Pelourinho reflete um país que se odeia
Se o Brasil quiser chegar a algum lugar que preste, temos um grande passado pela frente, começando pelo Pelourinho
![Prefeitura interdita igreja de São Francisco de Assis após tragédia que vitimou uma turista](https://cdn.atarde.com.br/img/Artigo-Destaque/1300000/724x500/Iphan-tem-ao-menos-800-bens-tombados-que-aguardam-0130638300202502071654-ScaleDownProportional.webp?fallback=https%3A%2F%2Fcdn.atarde.com.br%2Fimg%2FArtigo-Destaque%2F1300000%2FIphan-tem-ao-menos-800-bens-tombados-que-aguardam-0130638300202502071654.jpg%3Fxid%3D6551427%26resize%3D1000%252C500%26t%3D1739218395&xid=6551427)
Júlia ama seu país e, vinda de São Paulo, chegou ao Pelourinho convencida de que o Brasil nasceu ali. De fato, nosso país veio de uma colônia portuguesa sediada na Praça da Sé, no Pelourinho. Por isso, Júlia começou vendo, de fora, um canteiro de obras. Um novo hotel de luxo ocupará a sede do governo colonial.
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Pouco a pouco, Júlia reparou que ninguém liga pro palácio. Achando tudo estranho, perguntou a um guia. Assim descobriu que o palácio foi bombardeado pelo Exército do Brasil em 1912. As bombas destruíram muitos documentos históricos, e portanto parte da história brasileira. Rebatizado, com outro projeto arquitetônico e destituído da própria história, o Palácio Rio Branco virou um problema tão grande que foi privatizado. Vai virar hotel de luxo.
Ali ao lado, no Terreiro de Jesus, há um espaço igualmente importante para o nascimento do Brasil. Foi o primeiro centro de ensino superior das Américas. Nele estudaram Gregório de Matos, o mais velho patrono da Academia Brasileira de Letras, e o Frei Vicente de Salvador, autor do mais antigo livro de história do Brasil, e Alexandre Rodrigues Ferreira, o naturalista pioneiro na documentação da fauna e da flora brasileira, e o Padre Antônio Vieira, primeiro intelectual formado no Brasil e reconhecido fora dela.
Júlia não conseguiu entrar. A estrutura para receber turistas existe, mas é acanhada. Não há um museu que se preze. A maioria dos baianos sequer conhece a história do Colégio dos Jesuítas. Boa parte do prédio original foi destruído por um incêndio em 1905, quando já sediava a Faculdade de Medicina da Bahia. Hoje, os alunos mal pisam no Pelourinho. Pouquíssimos brasileiros sabem o que aconteceu naquele espaço sub-utilizado.
Apesar da decepção, Júlia leu sobre um ponto turístico imperdível: a Igreja e Convento de São Francisco, a mais importante do país nos tempos de Colônia. A estrela do complexo é a igreja da Ordem Primeira de São Francisco, que está cheia de ouro. Júlia gostou, mas esperava mais.
O passeio começou por um impressionante conjunto de azulejos esburacados. Dizem que, antes dos buracos, era a mais importante obra de azulejaria portuguesa no Brasil. O complexo estava cheio de arte e era lindo na teoria, mas mal cuidado na prática. A beleza parecia distante.
Para decepção de Júlia, um amigo baiano disse que estava assim desde a infância dele. Curiosamente, ela ficou agoniada e saiu. Me lembro dos detalhes porque sou o amigo baiano de Júlia.
Enquanto saíamos da igreja, comecei a tirar fotos dos azulejos quebrados e, jornalista que sou, perguntei aos funcionários sobre a situação. Disseram que era difícil conseguir dinheiro do IPHAN, mas comemoraram a promessa de renovação dos azulejos, prioridade na época. A manutenção da igreja ficaria para depois.
Minha amiga tem outro nome, mas lembrei dela quando ouvi a história de Giulia, turista que morreu após o desabamento do forro do teto da Igreja de São Francisco. Afinal, Júlia poderia ter sido Giulia. Poderia ter sido eu.
A cidade inteira sabe que a manutenção do complexo era péssima há muito tempo. Normalizamos o absurdo. Quando não apagamos, desprezamos a memória dos lugares onde o Brasil nasceu.
Claro, há sempre quem justifique: como priorizar a cultura num país tão pobre? Felizmente, esse dilema não existe. Se as memórias coloniais do Pelourinho tivessem sido preservadas, os turistas poderiam entender melhor o colonialismo que orientava as decisões no palácio de governo. Saberiam não só dos feitos do Colégio dos Jesuítas, mas também que Portugal tinha medo da educação. Na Igreja de São Francisco, veríamos belíssimas obras feitas por escravos que nelas deixaram mensagens subliminares.
Dos tempos de colônia, sobraram a Catedral Basílica, as ruas de pedra e muito pouco. No Largo do Pelourinho, não há pelourinho, só se vê Michael Jackson. Seguindo a toada, quase ninguém sabe que a família Lacerda fez fortuna com o tráfico de escravizados. É isso mesmo: o cartão postal da Roma Negra tem o nome de um escravista, ainda que pouquíssimos baianos saibam disso.
O desprezo pela cultura e pela memória não tem apenas um impacto simbólico. No fundo, é o maior problema desse país, pois o resto é consequência. Não sabemos de onde viemos e, por isso, não sabemos para onde vamos. Se quisermos chegar a algum lugar que preste, temos um grande passado pela frente.
*Pedro Menezes é analista político do Grupo A TARDE