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Dia das Matrizes Africanas chama atenção para racismo religioso

Um ano após a criação da data, cenário ainda reflete um crescimento progressivo de casos de intolerância

Publicado quinta-feira, 21 de março de 2024 às 06:00 h | Autor: Isabela Cardoso
Cerca de 3 milhões de brasileiros são praticantes de religiões de matrizes africanas e nações do candomblé
Cerca de 3 milhões de brasileiros são praticantes de religiões de matrizes africanas e nações do candomblé -

Para honrar a identidade nacional e toda a diversidade religiosa da cultura preta, o Dia Nacional das Tradições de Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé foi criado em 21 de março de 2023 para celebrar também a ancestralidade. Segundo a Agência Senado, cerca de três milhões de brasileiros são praticantes da religião. No entanto, um ano após a criação da data, o cenário ainda reflete um crescimento progressivo de casos de racismo religioso.

Um levantamento feito pela startup JusRacial apontou que, em 2023, os tribunais brasileiros registraram um total de 176.055 processos judiciais envolvendo casos de racismo ou de intolerância religiosa. Houve um aumento de 17.000%, comparado a última pesquisa feita em 2009. 

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De acordo com o levantamento, a intolerância religiosa representa um terço (33%) dos processos por racismo em tramitação nos tribunais brasileiros. A JusRacial identificou 176 mil processos por racismo em todo o país.

No Supremo Tribunal Federal (STF), a intolerância religiosa corresponde a 43% dos 1,9 mil processos de racismo em tramitação na corte. Nos tribunais estaduais foram identificados 76,6 mil processos relacionados ao tema, sendo que 29,5 mil envolvem religião.

De acordo com dados da Rede Nacional de Religiões Afro-brasileiros (RENAFRO), em 2022, os crimes religiosos cresceram 45% no país e, pelo menos, cinco terreiros sofreram ataques durante o período. Um mapeamento do racismo religioso no país mostrou que metade dos 255 terreiros pesquisados em todas as regiões já tinham sido vítimas de violência.

Em entrevista ao Portal A TARDE, a jornalista, sacerdotisa umbandista, doutora, mestre e especialista em Ciência da Religião (PUC-SP), Claudia Alexandre, apontou o crescimento do racismo religioso como um descaso ao avanço de problemáticas nas relações étnico-raciais do país.

“Estamos diante de uma guerra religiosa silenciosa e que precisa de medidas mais efetivas para que seja combatida. Por trás destes dados existem ocorrências de assassinatos que são apoiados pelo discurso de ódio que sai de dentro de Igrejas do campo evangélico. Os dados do Disque 100 têm apontado isso. Precisamos que haja aplicação da lei, mas é preciso de uma educação para o letramento em relação às tradições e religiões afro. Muito desse discurso se beneficia pelo Brasil não conhecer a sua própria história e principalmente a da contribuição negra", ressaltou.

Terreiro Ilê Axé Kalé Bokun, da nação Ijexá, que recentemente foi tombado e considerado patrimônio cultural da cidade de Salvador. 
Foto: Raphael Muller / Ag. A TARDE
Data: 29/12/2018
Terreiro Ilê Axé Kalé Bokun, da nação Ijexá, que recentemente foi tombado e considerado patrimônio cultural da cidade de Salvador. Foto: Raphael Muller / Ag. A TARDE Data: 29/12/2018 |  Foto: Raphael Muller / Ag. A TARDE
  

Claudia explicou que a intolerância religiosa é um termo que não contempla verdadeiramente este crime de ódio, porque faz parte de um preconceito estrutural à população negra. Por isso, o termo "racismo religioso" é o ideal para ser usado. 

“Os dados mostram que tem crescido esse crime em relação às religiões e tradições de matrizes africanas, dado a um processo histórico associado à escravização negra e a forma como o pós-abolição não foi capaz de reparar os danos com pessoas negras. Por isso, reconhecer os danos do racismo religioso é tão importante, principalmente como significação jurídica para os movimentos sociais e comunidades de terreiro. A intolerância religiosa é insuficiente, quando não contempla esse dado histórico e racial, sendo que pode se manifestar a partir de um grupo religioso contra qualquer outro grupo religioso, ou até os sem-religião”, descreveu a jornalista.

Ainda conforme a Agência Senado, o racismo religioso trata-se do ataque a pessoas negras por seguirem a umbanda, o culto de Ifá ou qualquer outra religião afro-brasileira, como o candomblé, o batuque, a encantaria, a jurema, o nagô-vodun, o tambor de Mina, o terecó, o xangô e o xambá.

Para a jornalista, a celebração do dia 21 de março é um novo marcador para a eliminação da discriminação racial e reflexões sobre a existência de tradições de matrizes africanas.

“Significa uma resposta do Estado brasileiro à urgência que é unir a sociedade em torno da violência religiosa que cresce contra essas tradições e suas comunidades. É também empoderar os movimentos de defesa e proteção deste patrimônio cultural e imaterial do nosso país. Mas é, acima de tudo, que o racismo religioso é crime, inafiançável e imprescritível. Temos que caminhar exigindo que a liberdade religiosa e a garantia de direitos sejam vividas por todas as pessoas”, afirmou.

Violência de gênero

Para além das questões raciais, Claudia também destacou a importância de abordar as questões de gênero nos espaços religiosos, buscando valorizar luta das mulheres pretas nas práticas negro-africanas no Brasil. “A formação das irmandades negras que possibilitou a formação dos primeiros grupos de candomblé teve como elemento central a atitude de mulheres. Elas contribuíram a partir de saberes ancestrais de uma variedade de etnias e dos grandes grupos linguísticos, ioruba-nagô e bantu, que foram forjados pelo sistema escravista".

"Tenho elaborado, na perspectiva dos opressores patriarcais e violências, que as primeiras mulheres negras sofreram para defenderem e resistirem pelo sagrado. Elas ainda estão no lugar de liderança nos espaços terreiro, mas estão sendo cada vez mais atravessadas pelo machismo, sexismo, pela misoginia e pelo etarismo, entre outras violências”, concluiu.

Segundo a especialista, há muitas representações do orixá Exu em pares, no gênero feminino e masculino, registradas desde o século XVII. Um princípio que fortalece a base da organização social e as mitologias africanas, sem hierarquização. Nesse contexto, Claudia também traz a masculinização da divindade como uma das circunstâncias da crescente intolerância às tradições religiosas africanas no país.   

Claudia Alexandre é jornalista, sacerdotisa umbandista, doutora, mestre e especialista em Ciência da Religião (PUC-SP)
Claudia Alexandre é jornalista, sacerdotisa umbandista, doutora, mestre e especialista em Ciência da Religião (PUC-SP) |  Foto: Divulgação
  

"Abordar sobre a masculinização e demonização de Exu, é um problema que tem origem nas descrições feitas pelos primeiros invasores da região de Nigéria e Benin, na África Ocidental de culto aos orixás. A maioria de cristãos católicos. Além disso, apontar a consequência desse problema para a constituição dos candomblés no Brasil e do matriarcado que funda os primeiros terreiros, mostrando como as mulheres negras também foram demonizadas e impedidas de inserir adequadamente Exu na sua totalidade, no sistema de crença", disse.

"Porque Exu já estava transformado por falsas narrativas em um elemento fálico e demoníaco. Não havia espaço para incluir Exu como é representado em figuras em pares feminina e masculina. As imagens de Exu sempre representado em estatuetas feminina e masculina, não se popularizaram no Brasil. Mas durante minhas pesquisas para minha tese de doutorado descobri que muitos terreiros e muitas comunidades silenciaram ou ocultaram a parte feminina de Exu", completou.

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