VISUAIS
Bancos indígenas viram protagonistas em exposição inédita no Nordeste
Mostra reúne arte e saberes de 39 etnias indígenas no Museu da Bahia
Por Grazy Kaimbé*

Em muitas aldeias indígenas do Brasil, os objetos do cotidiano, como o banco, vão muito além de um simples objeto de descanso. Ele é também um símbolo de representação, um instrumento cerimonial e uma forma de conexão com seus ancestrais. Quando esculpidos com formas inspiradas na natureza ou pintados com grafismos tradicionais de cada etnia, esses objetos carregam ainda mais força simbólica — afirmam identidade, memória e espiritualidade.
É com essa potência que o Museu de Arte da Bahia (MAB), no Corredor da Vitória, inaugurou ontem, às 18h, a exposição "Bancos Indígenas do Brasil: Rituais". A mostra apresenta cem bancos esculpidos por artistas de 39 etnias indígenas do Brasil. A seleção inédita pertence à BEÏ Editora e segue aberta ao público até 28 de setembro.
Com curadoria de Marisa Moreira Salles, Tomás Alvim e Danilo Garcia, a exposição já percorreu diferentes cidades do país. Mas esta é a primeira vez que uma cidade do Nordeste recebe a mostra. Segundo o curador e editor Tomás Alvim, o contato com os bancos indígenas foi, inicialmente, um encantamento estético.
“Mas esse encantamento nos levou a uma imersão profunda numa cultura ancestral que mudou a vida da editora”, conta. Ele defende que a exposição é uma chance de o público repetir esse processo: se deixar tocar pela beleza, para então acessar a complexidade simbólica de cada peça e compreender que os povos indígenas não pertencem ao passado, mas seguem moldando o presente com sabedoria e resistência.
“É importante que as pessoas entendam que esses bancos não são artesanato. São arte. São expressão estética, autoria, sofisticação formal e simbólica. O que essas peças carregam vai muito além da funcionalidade”, diz.

Ao todo, a coleção reúne mais de 1.300 bancos indígenas brasileiros, provenientes de 53 etnias. Embora a maior parte das peças seja originária da Terra Indígena do Xingu, no Mato Grosso, a coleção também contempla exemplares produzidos por povos do Acre, Pará, Tocantins, Amapá, Roraima, Amazonas e Santa Catarina. A exposição chega à Bahia sem nenhum artefato dos povos indígenas baianos, mas o curador afirma que o trabalho de pesquisa segue em curso e que há interesse em ampliar a representatividade regional.
“Até o momento, não identificamos etnias na Bahia que produzam bancos cerimoniais, mas estamos sempre prospectando e abertos a aprender”, afirma Tomás Alvim.
O artista e professor indígena Milton Galibis Nunes, representante do povo Galibis do estado do Amapá, esteve presente na abertura. Em entrevista, Milton destacou que os bancos, para a etnia dele, não são apenas para sentar: “Para nós, eles têm espírito. São usados em rituais, carregam significados sagrados, são parte do nosso cotidiano e da nossa visão de mundo”.
Milton também conta que a produção dos bancos segue as orientações espirituais, comum em muitas aldeias. “Os pajés recebem dos seres dos outros mundos — das águas, das estrelas e das matas, as direções sobre como devem ser os grafismos, os materiais, os formatos”, conta.
O artista também ressaltou a importância da mostra ao reconhecer a arte indígena como arte, e não como artesanato: “Esses bancos são autoria, são estética, são espiritualidade”. A etnia dele é autora de alguns dos bancos de maiores dimensões da exposição, longas estruturas coletivas, que podem alcançar até seis metros e acomodar cerca de 15 pessoas durante o ritual do Turé, tradicional celebração do povo Galibis.
“Os grafismos, os desenhos, os formatos não são inventados por nós. São orientações que vêm dos nossos encantados, dos seres das águas, das matas, das estrelas. Quando um pajé vê algo em sonho ou recebe uma visão, ele transmite ao artista a forma que o banco deve ter”, diz Milton.
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Três eixos curatoriais

A exposição é organizada em três eixos curatoriais: “espiritualidade e cura”, “iniciação e passagem” e “contos e mitos”. Segundo Tomás, esses recortes visam oferecer ao público um caminho de leitura mais amplo sobre o papel simbólico dos bancos. “Esses três eixos formam o que chamamos de ciclo dos rituais. Ao longo desses 25 anos de pesquisa, aprendemos que os bancos têm diferentes significados: os formatos, os usos e os contextos cerimoniais nos quais estão inseridos são extremamente diversos”, conta.
“Embora sejam objetos do cotidiano, os bancos também carregam força simbólica e espiritual profunda. A exposição busca apresentar essa complexidade, os diferentes sentidos e funções que o banco assume em cada etnia”, reforça.
Há bancos de diferentes tamanhos, formatos e funções. Alguns são individuais, reservados a figuras de liderança, como caciques e pajés. Outros são usados em festas de colheita, rituais de cura ou cerimônias de iniciação. E há os bancos comunitários, que reúnem várias pessoas durante as celebrações. As peças apresentam elementos zoomorfos, antropomorfos e abstratos, de acordo com a tradição e os mitos de origem de cada povo.
Tomás destaca que, ao longo da curadoria, ficou evidente que os bancos são também instrumentos de memória e pertencimento. “Em várias aldeias, eles são passados de geração em geração. E o gesto de esculpir não é só técnico, é espiritual. O banco é um ser. Muitas vezes ele é tratado com reverência, cuidado e respeito. Tem aldeia em que o banco do pajé é guardado como se fosse um parente”, conta.
Oficinas e documentais

Além da exposição, a mostra inclui fotografias e vídeos produzidos pelo fotógrafo Rafael Costa, que registrou o processo de criação dos bancos por artistas das etnias Mehinaku (do Território Indígena do Xingu) e Ticuna (da Amazônia). As imagens mostram os detalhes da coleta da madeira, os rituais que antecedem a escultura e a relação coletiva que envolve a produção.
O projeto prevê ainda a realização de 16 oficinas de arte-educação voltadas para alunos da rede pública. A proposta é ampliar o contato das crianças e jovens com os universos culturais indígenas, estimulando o respeito, o conhecimento e o diálogo intercultural. “É uma forma de formação cidadã. É mostrar que o Brasil indígena não está no passado, está vivo, está aqui, está criando, ensinando, resistindo. É muito importante que os jovens aprendam isso desde cedo. Acreditamos que o contato com a arte indígena pode ajudar a formar uma nova geração com menos preconceitos e mais sensibilidade para a complexidade e a beleza dessas culturas”, diz Tomás.
Ao contrário da ideia recorrente de que os povos indígenas pertencem a um passado distante, a exposição reforça que essas culturas estão em constante reinvenção e movimento. A arte dos bancos, com toda a sua ancestralidade, é também uma afirmação de presente. “O Brasil ancestral era e é profundamente contemporâneo. O que os povos indígenas sabem sobre o tempo, sobre os territórios, sobre os recursos, sobre o espírito, é um conhecimento que o mundo precisa ouvir. E a arte é um caminho poderoso para isso”, conclui Tomás.
Exposição: ‘Bancos Indígenas do Brasil – Rituais’ / Visitação até 28 de setembro / De terça-feira a domingo, das 10h às 18h / Museu de Arte da Bahia (Av. Sete de Setembro, 2340 – Corredor da Vitória) / Gratuito
*Sob supervisão do editor Chico Castro Jr.
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