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Da fantasia ao abadá, vestimenta do Carnaval evolui

Publicado quarta-feira, 16 de janeiro de 2013 às 23:00 h | Atualizado em 24/01/2013, 14:47 | Autor: Thamires Tavares
velhos carnavais, outras fantasias
velhos carnavais, outras fantasias -

"Tomara que esse ano lhe encontre de novo no meio da rua, no meio do povo. Mortalha encharcada de cerveja, até o pé, e a boca lambuzada de acarajé". A composição "No meio da rua, no meio do povo", do músico Walter Queiroz, é fruto de uma época carnavalesca em que as mortalhas reinavam nas avenidas de Salvador. Elas vieram nos anos 60 para simplificar as fantasias utilizadas nos clubes em que aconteciam as famosas festas de carnaval.

O abadá, indumentária hoje predominante entre os foliões, surgiu no início dos anos 90 e serve de ingresso para os grandes blocos da atualidade. Logo após receber os abadás, é prática comum entre os participantes dos blocos personalizar as suas camisas em um processo em que não há limite para a criatividade.

O carnaval nem sempre aconteceu nas ruas: tinha prazo para começar, no sábado pela manhã, e para acabar, na noite da terça-feira. Os quatros dias eram preenchidos por festas nos clubes, onde todos se fantasiavam e cantavam as músicas criadas especialmente para a ocasião. Assim conta Walter Queiroz, um dos idealizadores do Bloco do Jacu, imortalizado pela sua mortalha azul turquesa.

"As fantasias enriqueciam o olhar, as canções comoviam os ouvidos e o fato de todo mundo junto cantar e dançar, fazia com que uma leveza enorme tomasse conta do país inteiro", lembra Queiroz. Os adereços de mão, como o reco-reco, tamborim, serpentinas e confetes também se faziam presentes. O modelo dos bailes durou até meados dos anos 60, período que o carnaval de rua começou a tomar forma.

"Os blocos iniciais, colocados por alguns clubes nas avenidas sob a forma de caminhões ricamente decorados, as manifestações primárias de grupos de pessoas que saíam às ruas e o trio elétrico de Dodô e Osmar faziam, então, o carnaval de rua de Salvador", relata o músico. Foi na reunião de em torno de 30 meninos da classe-média de Salvador que surgiu o Bloco do Jacu em 64.

"Pela primeira vez um bloco adota uma mortalha de uma cor só, o azul turquesa. Junto com o Jacu, toda uma tendência se espalha pela avenida. As mortalhas começam a tomar corpo no carnaval da Bahia e em 4 ou 5 anos toda a cidade se fantasiava com mortalhas, homens e mulheres. De 65 em diante, virou febre na cidade", completa Walter.

No contexto da mudança das fantasias para as mortalhas, o artista gráfico e publicitário Pedrinho da Rocha, que desenhou mortalhas por mais de 15 anos e, mais tarde, criaria o abadá, recorda que a fantasia de mortalha existia junto com as outras, como o pierrô, marinheiro ou pirata. "Acho que a mortalha caiu no gosto popular depois porque era fácil de fazer. Um grupo comprava o mesmo tecido e usava todo mundo igual nos blocos", recorda Pedrinho.

O caráter fúnebre foi deixado de lado e todos saíam coloridos. No período em questão, o golpe militar estava em evidência e as mortalhas também eram utilizadas como elemento libertário da contracultura. "A gente ia pra rua e via ainda o carnaval dos nossos pais. Dos anos 60 a 70 houve uma necessidade de rompimento com isso tudo", diz o artista gráfico. Para Walter Queiroz, as mortalhas traziam vantagens e desvantagens: "Era muito pano para muito Sol. Dizia-se na época que as mortalhas induziam uma certa sensualidade, pois despertava um mistério sobre os corpos das moças".

A mortalha já vinha sofrendo modificações. Ela perdeu as mangas, o capuz, as cores fúnebres, e os foliões começaram a dobrar o pano. A era da mortalha durou por volta de 20 anos, até o final dos 80. A pedido da banda Asa de Águia, que estava tocando no Bloco Eva, em 1990, Pedrinho recebeu a proposta de encurtar a mortalha. "Era preciso dar um contexto para a novidade e decidiu-se sair fantasiado de capoeirista, então isso virou o projeto abadá", conta o designer. O projeto era sigiloso, pois a mortalha era algo "imexível" na época, diz. Segundo Pedrinho da Rocha, ele já havia proposto a ideia para outros blocos, que não aceitaram.

"Acho que por conservadorismo, ou medo mesmo. Antes, existia a figura do diretor de bloco. Ele queria agradar o folião. Hoje, a banda é muito mais determinante e o artista está mais preocupado com o fã. Naquela época, a fantasia tinha um apelo muito forte junto ao folião. As pessoas ficavam torcendo para saber como ia ser a fantasia, hoje a fantasia é o ingresso", explica Pedro. Na construção da fantasia de capoeira, a calça virou uma bermuda, as mangas do abadá, que ganhou cores, foram retiradas, e da ideia de homenagear a capoeira não sobrou muita coisa, só o nome.

Após o Eva estrear a nova fantasia nas avenidas, no ano seguinte, todos os blocos pediram para sair de abadá. O artista ressalta que não se tinha intenção alguma de fazer revolução. O tempo passou e a bermuda desapareceu, assim como os outros adereços. "O baiano era mais caxias na fantasia. Se o bloco dava a mamãe-sacode, ele ia lá e sacudia. O turista de fora rejeitava mais isso. Quando o paulistano chegava com a bermuda de marca, ele não queria usar a daqui. O folião baiano começou a fazer a mesma coisa, aumentando a individualidade. Hoje, não tem muito mais para onde ir. Só ficou de residual a marca do bloco", conclui Rocha.

A customização sempre esteve presente, desde as mortalhas. Para a universitária Lara Dias, essa prática é comum pois as pessoas têm a necessidade de se diferenciar e chamar mais a atenção. Pedrinho da Rocha acha a personalização uma boa iniciativa: "é um processo criativo em cima do seu, como se a sua criação ganhasse uma outra vida". Lara conta que customiza seus próprios abadás, cortando o comprimento e aplicando diversos materiais, como fitinhas do Bonfim e pedrinhas em torno do nome do bloco.

A evolução histórica do carnaval confunde-se com as transições dos seus trajes: das fantasias às mortalhas, chegando aos abadás customizados. Seja de qualquer maneira, o carnaval se torna uma grande fantasia, em que cabe só ao folião vestir-se da forma que mais lhe deixe confortável para curtir a festa.

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