CINEMA NACIONAL
Causou em Cannes: o filme que o Brasil precisava ver chega aos cinemas
Baseado no encontro entre Davi Kopenawa e Bruce Albert, o filme chega às salas após repercussão internacional

Por Rafael Carvalho | Especial para A TARDE

Em 2010, o antropólogo francês Bruce Albert lançou o livro A Queda do Céu: Palavra de um Xamã Yanomami, fruto do seu encontro e convivência com o líder indígena Davi Kopenawa, cujos depoimentos serviram de base para a obra, sendo ele também autor. O livro logo se tornou um clássico instantâneo da literatura mundial.
Agora, mais de dez anos depois, os cineastas Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha lançam o filme A Queda do Céu, em busca de retomar as palavras e os alertas de Kopenawa, de quem também se aproximaram.
O filme estreou ano passado no Festival de Cannes, chegou a abrir o Panorama Coisa de Cinema, em Salvador, e agora chega agora aos cinemas comerciais.
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“A gente sempre entendeu que esse era um livro inadaptável. Nós nunca tivemos a pretensão de fazer uma adaptação, é muito mais um diálogo com o livro, uma relação muito de inspiração livre”, pontuou Eryk que conversou com A ATARDE por videoconferência, pois estava em Belém do Pará, participando da COP30.
Ali, o filme havia sido exibido um dia antes, e Kopenawa participou de uma série de debates e encontros para expor o pensamento e o entendimento dos nativos da floresta sobre as discussões de clima e, principalmente, de como preservar o planeta. O diagnóstico não é dos melhores. Essa é, de alguma forma, também a missão do documentário.
“O filme nasce, claro, do nosso encantamento com o livro. E naquela obra tem uma fala que se repete muito, que é o Davi fazendo uma convocação para que as palavras dele cheguem até os brancos”, revelou Gabriela, acrescentando que “a palavra de Davi” significa a voz dos Yanomami como um todo e também dos xapiri da floresta – nome dado aos espíritos ancestrais do povo Yanomami.
“Como pessoas de teatro e cinema, a gente entende que a realização de um filme é um modo de fazer essas palavras chegarem mais longe”, continuou a realizadora. Ela contou ainda que o primeiro contato que eles tiveram com Davi, Bruce e outros integrantes da aldeia se deu no final de 2017. Ali, eles selaram um acordo de realização da obra, que rendeu também outros frutos.
Cinema coletivo
Os diretores revelaram que, dada a relação e a parceria com os indígenas e o antropólogo, além das intensas pesquisas para o projeto, eles perceberam também a vontade de traçar uma colaboração mais agregadora.
“Existia ali nas nossas conversas também um desejo de fortalecimento do cinema Yanomami, dos realizadores que já havia por lá. Então, a gente foi entendendo também a necessidade nossa e deles de formar uma equipe híbrida entre Yanomamis e não indígenas”, afirmou a cineasta.
A partir daí, criou-se uma equipe não apenas integrada, mas que investiu em outros trabalhos. É o caso dos curtas Mãri Hi – A Árvore do Sonho, de Morzaniel Iramari e Thue Pihi Kuiwii – Uma Mulher Pensando, de Aida Harika, Roseane Yariana e Edmar Tokorino. Os realizadores desses curtas trabalharam na equipe de A Queda do Céu, enquanto Eryk e Gabriela os produziram.
Ritual fúnebre
Os diretores destacaram também que, enquanto faziam a pesquisa para o filme, o sogro de Davi acabou falecendo na aldeia. Foi ele quem iniciou o genro no xamanismo, quem iniciou Bruce Albert no conhecimento dos Yanomami e promoveu a amizade deles dois, o que acabou originando esse livro que é um marco na relação entre indígenas e não indígenas.
“Quando acontece essa morte e têm que ser feitos alguns ritos em prol dela, o Davi nos convida para filmar a festa reahu, que é o ritual fúnebre dos Yanomami. É um encontro muito forte, comunitário, espiritual, estético. Um encontro de celebração da vida, daquela vida específica e isso se torna o coração do nosso filme”, sentenciou a diretora.
A Queda do Céu, não apenas por contar com os registros de um festa-ritual tão importante e sagrada como essa, acaba se tornando um poderoso instrumento de observação de um cotidiano rico de sensações e proposições de vida comunitária.
O filme se demora nas imagens, não tem pressa no seu ritmo contemplativo, respeitando e traduzindo a própria experiência de convivência que vemos naquela comunidade.
Apesar do convite feito para que eles estivessem naquele ambiente filmando tudo – ou pelo menos aquilo que lhes era permitido –, os diretores contaram que havia alguns estranhamentos.
Eles filmaram no ano de 2021 e, assim que chegaram na aldeia, foi para filmar, nunca fizeram uma visita exploratória antes. No entanto, o convívio diário e a aproximação contínua ajudavam a criar uma relação de confiança entre todos.
Três eixos
Eryk pontuou ainda que há um momento chave no filme que provoca uma virada dramatúrgica na narrativa. É quando um indígena ancião fala para eles que estavam filmando: “Vocês filmam a gente, de que lado vocês estão? Será que a gente vai poder confiar em vocês? Vocês serão nossos aliados”?.
“Esse momento é muito importante no filme porque coloca em xeque essa relação”, observou o realizador. Até então, estávamos muito centrados nos rituais, na cosmologia. Mas a partir dessa fala dele, se transforma num filme mais político e mais frontal”.
O cineasta também afirmou que, a partir disso, é possível estruturar o longa em três eixos centrais: o diagnóstico, o alerta e o convite. Algo que já estava lá no livro e eles acabaram trazendo para o documentário.
A imagem do céu em queda é uma alegoria apocalíptica criada por Davi e, mais do que nunca, funciona como um alerta importante que os povos indígenas já fazem há muito tempo, mas cujas palavras são ignoradas. Ao invés de tentar racionalizar ou explicar esses e outros pensamentos, A Queda do Céu busca criar no espectador uma relação sensível e poética de uma experiência que é também política e crucial para a vida humana.
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