBT da Bahia (CPDD LGBT). Órgão fica no Casarão da Diversidade, na Rua do Tijolo, no Centro de Salvador.
"Porque se os órgãos governamentais, os órgãos públicos, não têm a preocupação de saber qual é o tipo da violência que foi perpetrada ali, obviamente que a pessoa vai se desfazer, se desmotivar de denunciar a violência. Ela pensa:
'vou para casa depois de tomar uma porrada, vou esperar passar, esperar o machucado sarar. Vou seguir minha vida'",
Keila é fundadora da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e a primeira travesti brasileira a receber título de doutora Honoris Causa pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
Outras faces da violência
Quando se fala em violência, certamente é a física que todo mundo lembra. No entanto, ela se apresenta sob múltiplas faces e, muitas das vezes, envolve as vítimas em complexas teias sentimentais que afetam suas vivências, interações pessoais e sociais, além da saúde física e mental.
O relações públicas e empresário Davi Matos, 38 anos, nunca sofreu violação física por conta da orientação sexual, mas sentiu na pele a dor de ser quem se é. Durante os cinco anos em que esteve na Polícia Militar da Bahia, enfrentou um quadro clínico de depressão e tristeza aguda e precisou buscar acompanhamento psicológico.
Ele lembra que tudo começou, em 2009, quando ingressou na instituição. O sonho de passar em um concurso público era real e o desejo de crescer dentro da PM começava ali. Entretanto, meses depois, percebeu que estava no lugar errado. "É tudo muito subliminar. Me recordo piamente que já no GR, que é o Grupamento de Recrutas, quando eu ainda era aluno, soldado PM, havia uma grande necessidade de provar minha orientação sexual. Todo mundo ficava questionando, ele é, ele não é e tal. A partir disso, parecia que era uma necessidade deles descobrirem qual era a minha vivência sexual fora do quartel", contou.

"Tinham essas investidas por parte tanto dos alunos, quanto dos sargentos, dos oficiais responsáveis pela formação. Havia um protecionismo, uma omissão, porque os oficiais viam que estava tendo um assédio moral ali e achavam graça, faziam piada, não interviam no sentido da legalidade da coisa, não interviam, se calavam e, às vezes, até participavam das investidas, das brincadeiras de mau gosto, é claro. Passei por situações complicadas e vexatórias que me levaram, inclusive, há uma crise de depressão, o principal motivo de minha saída", concluiu o comunicador, ao revelar que, em 2014, pediu exoneração do cargo.
Em nota à reportagem, a Polícia Militar da Bahia informou "que atua com base em técnicas operacionais e no respeito aos direitos individuais, não compactuando com condutas que destoem desses princípios".
A face oculta da violência na internet
Em 2023, a Deep Digital LLYC - agência de comunicação e relações públicas com operação a nível global -, divulgou uma pesquisa que apontou o Brasil como líder do ranking de países com mais interações de ódio contra pessoas LGBTQIAPN+, nas redes sociais. No levantamento, o país tem 37,67% do volume de mensagens de ódio direcionadas a esta parcela da sociedade.
O influencer digital Yuri Pereira, 25 anos, é uma dessas vítimas. Trabalhando na internet, desde 2015, produzindo conteúdos de beleza, autocuidado e representatividade, já perdeu as contas de quantas vezes sofreu preconceito na rede mundial de comunicação.
"Já sofri preconceito na internet por vários motivos. O primeiro é o fato de ter e cuidar dos meus cabelos que, infelizmente, atribuem autocuidado a sexualidade e esteriótipos. E depois por ter uma família considerada não tradicional, minha mãe é lésbica e é casada, há 15 anos, com minha madrasta", disse.

"Fora das redes nunca sofri nenhum tipo de violência explícita, apenas alguns olhares tortos por conta do volume do cabelo, mas sempre me imponho e não permito excessos", complementou o criador @yuri.cachos, que acumula quase 800 mil seguidores nas redes sociais.
Sempre fui muito bem acolhido nas redes sociais. Jamais imaginei que o fato de ser filho de suas mães lésbicas poderia ser motivo para rater
"Em algumas aparições com a minha família o que mais me pegou foi uma conta fake que me mandou uma mensagem que dizia: 'você pode até ser bonito e tudo, mas Deus não abençoa pessoas como você, nem sua família'. Isso me machucou bastante. Como assim, Deus iria abençoar o amor de duas pessoas maravilhosas como minha mãe e minha madrasta? Isso não faz sentido", completou.
Observatório do GGB Bahia
Conforme o levantamento do Observatório de Mortes Violentas de LGBT+ no Brasil, divulgado em 2023, pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), a mais antiga ONG LGBT da América Latina, o país ocupa o primeiro lugar no pódio mundial, quando se trata de homicídios e suicídios de LGBTQIAPN+.
Naquele ano, foram documentadas 257 mortes violentas, uma a mais que em 2022. Desse total, 127 travestis e transgêneros, 118 gays, 9 lésbicas e três bissexuais foram vítimas de crimes de ódio. Uma morte a cada 34 horas.
"Em 44 anos de realização dessa pesquisa, é a segunda vez apenas que travestis e transexuais ultrapassaram os gays no número de mortes violentas, refletindo portanto ter sido a violência letal contra tal categoria no ano passado muito mais frequente e mortífera do que nas quatro décadas anteriores, pois estimando-se que as trans representam por volta de 1 milhão de pessoas no Brasil, e os homossexuais 20 milhões, o risco de uma transexual ser assassinada é 19% mais alto do que gays, lésbicas e bissexuais”, analisou o professor Luiz Mott, fundador do GGB.
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Respeito e Direitos
Recuperado das dores da alma, hoje, o empresário e fundador da DM Comunicação Integrada, Davi Matos transforma conhecimento em arma de luta para fortalecer e ajudar seus iguais. Membro do Comitê dos Direitos da Pessoa LGBTQIAPN+ de Lauro de Freitas, ele lembrou que, neste sábado 17 de maio, foi celebrado o Dia Internacional de Combate à LGBTfobia e, para marcar a data, pediu para si e para todos da comunidade mais respeito e direitos.
"A gente quer inclusão verdadeira, espaços de fala, reconhecimento das nossas uniões. A gente quer ser tratado com igualdade, mas igualdade a um nível de normalidade, de naturalização, se naturaliza tanta coisa, mas não se naturaliza o amor entre pessoas do mesmo sexo, não se naturaliza famílias que divergem dos modelos tradicionais, não se naturaliza a realidade de milhares, de milhões de pessoas LGBTQIAPN+", pediu Matos.
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