DIVIDIU OPINIÕES
PL da Cota de Tela ignora cinema e é alvo de críticas: “é um golpe”
Projeto aprovado pelo Senado inclui apenas exibição de obras nacionais na TV paga
Por Edvaldo Sales*
Aprovado no último dia 29, na Comissão de Educação e Cultura do Senado Federal, o Projeto de Lei da Cota de Tela (PL 3696/23), do senador Randolfe Rodrigues (sem partido-AP), estabeleceu a obrigatoriedade de exibição de obras nacionais até 2043. A proposição, no entanto, só é válida para a TV por assinatura e não se aplica às salas de cinema.
Aprovado na CCDD (Comissão de Comunicação e Direito Digital), o PL segue agora para o plenário, onde aguarda interposição de recurso.
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A ferramenta de cota de tela surgiu na legislação brasileira em 1932 pelo Decreto nº 21.240. Uma MP de 2001, exclusiva para cinema, ganhou validade de 20 anos. A regulação da cota na TV por assinatura surgiu na Lei da TV Paga (Lei nº 12.485/2011), cuja validade se encerra no próximo dia 12 de setembro, e agora pode ser renovada graças à aprovação do Senado.
Já o mecanismo para o cinema está suspenso no Brasil desde setembro de 2021, quando o artigo que a regulamenta venceu e não foi renovado pelo governo Jair Bolsonaro. Com a exclusão do PL de Randolfe, o tema precisará ser alvo de outro projeto de lei.
Segundo a Agência Nacional do Cinema (Ancine), cabe ao presidente da república legitimar o decreto que estabelece, por exemplo, o número de dias para o cumprimento da cota, a diversidade de títulos que devem ser exibidos e o limite de ocupação máxima de salas de um mesmo complexo pela mesma obra.
A aprovação do PL excluindo o cinema dividiu opiniões. De um lado, entidades que representam o setor exibidor protestaram contra a votação e disseram defender um amplo debate sobre o tema envolvendo todos os elos da cadeia cinematográfica. Ao Cineinsite A TARDE, Marcos Barros, presidente da Abraplex (Associação Brasileira das Empresas Exibidoras Cinematográficas Operadoras de Multiplex), pontuou que, apesar das objeções feitas ao projeto, o mercado não é contra a cota.
“Estávamos contra a urgência de se votar o PL no Senado, em um momento extremamente complicado para os cinemas, principalmente o nacional, sem uma ampla discussão com todos os elos da cadeia, ou seja, produtores, distribuidores e exibidores, e também Ancine e o Conselho Superior de Cinema, órgãos governamentais que têm por objetivo fomentar e regrar o audiovisual brasileiro”, afirmou.
Marcos afirmou que é injusto responsabilizar os exibidores pela ausência de filmes nacionais nas salas. “Em 2019, exibimos 97 produções e, neste ano, já foram cerca de 120. No entanto, o market share [quota de mercado] continua baixo: a média nos últimos 20 anos foi de 13%, aproximadamente, e, em 2023, está em 1,5%. A Abraplex defende que é, sim, preciso criar mecanismos para alavancar o cinema nacional, aumentando a produção, distribuição e exibição de obras brasileiras para que ele se torne mais autossustentável”, continuou.
O presidente da Abraplex disse também que o PL precisa levar em consideração que, durante a pandemia de Covid-19, as produções ficaram paralisadas. "Sofremos com a falta de lançamentos, sejam nacionais ou internacionais. O setor ainda está com índice 35% inferior de lançamentos, níveis de público 40% abaixo do cenário pré-pandemia e administrando milhões em dívidas acumuladas no período. Há, agora, uma nova variante, que é a greve em Hollywood, ainda sem solução, e que já reflete nos cinemas brasileiros", pontuou.
Além da Abraplex, também se manifestaram contra a inclusão do cinema na proposição a Federação Nacional das Empresas Exibidoras Cinematográficas (Feneec), a Associação dos Exibidores Brasileiros de Cinema de Pequeno e Médio Porte (AEXIB) e o Sindicato das Empresas Exibidoras Cinematográficas no Estado de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul.
E o outro lado?
Ao contrário do que é defendido pelas entidades representativas do setor exibidor, produtores, críticos de cinema e trabalhadores da área da cultura encaram a retirada do cinema do texto final do PL 3696/23 como algo negativo.
Para Marina Rodrigues, produtora executiva focada em políticas públicas no audiovisual, se trata de um “golpe”. “Não ter essa garantia é permitir que nossas salas só passem filmes internacionais e, consequentemente, uma perda gigantesca de dinheiro, uma vez que grandes distribuidoras internacionais ficam com uma fatia grande dos lucros da bilheteria. Estamos exibindo filmes e investindo em outro cinema do qual nunca seremos parte”, pontuou.
Dados atualizados do Sistema de Controle de Bilheteria, publicados pela Ancine, dão conta que, em 2023, apenas 1,4% das vendas de ingresso foram de produções nacionais, contra cerca de 13% entre 2012 e 2019, quando a cota ainda era válida. Logo, 98,6% do público que frequentou o cinema neste ano assistiu a produções de outros países.
Além disso, até agosto, todos os filmes nacionais lançados comercialmente no país acumularam um público somado de 1,02 milhão. O que corresponde a menos de 10% da bilheteria de “Barbie”, por exemplo. Os números revelam que o público do cinema nacional caiu mais de 90% em comparação com 2019.
De acordo com o site Filme B, de janeiro até o mês passado, 96 longas brasileiros foram lançados comercialmente nos cinemas. Destes, apenas três - “Os aventureiros - A origem”, “Desapega!” e “Ninguém é de ninguém” - ultrapassaram 100 mil espectadores, com 425 mil, 153 mil e 140 mil, respectivamente.
O cineasta soteropolitano Lula Oliveira, que foi presidente da Associação Baiana de Cinema e Vídeo, chefe da Representação do Ministério da Cultura (2012) e coordenador de Difusão e Formulação da Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura (2016), segue a mesma linha de pensamento de Marina. “Encaminha-se uma solução que atende a demanda em parte. Mas as salas de cinema também deveriam fazer parte dessa política. Pois a construção de um imaginário nacional deve ocupar todas as telas”, defendeu.
A posição das entidades em relação à retirada do cinema do PL é definida por Marina, que também é produtora de conteúdo sobre mercado cinematográfico nos canais "Simplificando Cinema", como “ignorância”. “A cota de tela não significa que o espectador será obrigado a comprar ingressos e muito menos que a circulação de pessoas nas salas irá diminuir, pelo contrário, ter diversidade de títulos pode, inclusive, chamar de volta o público que se perdeu por conta da baixa oferta de filmes em cartaz”, explicou.
Ela continuou: “Para um multiplex essa ideia é ainda mais errônea, uma vez que eles possuem acesso a fundos da Ancine para manutenção das suas salas, principalmente com o retorno do governo Lula e uma atenção maior quanto a isso. No mais, enxergo como a continuidade de um conluio com o mercado estrangeiro, uma vez que este já impõe contrapartidas difíceis aos exibidores”.
Uma posição que atende aos interesses das majors. Não atende aos interesses do povo brasileiro e nem do cinema brasileiro.
Importância da Cota de Tela (e lá fora?)
Em 2019, ano anterior a pandemia e ainda com cota de tela vigente, oito longas ultrapassaram a marca de um milhão de espectadores. A comédia “Minha Mãe é uma Peça 3”, por exemplo, chegou a 11,8 milhões.
“Cota de tela é economia de mercado pura e simples. Quando você não tem essa reserva no próprio país, você drena possibilidades de maiores investimentos no futuro. Isso impacta não só na ausência do filme brasileiro em cartaz, mas em toda a roda da economia por trás de um filme”, ressaltou Marina. “Sem essas garantias, você também não tem a geração de renda e empregos de forma mais contínua, você deixa de alimentar empresas privadas do Brasil pelo retorno nulo em bilheteria, além de fazer com que o filme brasileiro tenha que encontrar outros acordos bem pouco producentes para ter algum retorno, como o licenciamento predatório para as plataformas de streaming em um país desregulamentado”, completa.
Lula Oliveira destaca que a Cota de Tela é imprescindível para a construção de um mercado nacional de cinema. “Não estamos inventando a roda. A proteção do cinema nacional é uma prática em outros países. Fortalece o mercado e a soberania cultural”, salientou o crítico.
Um dos exemplos lembrados é o da Coreia do Sul, conhecida pelo fortalecimento do audiovisual nacional, desde a década de 1990. Após os incentivos do governo para a cota, o consumo de cinema local chegou a 57%. Outros países como Argentina, Bolívia, China, Egito, Espanha, e México adotam políticas similares.
Cuidado desde a promoção
Outro ponto destacado por Lula é a necessidade de investimento na promoção dos filmes brasileiros: “A valorização do cinema nacional precisa se fincar em duas frentes: produção e exibição nas janelas disponíveis e no âmbito da educação. A prática e o acesso criam o gosto, o prazer é a fruição para que nossos filmes possam ser apreciados pelo público”.
É fundamental investir na produção, mas também é fundamental investir na promoção dos filmes para que assim possa ser possível construir um imaginário nacional desejoso de consumir nossas próprias estórias.
Lula e Marina também comentaram sobre o argumento de que o cinema nacional não atrai público. “Também é ignorância. É fácil falar isso quando tivemos um verdadeiro boicote às obras nos últimos anos. Mas a cota de tela pós criação da Ancine elevou um market sharenegativo para mais de 14% em pouco mais de 10 anos da vigência anterior das cotas”, ressalta a produtora.
Ainda segundo ela, isso significa que o Brasil conquistou capital econômico com os filmes, eles deram retorno de bilheteria e justificaram não só a política, como a atração de público aos cinemas.
Contudo, é errado querer avaliar o mercado brasileiro com o mesmo peso que o hollywoodiano. Para muito além da diferença dos investimentos, não temos o mesmo propósito enquanto indústria.
Lula pontuou que as produções brasileiras podem não atrair público porque “não tem espaço para construção de uma fruição entre a obra cinematográfica e o consumidor”. Ele enfatiza: “na medida que tenha espaços, discussões, reflexões críticas, os autores e produtores vão entender melhor o que o público deseja consumir”.
*Sob supervisão de Bianca Carneiro
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