CULTURA POPULAR
Escola Unidos de Itapuã lança concurso de samba-enredo
Agremiação reafirma resistência no carnaval de Salvador

Por Manoela Santos*

Comissão de frente, alegorias de mão, alas de passistas e bateria são elementos hoje associados quase automaticamente ao carnaval carioca. No entanto, até meados do século XX, essas mesmas estruturas também davam vida ao carnaval soteropolitano. Nas ruas Chile e da Misericórdia, as escolas esperavam a vez de entrar na avenida e percorriam o circuito que ia do Campo Grande à Praça da Sé, saudando público, imprensa e jurados. A cidade se reconhecia ali, nos bairros representados por diferentes agremiações.
Com o passar dos anos, a ascensão dos trios elétricos deslocou o interesse do público e contribuiu para o declínio das escolas. Ainda assim, algumas resistem. Entre elas, a Unidos de Itapuã, que realiza a 7ª edição do seu Festival de Samba-Enredo.
O evento começou no dia 07 com um seminário que reuniu mestres do bairro e segue até 18 de janeiro, gratuito e aberto ao público. Até lá, compositores e compositoras participam de uma seleção que premiará, com valores em dinheiro, os melhores enredos baseados no tema da edição.
Compositores em cena
As inscrições, realizadas através de formulário online, já estão abertas e seguem até 23 de dezembro, a fim de selecionar músicas que cantem Itapuã. No próximo dia 28, os competidores saberão as canções classificadas e, entre 1 e 10 de janeiro de 2026, o público conhecerá os finalistas. O tema deste ano, “Isso só acontece em Itapuã: tradição, fé e identidade cultural nas manifestações de uma comunidade ancestral”, orienta a criação dos sambas concorrentes.
Após ensaios dos compositores selecionados com a bateria da escola, a final será realizada no Largo de Dona Cabocla, à Rua do Gravatá (Itapuã), onde se elegerão os três compositores ganhadores. Cinco jurados vão avaliar as canções finalistas a partir de categorias definidas e anunciar em tempo real as notas ao público. Os sambas escolhidos serão cantados no desfile da Lavagem de Itapuã.
Para Nailton, presidente da Unidos de Itapuã, o ressurgimento do samba no bairro tem sido uma construção lenta, mas firme. Ele compara esse processo a “uma semente que, mesmo escondida, só precisa dos nutrientes certos para germinar”. Segundo ele, os 18 anos de luta começam a mostrar frutos, sobretudo quando a escola passa a ser reconhecida como ponto de resistência cultural. “É a certeza de que estamos ajudando o samba a voltar ao lugar que merece: forte, vivo e respeitado”, diz.
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Falta de apoio
O jornalista e pesquisador Nelson Varón Cadena registra a impressionante quantidade de blocos e escolas atuantes entre as décadas de 1960 e 1980. Ele lembra que nomes como Juventude do Garcia, Filhos do Tororó, Ritmistas do Samba, Bafo da Onça, Diplomatas de Amaralina e Unidos do Vale do Canela eram presença constante nos jornais, mostrando que Salvador já teve um circuito de escolas de samba.
O pesquisador Rafael Lima Silva Soares, em seu artigo ‘Os batuqueiros e as primeiras escolas de samba da cidade do Salvador’, destaca que 1966 foi o ano em que a Prefeitura instituiu a disputa entre as escolas, ampliando a visibilidade das agremiações. A rivalidade entre Filhos do Tororó, Juventude do Garcia e Diplomatas de Amaralina dominou o carnaval por pelo menos uma década.
Para Nailton, porém, o desaparecimento das escolas não se explica apenas pela popularização do trio elétrico. Ele aponta que a falta de recursos e o distanciamento dos poderes públicos foram decisivos. Além disso, recorda relatos antigos de disputas desiguais, quando escolas com mais verba contratavam profissionais de outras agremiações, alimentando um ciclo de enfraquecimento. “Faltou apoio e sobrou descaso”, resume.
Legado e resistência
A Unidos de Itapuã nasceu em 2007, a partir do desejo de amigos que queriam resgatar o samba no bairro. O primeiro desfile foi na quarta-feira que antecede a Lavagem de Itapuã, em homenagem aos sambistas históricos Seu Henrique e Dona Cabocla. Com o tempo, a agremiação estruturou projetos de formação, oferecendo aulas de percussão para crianças e adolescentes, processo que deu origem à bateria Pedra que Ronca, formada pelos próprios alunos.
A partir de 2014, a chegada da velha guarda fortaleceu a escola com mestre-sala, porta-bandeira, passistas e malandros. Em 2024, a Unidos conquistou o terceiro lugar no Festival do Samba Junino de Itapuã; já em 2025, apresentou o enredo Sambando e Forrozeando no Sítio, inspirado no Sítio do Pica-Pau Amarelo.
Apenas duas escolas
Segundo Neilton, a história da Unidos é atravessada pela memória dos veteranos do samba em Salvador. Ele enfatiza que, embora a agremiação não tenha vivido diretamente os anos áureos das antigas escolas, a conexão com essa geração é essencial para preservar a tradição.
O festival “Do Nascimento ao Renascimento”, por exemplo, evidencia essa herança ao reunir nomes históricos e aproximar o público mais jovem de suas narrativas.
Hoje, a Unidos mantém intensa atuação comunitária com oficinas de percussão, dança e confecção de figurinos, voltadas a jovens, idosos e famílias, reforçando seu papel social.
O mestre de bateria Rafael Jorge, ex-aluno das oficinas, conta que sua trajetória na escola começou “naturalmente”, quando ainda era aluno. Ele destaca que os cursos oferecidos pela agremiação, que já incluíram leitura rítmica, inglês e violão, transformam vidas no bairro. Mas reforça que o grande desafio permanece o financiamento: “Hoje existem apenas duas escolas em Salvador, e falta uma ajuda das empresas para fortalecer esse movimento que é daqui da nossa terra”, afirma.
Festival é encontro de gerações

No seminário que abriu a edição deste ano, a presença de figuras históricas emocionou o público. Nailton relata que ouvir Mestre Ulisses, morador de Itapuã desde quando o bairro tinha apenas quatro ruas e que participou de praticamente todos os movimentos culturais locais, foi um momento raro.
Para ele, Ulisses é “uma memória viva”, capaz de transmitir a história do lugar com autenticidade.
Marcos Oliveira, compositor e puxador de samba conhecido na cidade, também marcou o encontro. “Essas rodas aproximam os jovens das raízes do samba e fortalecem sua formação cultural”, diz Nailton.
‘Itapuanzeiros’
Já Rafael lembra com carinho a emoção do primeiro festival, quando a maior parte dos integrantes atuais ainda estava se formando. Ele conta que assumir a bateria, “passada pelo mestre Raul Pitanga”, foi determinante para seu envolvimento afetivo com a escola: “A escola de samba tornou-se minha vida, como a de todos que estão aqui”, afirma.
Para Nailton, a importância desses encontros está na valorização dos ‘itapuanzeiros’ que abriram caminho e mantiveram viva a cultura local. Ele destaca que o festival e suas ações formativas reforçam a identidade do bairro e conectam as novas gerações ao legado do samba em Itapuã.
“Fortalecer essa raiz é fundamental para que o samba continue pulsando no bairro”, conclui.
7º Festival de Samba Enredo da Escola de Samba Unidos de Itapuã / Até 18 de janeiro / Largo de Dona Cabocla (Rua do Gravatá, Itapuã) / Evento Gratuito / Inscrições (formulário online) abertas até 23 de dezembro
*Sob supervisão do editor Chico Castro Jr.
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