AMAB EM FOCO
A atuação na Vara de Execuções Penais
Titular da Vara de Execuções Penais de Barreiras analisa desafios da ressocialização no Brasil

Por Camila Vasconcelos*

Atuar na Vara de Execuções Penais é viver diariamente o desafio de equilibrar o rigor da lei com a sensibilidade humana. É lidar, ao mesmo tempo, com o peso das condenações e com a luz da possibilidade de recomeço.
Quando assumi a função, sabia que encontraria um ambiente de dor, arrependimento e vulnerabilidade. O que talvez eu não soubesse é que, por trás de cada processo, havia uma história — e, mais do que isso, uma pessoa.
Nosso papel vai muito além de assinar alvarás ou indeferir pedidos. Fiscalizar um presídio é adentrar uma realidade dura e, muitas vezes, invisibilizada.
Ao percorrer os corredores de uma unidade prisional, o olhar do magistrado não deve se limitar ao cumprimento da pena, mas também à observância da dignidade humana.
Encarar de perto as condições de encarceramento é entender que a ressocialização — princípio tão repetido e, por vezes, tão pouco praticado — depende de um sistema que ofereça oportunidades reais de transformação.
As decisões que envolvem saídas temporárias ou autorizações para o trabalho extramuros frequentemente geram controvérsias.
Parte da sociedade encara essas medidas como privilégios indevidos; contudo, quem acompanha de perto o cotidiano carcerário sabe que elas são, na verdade, instrumentos fundamentais de reintegração.
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O retorno gradual à convivência social, o exercício de uma atividade laboral, o resgate de vínculos familiares — tudo isso contribui para reduzir a reincidência e, principalmente, devolver ao indivíduo a noção de pertencimento.
Ressocializar não significa romantizar o crime, tampouco ignorar a dor das vítimas. Significa reconhecer que a pena tem uma finalidade que vai além da punição: a reconstrução.
Cada apenado que retorna ao convívio social com uma nova perspectiva representa uma vitória não apenas individual, mas coletiva. É a concretização de um ideal constitucional que afirma que ninguém perde, com a liberdade, sua condição de ser humano.
A dignidade das pessoas presas é, portanto, um dever do Estado e um compromisso ético de todos nós que integramos o sistema de justiça. Em um país onde as prisões ainda refletem desigualdades e exclusões, trabalhar na execução penal é, muitas vezes, remar contra a maré.
Mas é também acreditar — e fazer acreditar — que a justiça não se encerra na sentença condenatória, e que a verdadeira segurança pública se constrói com humanidade, não com indiferença.
Ao final de cada dia, ao assinar um despacho ou ao visitar uma cela, renovo a convicção de que a função jurisdicional é, antes de tudo, um exercício de empatia e responsabilidade.
O desafio é grande, mas maior ainda é o dever de garantir que, entre grades e esperanças, a justiça continue sendo o caminho para a dignidade.
Ser juíza na Vara de Execuções Penais é habitar um território onde a justiça encontra a realidade nua da condição humana.
É caminhar por corredores de concreto e ferro, ouvindo o eco de portas que se fecham, e perceber que ali dentro pulsa uma sociedade invisível — feita de histórias, erros, arrependimentos, esperanças e resistências.
Não há neutralidade possível diante do cárcere. A cada inspeção em um presídio, o olhar do magistrado se multiplica: vê a estrutura física, as celas superlotadas, a escassez de recursos, mas também vê os olhos dos que aguardam um recomeço. São olhares que pedem não piedade, mas dignidade — o reconhecimento de que a pena não pode ser a negação da humanidade.
Nas visitas, o ambiente é pesado, o ar denso. As histórias que se contam são marcadas por violência, abandono e pobreza. Mas há também lampejos de esperança — o detento que aprendeu um ofício, a mulher que voltou a estudar, o jovem que redescobriu a fé.
Cada passo dado dentro dos muros é um convite à reflexão sobre o papel do Estado, da sociedade e da própria Justiça.
Ser juíza na execução penal é exercer uma função que transcende a técnica. É ser guardiã dos direitos daqueles que o mundo prefere esquecer.
É afirmar, todos os dias, que a pena não deve ser vingança, mas oportunidade. Que a justiça só é plena quando enxerga o ser humano — mesmo atrás das grades.
Ao deixar o presídio, o som do portão se fechando atrás ainda ecoa por muito tempo. E talvez seja esse eco que mantém viva a convicção de que o verdadeiro sentido da Justiça está em não desistir de acreditar que, mesmo onde há dor, pode haver reconstrução.
*Camila Vasconcelos – Juíza Titular da Vara do Júri e das Execuções Penais de Barreiras
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