CÊNICAS
Afeto e resistência: peça Vovô roda terreiros de Salvador e interior
Bahia recebe turnê do espetáculo Vovô com oficinas e bate-papo
Por Maria Raquel Brito*

“Quais são suas memórias com seu avô”? Uma pergunta curta, sucinta, e com um universo de possíveis respostas. A partir de algumas delas nasceu o espetáculo Vovô, inspirado por histórias que trazem a figura do avô negro como símbolo de afeto, sabedoria e resistência nas famílias brasileiras. O espetáculo, que estreou em 2021 de forma virtual, retorna com uma temporada especial em agosto: uma circulação por terreiros de Candomblé em Salvador, Lauro de Freitas, Camaçari e Santo Amaro.
Gratuitas, as apresentações têm início amanhã no Terreiro Ilê Asé Odé Faroerã, no bairro de Paripe, em Salvador, e seguem até o dia 29, quando a performance no santamarense Terreiro Ilê Yá Oman fecha a programação. As sessões fazem parte do projeto Raízes que Povoam, que, além do espetáculo, levará aos terreiros um workshop de produção cultural, ministrado pelo gestor sociocultural Nell Araújo.
A iniciativa foi idealizada por Juliana Sousa, produtora cultural e diretora de produção de Vovô, e realizada pelo Instituto de Arte e Cultura da Bahia (IAC-BA)/Teatroescola. A vontade de levar o espetáculo a espaços sagrados e repletos de cultura como os terreiros já era antiga no coração da produtora.
“O espetáculo traz essa perspectiva da figura do avô negro, do pedido de bênção, do respeito ao mais velho e do resgate ancestral, então eu tive logo em mim essa percepção de que ele poderia rodar em espaços de terreiro, porque dialoga muito bem com a filosofia desses espaços. As pessoas mais velhas são as que detêm mais sabedoria ali, e essa questão da oralidade, do cuidado e da força também aparecem muito. A gente estava há dois anos com o espetáculo parado e retoma agora, nos espaços de terreiro”, conta Juliana.
Para Rafael Martins, criador e produtor de Vovô e ator na peça, levar a montagem para os terreiros é especial. Inicialmente, ele ficou reticente e se perguntou se o espetáculo seria digno de estar em um espaço tão sagrado. Mas logo percebeu que esse seria um momento importante: celebrar os mais velhos em um lugar onde eles são as maiores referências.
“Indo para o terreiro hoje, eu tenho a maturidade para entender que é a apresentação mais importante que a gente faz. É a apresentação que tem uma questão simbólica maior, e ainda mais no mês de agosto que é mês de Omolu, que é o mês de velho. É um mês para falar sobre essa figura e para escutar essas figuras, porque uma coisa que a gente descobriu ao longo do processo é: Vovô não é só sobre ter dois atores lá na frente falando, é sobre ter dois atores e um diretor sentados após o espetáculo ouvindo. Porque as pessoas querem também ser ouvidas”, afirma.
Ao lado dele está o ator Pedro Zaki. Segundo Zaki, rodar com a peça por terreiros baianos já é bonito por si só, mas torna-se ainda mais importante por ser uma chance de se reconectar com a família – seja ela de sangue ou não.
“Eu sou padrinho de uma criança de seis anos e, coincidentemente, ele é o ogã de um dos terreiros que a gente vai visitar. E eu sou uma figura masculina muito importante na vida desse guri, então eu acho que visitar com Vovô é muito isso, de me ligar com minha família também. E eu não falo só ‘minha família’ enquanto pessoas que eu conheço, mas sim outros irmãos”.
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Antes de cada sessão, as comunidades terão acesso a um workshop de produção cultural facilitado por Nell Araújo, fundador e gestor do IAC-BA e do Teatroescola, a primeira escola artística inclusiva do Nordeste, e gestor do Teatro Jorge Amado. A atividade abordará temas como o conceito de cultura e a importância da cultura de terreiro, etapas básicas da produção (pré-produção, produção e pós-produção), estratégias de comunicação e uso consciente das redes sociais, além da relevância da gestão financeira para a organização e sustentabilidade de ações culturais. “É uma honra caminhar com o espetáculo Vovô nesses encontros tão potentes. Esses espaços são guardiões vivos de memória, cultura e resistência preta, e estar com eles, escutando, trocando e aprendendo, é parte do que move o Teatroescola. Esse projeto nasce do desejo coletivo de fortalecer quem já faz, quem já pulsa cultura em seus territórios. Somos parte de algo muito maior”, afirma Nell.
Além do IAC e do Teatroescola, responsáveis pela viabilização do projeto, a iniciativa tem também outros importantes parceiros. Juliana destaca a produção da Pé de Erê Produções e o apoio do Orooni - Rede Jovem de Candomblé e da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia (Secult).
“Não posso deixar de mencioná-los e de mencionar também todos os terreiros que estão abrindo as suas portas de forma gratuita, solidária, comunitária, que estão acolhendo esse projeto e que estão fazendo acontecer, porque eles também participam muito da comunicação. Isso só mostra o sentido principal e conceitual do projeto, que é de fortalecer o espetáculo e devolver para a comunidade do terreiro esse espaço de protagonismo”, diz.
O espetáculo

Vovô foi criado em abril de 2021, fruto da inquietação de Rafael Martins, a urgência de produzir frente a uma pandemia e ao isolamento social. Ainda não tinha um tema, apenas muita vontade de voltar a fazer arte. Convidou o diretor Leno Sacramento e o ator Pedro Zaki e, um tempo depois, surgiu uma ideia.
“Leno veio com essa ideia de falar sobre o avô e a gente começou o processo de escrita a partir de nossas memórias, eu e o Pedro. Memórias da nossa infância, se a gente teve ou não contato com nossos avós. A gente ficcionalizou algumas coisas também, se questionando muito ‘o que eu queria ter vivido com o meu avô que eu não vivi?’. E parte também em um processo de escuta, ouvindo os nossos amigos, fazendo reuniões e escrevendo. A gente tem algumas cenas que foram baseadas em coisas que a gente ouviu desses amigos. Então basicamente é essa colcha de retalhos”, conta Rafael.
A peça foi ganhando forma e teve sua estreia no formato virtual, com gravações dentro de casa, feitas nos celulares. Em 2023, foi adaptada para o modo presencial, sob direção de Leno Sacramento e coreografia de Dudé Conceição, e tomou o Brasil, já tendo passado por cidades como Salvador e Rio de Janeiro.
No palco, os personagens vividos por Rafael Martins e Pedro Zaki revisitam memórias afetivas com seus avôs, num diálogo sobre passado, comportamentos e escolhas. A peça destaca a importância do avô negro como símbolo de respeito, sabedoria e referência nas famílias pretas.
O intuito de Rafael e Pedro foi trazer experiências que, mesmo duras, não se transformassem em melancólicas, mas sim que propusessem um olhar afetuoso e crítico sobre essa figura. Fizeram isso dando voz a temas como abandono paterno, homofobia, rancor, cuidado e ancestralidade.
“A gente fala sobre essas figuras, dá nome às coisas, mas procura também falar: ‘eu te amo’. Coisa que é tão difícil às vezes a gente falar, porque, pela construção social, homens têm muita dificuldade em dizer ‘eu te amo’. Então Vovô é sobre realmente encontrar formas de amar, encontrar formas de ressignificar esse amor. Com o espetáculo, a gente está o tempo inteiro olhando para essa figura e tentando entendê-la. Entender que são homens, que são produtos de seu tempo, mas que eles têm defeitos e também têm qualidades”, diz.
Tanto para Rafael como para Pedro, as lembranças com os avós remetem majoritariamente à dor. Estas não ficaram de fora do espetáculo, mas, tanto para ressignificar suas experiências como para celebrar o amor que poderia ter vindo de um avô, mas veio de outras fontes, deram seus jeitos: Rafael escreveu algumas passagens pensando na avó e em dois vizinhos que o tratavam como neto. Pedro, por sua vez, pensava muito na mãe ao escrever. “O espetáculo fala sobre o avô, mas é muito mais sobre o afeto da família. Eu penso muito que é sobre o afeto”, diz Zaki.
Projeto Raízes que Povoam: Espetáculo Vovô + Workshop Produção Cultural / Em SALVADOR: amanhã, Workshop: 14h às 16h e espetáculo + Bate-papo: 17h / Terreiro Ilê Asé Odé Faroerã (Rua 7 de Setembro da Cocisa, 53 – Paripe) / Em LAURO DE FREITAS: 17 de agosto, Workshop: 14h às 16h, Espetáculo + Bate-papo: 18h / Terreiro Ilê Asé Opô Oyá Sojú (Rua Capiarara, nº 1.850 – Areia Branca, Lauro de Freitas) / Em CAMAÇARI: 23 de agosto, Workshop: 14h às 16h, Espetáculo + Bate-papo: 18h / Terreiro Ilê Axé Raízes Obá Kossô Omi (Rua São José, nº 13 – Distrito de Parafuso, Camaçari) / Em SANTO AMARO: 29 de agosto, Workshop: 09h às 12h, espetáculo + Bate-papo: 14h (Workshop exclusivo para membros do terreiro e estudantes da UFRB) / Terreiro Ilê Yá Oman (Av. Rui Barbosa, n 577- Bonfim, Santo Amaro)
*Sob supervisão do editor Chico Castro Jr.
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