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A Tarde Memória

Por Cleidiana Ramos*

ACERVO DA COLUNA
Publicado Saturday, 31 de August de 2024 às 5:00 h | Autor:

Coleções de A TARDE contam as histórias da resistência dos saveiristas

Reportagens celebraram a glória e lamentaram o declínio de uma atividade profundamente vinculada às águas da Baía de Todos-os-Santos

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A arte dos saveiristas teve um papel central na conexão entre Salvador e cidades do Recôncavo
A arte dos saveiristas teve um papel central na conexão entre Salvador e cidades do Recôncavo -

Em Mar Morto, Jorge Amado descreveu o ambiente especial que forma o universo dos saveiristas. Estes homens são guardiães de uma atividade que foi central sobretudo para o abastecimento de comida. Acostumados à instabilidade da mudança de correntes e chegada de tempestades em sua atividade cotidiana passaram a dominar códigos que misturam o pragmatismo e o mágico. Tanto que a literatura e o jornalismo apresentam linguagem parecida diante do objetivo de contar as histórias sobre esses homens do mar, como mostra o trecho da reportagem publicada na edição de A TARDE de 7 de dezembro de 1937.

“Vespera da Grande Festa da Conceição da Praia, o reporter foi rondar ali pela rampa escorregadia do limo, carunchosa e áspera do mercado aonde acostavam inúmeros saveiros chegadiços pela madrugada. Naquela confusão de mastros e cordames, de velas e de enxaricas, divisamos cachimbo de argilla derribado num canto da bocca, mestre Pitta, um caboclo forte, de largo peito cosido por tatuagens de que só ele sabia as origens. Descemos a rampa e passamos para bordo da pequenina embarcação do saveirista que ostentava na pôpa o nome de “Gavião do Mar”. Outras em torno, se balouçavam tranquillas, com seus nomes- legendas gravadas no flanco: “Deus te guie”, “Deixe eu viver”, “Boa Sorte”, “Linda Flor”, “Estrela do Mar” e outros e outros”. (A TARDE, 7/12/1937, p2).

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A reportagem de 1937 se aproxima das descrições da obra de Jorge Amado. O livro foi publicado um ano antes do texto de A TARDE, o que mostra o quanto o mundo dos saveiristas estava presente no imaginário da época. Na apresentação da obra, o escritor apontou os motivos que o levaram a retratar o cotidiano dos mestres de saveiros:

“Agora eu quero contar as histórias da beira do cais da Bahia. Os velhos marinheiros que remendam velas, os mestres de saveiros, os pretos tatuados, os malandros sabem essas histórias e essas canções. Eu as ouvi nas noites de lua no cais do mercado, nas feiras, nos pequenos portos do Recôncavo, junto aos enormes navios suecos nas pontes de Ilhéus. O povo de Iemanjá tem muito que contar. Vinde ouvir essas histórias e essas canções. Vinde ouvir a história de Guma e de Lívia que é a história da vida e do amor no mar. E se ela não parecer bela, a culpa não é dos homens rudes que narram. É que a ouvistes da boca de um homem da terra, e dificilmente, um homem da terra entende o coração dos marinhos. Mesmo quando esse homem ama essas histórias e essas canções e vai às festas de dona Janaína, mesmo assim ele não conhece todos os segredos do mar, pois o mar é mistério que nem os velhos marinheiros entendem”. (Mar Morto, Jorge Amado, p.2).

A arte dos saveiristas teve um papel central na conexão entre Salvador e cidades do Recôncavo
A arte dos saveiristas teve um papel central na conexão entre Salvador e cidades do Recôncavo | Foto: Data: 16/01/1974 | Cedoc A TARDE

Ao longo de décadas, A TARDE acompanhou a glória e o declínio desta atividade que é conectada profundamente à baía de águas calmas, mas nem por isso de fácil controle. Nela deságuam rios que atravessam parte significativa do território baiano como o Paraguaçu e o Jaguaripe. O saveirista entende dos segredos para cruzar estas águas, mas também daqueles que garantem a estabilidade e segurança das embarcações e sua fabricação. Na região da Baía de Camamu, no baixo sul, os estaleiros são os espaços onde esse conhecimento ainda persiste.

“Em Cajaíba do Sul a economia está voltada, além da pesca, para a calafetagem, marcenaria e pintura de escunas e saveiros. O povoado é conhecido no mundo todo, pois é nele que se produz a maioria das escunas e saveiros que hoje estão espalhados pelo Brasil e fora dele”. (A TARDE, 9/3/2008, p.5).

A arte dos saveiristas teve um papel central na conexão entre Salvador e cidades do Recôncavo
A arte dos saveiristas teve um papel central na conexão entre Salvador e cidades do Recôncavo | Foto: Data: 17/07/1969 | Cedoc A TARDE

Resistência

Mestre em História da África, da Diáspora e dos Povos Indígenas, Fábio Batista explica que a teimosia tem sido o principal combustível para a resistência do ofício de saveirista que, por quase três séculos, sustentou uma rede formada por outras atividades, como carpinteiros navais, estivadores, arrumadores e comerciantes. “A mudança do modal de transporte com ênfase nas rodovias em detrimento do transporte fluvial, que se articulava com o ferroviário, como era o caso de Cachoeira, São Félix, Nazaré das Farinhas, e a crise no setor produtivo açucareiro e fumageiro foram determinantes para o declínio dos saveiros”, diz o professor do Centro Universitário Adventista de Ensino do Nordeste (Uniaene) e da rede pública do Estado da Bahia.

De acordo com Fábio Batista, na década de 1970 surgiu a escuna que é construída sobre a base física do saveiro e que contribui para a sobrevivência de alguns estaleiros. “Essa construção ocorreu na década de 1970, por iniciativa do engenheiro Lev Smarcevski. Mas a embarcação é voltada para o passeio e para uma fração elitizada da população e já não reúne a essência e originalidade do saveiro com a sua tradicional vela de iça, tijupá e capacidade de carregar de oito a 15 toneladas de carga”, acrescenta.

A arte dos saveiristas teve um papel central na conexão entre Salvador e cidades do Recôncavo
A arte dos saveiristas teve um papel central na conexão entre Salvador e cidades do Recôncavo | Foto: Data: 10/11/1991 | Cedoc A TARDE

Segundo o professor, atualmente os saveiros formam um conjunto de cerca de 20 unidades. “Se não fosse os chamados “fretes” para as ilhas e pontos aonde não chegam os caminhões, hoje estaríamos falando de um tipo de embarcação totalmente extinto”, completa.

Coqueiros e Nagé, distritos de Maragogipe, Jaguaripe e alguns pequenos estaleiros espalhados por algumas outras localidades da Baía de Todos-os-Santos mantêm as atividades de manutenção dos barcos. “Existe uma ingratidão do Estado da Bahia com os seus saveiristas e saveiros por tudo que representam e o seu papel na produção de riqueza. O saveiro Sombra da Lua foi “tombado” mas ainda falta uma política pública com uma agenda objetiva no sentido de evitar o desaparecimento por completo da cultura marítima protagonizada pelos mestres saveiristas”, diz Fábio Batista.

O professor está desenvolvendo o projeto intitulado “Quem eram os marinheiros negros do mar interior” para dar destaque a homens como Mestre Bira, de Jaguaripe, Mestre Lorão de Coqueiro e seu Aloísio de Aratuípe. “O objetivo é trazer à tona outras narrativas sobre a história da Bahia”, acrescenta Fábio Batista.

Em sua avaliação são necessários títulos de doutor honoris causa para os mestres e a ampliação de atividades culturais, como os festivais que têm acontecido em cidades do Recôncavo. “Acredito que é possível integrar os Saveiros de Vela de Iça ao turismo náutico na Baía de Todos-os-Santos. É importante também abrir uma linha de financiamento público para a manutenção das embarcações e fomentar a aproximação com a iniciativa privada no sentido de uma contrapartida para manter viva a cultura saveirista”, avalia o professor.

Patrimônio

Além da importância no abastecimento especialmente de Salvador, os saveiros estão vinculados ao patrimônio simbólico da Baía de Todos-os-Santos. No passado em várias celebrações religiosas e esportivas estas embarcações tinham protagonismo.

A coluna A TARDE Memória de 30 de julho de 2022, por exemplo, resgatou uma celebração sobre a qual ainda sabemos pouco: a Romaria dos Saveiristas. Ela era realizada na Escada de Santa Bárbara, anualmente, no dia 1º de novembro, na região do Comércio. O registro está em uma reportagem publicada por A TARDE em 31 de outubro de 1931, mas já com o lamento pelo fim da celebração sem informar até quando ela havia resistido.

“Em outros tempos, quando a cidade, de amarellado aspecto colonial, vivia sossegada na farinha barata e na abundancia das frutas, as festas, chamadas populares tinham início no dia de amanhã, 1º de novembro, de invocação de Todos os Santos”. (A TARDE, 31/10/1931, p.3).

De acordo com a reportagem de 1931, a festa era grande e tinha como líder o saveirista Manoel Rufino da Conceição. Ele, inclusive, era um herói na cidade, pois salvou uma mulher durante um incêndio em 1908 e, por isso, recebeu uma condecoração.

Como os pescadores, os saveiristas também ficaram conhecidos pela devoção a Iemanjá, e colaboraram para o aumento da beleza das festas de Bom Jesus dos Navegantes e de Nossa Senhora da Conceição da Praia. Nesta última estavam no centro de um dos elementos mais conhecidos da celebração e que se perdeu: o consumo de frutas especialmente na manhã do dia solene. Consumir abacaxi e melancia, das cargas transportadas pelos saveiros, era a estratégia dos foliões para auxiliar na recuperação das noites passadas no samba sem trégua das barracas do entorno da igreja durante o novenário.

“Um vasto material frugívoro ali estava para a grande véspera da festa da Conceição. E tudo aquillo fora trazido nos porões das pequenas embarcações dos saveiristas. Duas vezes no anno eles embandeiram seus barcos e riscam o phosphoro da alegria para accender a candeia rude do coração: — peia Conceição da Praia e na grande procissão marítima do Senhor Bom Jesus dos Navegantes, a 1º de janeiro. Por que fora destes dois dias tudo é a rude e insana batalha com as borrascas do mar . . . com as ilusões traiçoeiras do mar.,.- Saveiristas bahianos! Gente rude do mar. Que outra protecção, que outra ajuda os alcançará, além da sua grande crença dos mistérios serenos do culto de “Yemanjá”? (A TARDE, 7/12/1937, p.2).

Jorge Amado, com maestria, explicou essa fé especialmente no que é mistério:

“Do mar vem toda alegria e toda a tristeza porque o mar é mistério que nem os marinheiros mais velhos entendem, que nem entendem aqueles antigos mestres de saveiros que não viajam mais, e, apenas, remendam velas e contam histórias. Quem já decifrou o mistério do mar? Do mar vem a música, vem o amor e vem a morte. E não é sobre o mar que a lua é mais bela? O mar é instável. Como ele é a vida dos homens dos saveiros”. (Mar Morto, Jorge Amado, p.13).

Reportagem e literatura estiveram unidas para celebrar uma atividade que em meio a tantos obstáculos segue resistindo. Hoje muito deste ofício está na memória dos mestres, mas há ainda parte que é fluxo interrupto assim como as águas dos rios misturadas ao mar conectando tantas formas de viver no entorno desta baía de santos e encantados.

*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia

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