DISPUTA GLOBAL
Ayahuasca, rapé e jurema: medicinas indígenas viram alvo de patentes
Interesse de indústrias ameaça saberes tradicionais e direitos dos povos originários
Por Isabela Cardoso

Enquanto cresce o interesse global por medicinas tradicionais como a ayahuasca, o rapé, a jurema e o kambô, também aumenta a disputa pelo seus comércios. Esses conhecimentos milenares, cultivados por povos indígenas da América do Sul, estão hoje no centro de uma corrida por patentes promovida pelo mercado, principalmente por indústrias farmacêuticas.
Ao Portal A TARDE, Fernanda Kaingang, diretora do Museu Nacional dos Povos Indígenas e especialista em patrimônio cultural e propriedade intelectual, mostrou que os números são alarmantes.
“O site de buscas de patentes europeus, o EspaceNet, mostra que tem 24 pedidos de patente sobre jurema, 87.109 pedidos de patente envolvendo rapé, 2.805 pedidos envolvendo a vacina do sapo, o Kambô, e 275 pedidos de patente sobre a Ayahuasca”, detalha.
A ayahuasca, por exemplo, é uma bebida sagrada preparada com o cipó Banisteriopsis caapi e o arbusto Psychotria viridis. Sua origem está enraizada nos territórios da bacia amazônica, mas sua presença cultural e espiritual se espalha pelos Andes, Caribe, Pantanal e Mata Atlântica. Atualmente, cerca de 160 povos indígenas da Amazônia Legal utilizam a ayahuasca em rituais tradicionais que envolvem cânticos, danças, grafismos, e práticas espirituais ancestrais.
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No entanto, enquanto nas comunidades indígenas a ayahuasca segue sendo uma medicina espiritual, no mercado ocidental é cada vez mais transformada em produtos como gomas, sprays nasais e cápsulas para tratar desde depressão até ansiedade. Essa comercialização sem o devido reconhecimento às comunidades originárias tem causado indignação.

“O problema não é o interesse da indústria. É a violação de direitos dos povos indígenas, princípios internacionalmente consagrados, como o consentimento livre, prévio e informado”, destaca a diretora.
Fernanda alerta que não existe atualmente nenhum protocolo unificado envolvendo estes povos, que diga o que pode ou não ser feito com esses conhecimentos. “Consultar esses povos, criar protocolos, leis internas, envolvendo esses povos que compartilham o conhecimento e o uso da Ayahuasca. Orientar a indústria que quer implementar boas práticas de acesso a recursos genéticos que contém conhecimento tradicional e boas práticas de repartição de benefícios, de uma forma factível, é tarefa do governo. Isso é política pública”, explica.
Conhecimento compartilhado
A apropriação desses saberes, compartilhados ao longo de séculos de trocas cerimoniais, por empresas ou pesquisadores sem consulta representa não só um desrespeito legal, mas espiritual.
“Quando é sagrado, envolve a espiritualidade de um povo, há uma razão ainda mais forte para que os usos, os costumes e as tradições desses povos sejam respeitados na relação com a indústria, no estabelecimento de contratos, na forma de compartilhar os benefícios. Não basta pagar, tem que se assegurar de que o benefício vai atingir uma coletividade e não individualidades”, afirma Kaingang.
A distorção de usos tradicionais também pode causar danos graves. Um exemplo citado por Fernanda é a transformação da planta da coca em cocaína — um uso que distorce totalmente o propósito ancestral da planta, tradicionalmente mascada ou preparada em chás pelos povos andinos.

“A avaliação que eu tenho é que nós não podemos permanecer praticando extrativismo intelectual com relação a povos indígenas. [...] Seja a ayahuasca, a jurema, o rapé, o kambô, sejam outras substâncias, deve ter uma abordagem de direitos, respeitosa, uma abordagem de diálogo de reconhecimento, de afirmação dos direitos dos povos indígenas”, ressalta Fernanda.
Avanços e resistências
Em maio de 2024, foi aprovado o Tratado de Propriedade Intelectual, Recursos Genéticos e Conhecimentos Tradicionais, na Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI), um marco histórico que reconhece o direito dos povos indígenas sobre seus saberes. Pela primeira vez, a ONU recebeu um documento em quatro línguas indígenas - Kaingang, Huni Kuin, Terena e Fulni-ô.
“O documento diz que o nosso conhecimento não é uma mercadoria que pode ser comercializada como qualquer produto, ele não tem prazo de validade, não tem preço no mercado, muitos desses conhecimentos são sagrados e nós precisamos ser respeitados nos nossos direitos e na nossa livre determinação”, descreve Fernanda.
O tratado estabelece que pedidos de patente que envolvam conhecimentos tradicionais são obrigados a divulgar o acesso a recursos genéticos e a conhecimentos tradicionais associados necessários a suas invenções.
De acordo com o Governo Federal, os recursos genéticos incluem plantas comumente atreladas aos povos indígenas e comunidades locais por seu uso, conservação e tradição repassadas ao longo de gerações.

“A partir da aprovação desse tratado, que já foi firmado pelo número de partes necessárias para entrar em vigor no cenário internacional, se cria a expectativa de que possa ser aprovado um novo tratado que possa unificar os textos que ficaram pendentes, o de expressões culturais tradicionais, canto, dança, língua, têxtil, grafismo e conhecimentos tradicionais. Se espera que avance a aprovação de um tratado que reconheça as culturas materiais e imateriais dos povos indígenas e os direitos sobre essas culturas”, afirma Fernanda.
Cultura brota do território
A tentativa de transformar as medicinas indígenas em produtos de mercado não afeta apenas o direito coletivo aos saberes tradicionais. Ela ameaça também a continuidade de práticas culturais que só existem em território. Para Fernanda Kaingang, proteger os conhecimentos indígenas também significa proteger seus territórios.
“A proteção das práticas culturais pode colaborar com a preservação ambiental porque as culturas dos povos indígenas estão diretamente relacionadas à integridade do território. Se o território morre, a cultura também morre. [...] O ritual é feito com o quê? Com conhecimentos tradicionais, com expressões culturais tradicionais, com canto, com dança, com grafismos, com adornos, com armas, com agricultura, com alimentação tradicional, com cultura alimentar, tudo isso brota do território. Eu costumo usar uma frase dizendo que a cultura brota do território”, destaca.
Segundo Fernanda, quando o território é destruído por monoculturas, mineração ou outras formas de exploração, a cultura também entra em risco.
“A gente não gosta da palavra recursos, a terra não é fonte de recurso, de lucro, ela é fonte de vida. Então, 80% das áreas mais preservadas da biodiversidade da terra são territórios indígenas. Porque as nossas culturas dependem, para a sua continuidade, de um território protegido, de um território preservado, da integridade da biodiversidade, porque nós somos parte dela. Tudo está conectado. Os nossos xamãs, nossas lideranças espirituais, sempre contam isso para a gente ao redor da fogueira”, detalha.

A representante lembra que essa relação entre cultura e natureza já vem sendo reconhecida em espaços internacionais, como a 15ª Conferência das Partes (COP15) da Convenção da ONU sobre Diversidade Biológica, que resultou na adoção do Marco Global de Biodiversidade de Kunming-Montreal (GBF).
“Assim, dentro da Convenção sobre Diversidade Biológica, já há essa consciência. O Fórum Permanente da ONU sobre questões indígenas recomenda que os povos indígenas sejam considerados quando se fala de conservação de biodiversidade. Então, a demarcação das terras indígenas deve ser uma política global de conservação de biodiversidade”, conclui.
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