EXPOSIÇÃO ARTÍSTICA
A história da tartaruga que guiou uma artista de Camarões até Salvador
Francesa Beya Gille Gacha transforma um encontro simbólico em processo criativo e traz exposição de arte para a Bahia

Por Marina Branco

Dentro do ateliê temporário onde vive há três semanas em Salvador, a artista franco-camaronense Beya Gille Gacha fala com simplicidade sobre algo que, em seu trabalho, nunca é simples: o retorno.
Atualmente, Beya está na Bahia para apresentar novas camadas de"O Caminho da Tartaruga", sua exposição artística contínua sobre memória, território e ancestralidade. Mas, ao contrário do que poderia sugerir uma exposição, o que se passa aqui não é apenas uma exibição - é um movimento vivo.
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"Todos os dias, quando eu abria a porta do Instituto Sacatar, havia uma tartaruga me esperando", conta, não como metáfora, mas de maneira literal. "Entre o meu povo, os Bamiléké, em Camarões, quando um animal vem te ver, ele traz uma mensagem. Cada animal tem seu significado, e isso nunca é por acaso", diz.
"Para mim, era evidente que aquela tartaruga estava me levando a algum lugar invisível. Ela se tornou meu guia", afirma.

Para a cultura Bamiléké, da artista, o animal significa justiça e paciência, com a carapaça representando o céu e as quatro patas, os pilares do mundo. Já no Brasil, é associada a Xangô, divindade do fogo e da justiça no candomblé. No Egito antigo, era uma mensageira divina, que mantinha a ordem cósmica no caos.
A tartaruga, para Beya, é símbolo do "tempo que se curva". É como se o tempo não corresse, não fosse embora de nós, mas sim retornasse. Essa ideia se conecta com o porcesso que leva artistas e pessoas de um país a outro, de uma cultura a outra, fazendo as diásporas culturais que conectam, por exemplo, França e Camarões, os países que fazem parte da história da artista.
Em reverência a essa tartaruga, a artista criou sua exposição, como uma celebração da lentidão e da profundidade trazidas pela tartaruga. Atualmente, a obra está exposta na Aliança Francesa de Salvador, aberta ao público que quiser conhecer o trabalho de Beya.
Miçangas como linguagem e segredo
Quem entra em contato com a obra de Beya percebe imediatamente a força das miçangas, cobrindo esculturas, corpos e superfícies com brilho ritual. No Brasil, o olhar pode reconhecer nelas um parentesco com os colares do candomblé. A artista, mesmo sendo de longe, sentiu o mesmo.
"As miçangas são uma arte mágica. No meu povo, nós cobrimos esculturas com elas, e isso tem níveis de leitura que só se compreendem após iniciações", explica. "Quando cheguei à Bahia, vi pessoas usando colares de contas. Perguntei sobre as cores, e alguém me disse: 'Não posso te contar mais, porque você não é iniciada'", relata.
"Eu adorei isso. É exatamente o que diriam no meu país. Certas verdades precisam de tempo e autorização. Aqui percebi a mesma sabedoria: não se força o tempo das coisas", completou.

A Bahia, para Beya, não é um território estrangeiro, mas sim uma "irmã" do lugar de onde ela veio. Ela conta que, quando adolescente, frequentava o Museu du Quai Branly, em Paris, desenhando objetos de diferentes regiões do mundo, capturando semelhanças e repetições.
"Sempre fui fascinada pelas conexões entre diferentes povos", diz. Na exposição atual, uma coroa de penas carrega o símbolo real dos Bamileké. Ao chegar em Salvador, anos atrás, ela viu coroas semelhantes nas culturas indígenas locais.
"Percebi que as relações entre África e América são mais antigas e profundas do que imaginamos. Encontrei aqui ecos das minhas montanhas", conta.

Colaborações, encruzilhadas, destino
Hoje, a artista faz parte do projeto Eu Sou Um Oceano Negro, que veio à Bahia juntamente com a leva de artistas do "Nosso Futuro Brasil-França: Diálogos com África". Juntando exposições, filmes e diversas manifestações artísticas, o projeto trouxe arte francesa e africana para Salvador, com as tartarugas de Beya entre elas.
"Na minha prática, sigo os caminhos e as encruzilhadas, e é nelas que encontro as pessoas certas. A tartaruga me levou ao meu vulcão interior. À força que vem de dentro. Ao desafio de aceitá-la", reflete a artista.
Entre essas encruzilhadas, está Salvador, que no ano passado foi a casa de Beya por dois meses e, agora, já é há três semanas. "Quando pisei na Bahia pela primeira vez, senti que tinha ancestrais aqui, assim como acredito que muitos baianos têm ancestrais em Camarões. Sinto-me guiada o tempo todo", afirma.
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