BAHIA
Aluna da UNEB é a 1ª trans da América Latina a ter autorizada redesignação antes dos 21 anos
Anna Lua Araujo venceu batalha judicial e fez cirurgia de redesignação pelo SUS

Por Isabela Cardoso

No Brasil, onde a expectativa de vida de pessoas trans não ultrapassa os 35 anos, a história de Anna Lua Araújo rompeu barreiras.
Aos 19, a estudante de direito da Universidade Estadual da Bahia (UNEB) venceu uma batalha judicial em Salvador e se tornou a primeira mulher trans da América Latina a garantir autorização para cirurgia de redesignação sexual antes da idade mínima de 21 anos prevista pelo SUS. Há um mês, pouco depois de completar a idade, ela foi submetida a cirurgia.
O processo foi cercado de barreiras judiciais, resistência institucional e coragem para enfrentar precedentes que até então não haviam sido quebrados.
A batalha judicial começou após uma consulta médica em Salvador, quando Anna já cumpria todos os requisitos exigidos pela norma: acompanhamento psicológico, psiquiátrico e endocrinológico, além do uso de hormônios. Mesmo assim, encontrou a barreira da idade.
“Eu ainda tinha 19 anos e a médica disse que, pela normativa, eu não poderia fazer a cirurgia pelo SUS antes dos 21. Mas no Conselho Federal de Medicina, a mesma cirurgia já era liberada a partir dos 18 anos em clínicas particulares. A juíza entendeu que eu poderia fazer e assim me tornei o primeiro precedente da história da América Latina”, contou, em entrevista ao Portal A TARDE.
A decisão transitou em julgado porque o Estado não recorreu no prazo legal, algo considerado raro. Para Anna, dois momentos foram marcantes: a resistência inicial de uma magistrada em reconhecer seu direito e, em seguida, a determinação de outra juíza que deu prazo de 10 dias para o Estado custear a cirurgia ou depositar o valor de R$ 90 mil.

Saúde, dignidade e reconhecimento
A trajetória de Anna não se limitou ao processo da cirurgia. Durante esse período, ela também enfrentou batalhas judiciais para garantir o uso do nome social em instituições públicas e privadas.
“Foram muitas barreiras judiciais, foram documentos negados. Eu tive que processar algumas empresas e, por enquanto, todas que eu processei foram procedentes a mim, pelo fato de que eu tenho o direito, pelo entendimento do Supremo Tribunal Federal, de exercer o meu nome retificado e o gênero também”, afirmou.
Além das barreiras legais, sua saúde também estava em risco. A estudante relatou que sofria com infecções recorrentes devido a um quadro de fimose, o que poderia inviabilizar a cirurgia futuramente. Esse fator foi determinante para a urgência reconhecida pela Justiça.
Salvador como espaço de acolhimento
Natural de Buritis, em Minas Gerais, Anna encontrou em Salvador o espaço para reconstruir sua vida e lutar por dignidade.
“Foi algo simbólico. Salvador me acolheu quando eu precisei sair do interior e procurar um espaço para existir com dignidade, longe da minha cidade natal, onde eu sofri muitos ataques de transfobia. Eu queria um lugar onde as pessoas não se importassem com raça, cor, gênero ou sexo, e encontrei isso aqui”, disse.
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Mais do que uma vitória pessoal, Anna enxerga seu caso como um marco que pode abrir portas para outras pessoas trans em situação semelhante.
“Eu não enxergo como uma conquista individual. Eu enxergo como um precedente coletivo, porque agora isso pode ser usado para poder fazer com que mulheres trans que têm disforia com o seu pênis, com a sua genitália, possa fazer redesignação de forma gratuita, totalmente arcada pelo SUS antes dos 21 anos”, destacou.
Rede de apoio espiritual e jurídica
Além da luta nos tribunais, Anna Lua destaca que sua conquista também foi fruto de uma união entre fé e estratégia jurídica. Ela recebeu o suporte de advogados, mas também buscou forças em vivências espirituais que a ajudaram a atravessar o processo.
“Eu digo que foi uma junção de trabalhos espirituais e trabalhos carnais. Foi essencial os meus advogados do Abreu e Bittencourt, que acolheram a demanda, e na parte espiritual tive a maravilhosa advogada Shirley, cerimonialista da Ayahuasca, que viu a minha dor e quis me ajudar. E também a Mãe Dri, a minha mãe maravilhosa de santo que me ajudou dentro do terreiro dela", relata.
A visão da advocacia sobre o caso
A advogada Janaina Abreu, uma das advogadas do caso, reforça a importância da decisão para a garantia de direitos fundamentais.
“Anna Lua tem garantidos os direitos à saúde, à dignidade da pessoa humana e à identidade de gênero. O SUS assegura a pessoas trans o acesso integral ao processo transexualizador. Todos esses direitos convergem para um princípio maior: o respeito à sua autonomia e à sua vivência como mulher”, explicou.
A profissional lembra que, para acessar a fila da cirurgia pelo SUS, a pessoa precisa passar por acompanhamento multiprofissional e cumprir a idade mínima de 21 anos, o que torna o precedente de Anna ainda mais significativo.
“Como advogada, esse caso representa muito mais do que um processo individual: é um símbolo de vitória da dignidade humana, da liberdade e da igualdade. É uma honra participar de uma história que ecoa esperança e abre caminhos para tantas outras pessoas trans”, concluiu.
O espelho e a liberdade

Hoje, após a cirurgia, Anna Lua fala com emoção sobre a nova relação com o próprio corpo.
“Antes, muitas vezes, olhar para o espelho era doloroso. Eu tinha muita disforia. E hoje eu não vejo apenas o meu corpo, mas sim refletindo a minha essência. É emocionante se olhar e saber que não foi só mais um sonho, que é realmente real. A menina do interior, que um dia chorava escondida, hoje sorri de orgulho", completa a jovem.
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