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CONSCIÊNCIA NEGRA

Local turístico mais visitado na Bahia homenageia criminoso; veja qual

Estudiosos revelam torturas e racismo em monumento histórico

Beatriz Santos

Por Beatriz Santos

20/11/2025 - 8:11 h | Atualizada em 20/11/2025 - 10:24
O Castelo Garcia d’Ávila, situado na Praia do Forte
O Castelo Garcia d’Ávila, situado na Praia do Forte -

Um dos pontos turísticos mais visitados da Bahia, o Castelo Garcia d’Ávila, situado na Praia do Forte, volta ao centro das discussões no Mês da Consciência Negra. Construído nos primeiros séculos da colonização, o monumento foi cenário de crimes e crueldade praticados pelo seu proprietário, Garcia d'Ávila, maior latifundiário da Bahia e do Brasil, durante o período escravista.

Diante disso, historiadores e pesquisadores defendem que essas histórias sejam expostas ao público, para que deixem de existir homenagens a escravistas em monumentos e lugares históricos. Uma das ideias, inclusive, é a mudança no nome do castelo baiano, que, por sinal é o único castelo medieval das Américas.

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“Ele tinha um verdadeiro fetiche na prática das torturas”

Documentos preservados na Torre do Tombo, em Lisboa, analisados pelo doutor em Antropologia, Luiz Mott, descrevem diversas torturas cometidas por Garcia d’Ávila Pereira de Aragão contra homens, mulheres, idosos e crianças escravizadas. Ao Portal A TARDE, Mott conta que os registros detalham uma combinação entre violência extrema e rebeldia religiosa.

“O que me chamou a atenção nesse documento foi a crueldade, o exagero de castigos que ele aplicava em seus escravos. Além disso, me chamou atenção a denúncia de que ele não era um católico praticante. Pelo contrário, ele é acusado de desprezar a Igreja Católica, os rituais, as procissões, a missa, o que é um lado interessante, porque a Igreja era tão poderosa e tão autoritária que o questionamento dele dos dogmas e da obediência era uma atitude revolucionária”, disse.

O pesquisador contextualiza que as torturas ultrapassavam os castigos corporais usuais da escravidão, envolvendo instrumentos que imobilizavam completamente as vítimas e práticas com componentes sexuais.

Tinham torturas com teor sexual, quase um sadismo: pendurando pesos no saco escrotal dos escravos, queimando as genitais das escravas. Ele tinha um componente erótico nesses castigos.
Luiz Mott - Bacharel em Ciências Sociais (USP), Doutor em Antropologia (Unicamp) e Fundador do Grupo Gay da Bahia

Essas violências não ocorriam de maneira isolada. Para o doutor em História e professor da UFBA, Alex Andrade Costa, elas estavam alinhadas ao papel político do Castelo Garcia d’Ávila - que no passado se chamava Casa da Torre - responsável por dominar vastas áreas do Nordeste por séculos. O cruzamento entre poder militar, autonomia econômica e escravização em larga escala transformou o castelo em um dos principais centros de dominação da colônia, algo que não se expressa plenamente nas visitações turísticas atuais.

O professor de História da Universidade Estadual de Feira de Santana, Carlos Silva Jr., reforça que torturas semelhantes foram registradas em outras regiões, mostrando que o caso da Casa da Torre não deve ser lido como exceção, mas como expressão de um sistema mais amplo.

“A crueldade do tratamento dos escravizados sob seu domínio é chocante, mas ele não foi o único. Cenas como aquelas se repetiram em outras partes do Brasil, em propriedades rurais, sobretudo, pois os proprietários administravam a justiça em suas terras, e o governo português intervia o mínimo possível na gestão escravista dos senhores de pessoas escravizadas”, afirma.

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O “Estado dentro do Estado”: a força política da Casa da Torre

Imagem ilustrativa da imagem Local turístico mais visitado na Bahia homenageia criminoso; veja qual
| Foto: Divulgação

Durante séculos, os Garcia d’Ávila controlaram territórios que se estendiam do litoral ao sertão. Essa autoridade permitiu à família estabelecer fazendas, currais, pontos de cobrança de tributos e áreas de captura de indígenas e negros fugidos.

Alex Andrade Costa explica o alcance desse domínio: “A Casa da Torre, atuando como um verdadeiro "estado dentro do estado" durante séculos, controlou um vasto território que se estendia do litoral norte de Salvador até os sertões do São Francisco, abrangendo praticamente todo o norte da Bahia, parte de Sergipe e Pernambuco”.

O castelo funcionava como centro logístico da colonização. “Mais do que um imenso latifúndio, funcionou como agente ativo da expansão colonial, agindo em nome e em função da Coroa. O chamado Castelo da Torre, inicialmente construído como fortaleza para proteger a entrada pelo litoral norte de Salvador serviu de base para a guerra contra as populações indígenas e para a expansão da pecuária pelo interior, mas, sobretudo, o Castelo é uma representação material (a única que visualmente restou) do poder de uma família.”

Alex ressalta que o termo “Casa da Torre” não era apenas descritivo, mas parte de uma estratégia simbólica para legitimar o poder dos Garcia d’Ávila.

“A adoção do termo "Casa", em referência direta às casas nobres europeias, foi um elemento crucial na estratégia de legitimação dos Garcia d'Ávila. Ao se auto denominarem "Casa da Torre", buscaram se estabelecer como uma nova aristocracia na América, transplantando para a colônia os valores e a simbologia da nobreza fundiária europeia. Assim, o castelo materializava fisicamente esse projeto de poder, erguendo-se como símbolo de autoridade sobre o território”, afirma.

O poder acumulado pela família ajuda a explicar a impunidade documentada nos registros. Carlos Silva Jr. observa: “No final, nenhuma atitude foi tomada contra o rico proprietário de terras e de seres humanos, nem pelos representantes da coroa portuguesa nem pelas autoridades religiosas.”

Como era a tortura contra os escravizados

Negras vendedoras de angu, litografia de 1835 de Jean Baptiste Debret, retratando a má alimentação dos escravizados no Brasil
Negras vendedoras de angu, litografia de 1835 de Jean Baptiste Debret, retratando a má alimentação dos escravizados no Brasil | Foto: Fapesp

Os documentos revelam que a violência exercida na Casa da Torre incluía espancamentos ritualizados, castigos em datas religiosas, imobilizações dolorosas e agressões que envolviam tanto adultos quanto crianças e idosos.

Mott lembra um dos episódios mais marcantes: “Um exemplo é que na Sexta-Feira Santa, considerado um dia sagrado, ele tinha prazer em açoitar até escorrer sangue dos escravos, que os cachorros lambiam quando caía no chão, incluindo a tortura de crianças e idosos. Ele torturava os escravos com cera quente, colocando no ânus, entre outras práticas inimagináveis”.

Os registros analisados por Luiz Mott descrevem dezenas de episódios de tortura, muitos deles envolvendo crianças, idosos e idosas escravizadas. Entre os casos mencionados, está o de Arquileu, menino negro de quatro anos encarregado de vigiar uma figueira. Após um passarinho bicar um dos frutos, ele foi açoitado quase até a morte. Segundo a descrição, Garcia d’Ávila “o açoitou com um chicote de açoitar cavalos, pondo-o nu, rigorosissimamente pelas costas, pernas e todo o corpo, e principalmente pela barriga”, deixando feridas tão profundas que a pele havia sido arrancada, expondo “tudo em carne viva”.

Outra vítima foi Manoel, entre seis e oito anos, filho da escravizada Rosaura. Ele foi colocado “com a cabeça no chão e a bunda para o ar”, enquanto Garcia d’Ávila, “rindo”, segurava uma vela acesa e pingava cera quente dentro do ânus da criança, que gritava de dor a cada gota de cera derretida.

A violência também alcançava meninas muito pequenas, como Leandra, de três ou quatro anos. Em um dos episódios, Garcia d’Ávila a chamou, pediu que se abaixasse e segurou sua cabeça próxima a um fogareiro de brasas, queimando seu rosto. Em outra ocasião, após perguntar se a menina queria doce recém-tirado do fogo, ele encheu uma colher com a mistura fervendo e derramou o conteúdo sobre a palma da mão da criança, obrigando-a, sob ameaça de açoite, a lamber o doce quente, o que resultou em queimaduras na mão e na língua.

Entre os adolescentes torturados está Hipólito, de 16 anos. Ele foi pendurado por uma corda e teve os testículos amarrados a outra, onde foi colocado um peso de bronze. O documento relata que o jovem permanecia suspenso enquanto o peso puxava seus genitais para baixo. Ao mesmo tempo, dispositivos chamados “anjinhos” comprimiam seus dedos dos pés, quase os cortando. O suplício durou cerca de duas horas.

Também há relatos de violência contra pessoas idosas. Antônio Magro, escravizado de quase 80 anos, foi submetido ao suplício de ter pimentas malaguetas introduzidas em seu ânus por meio de um canudo de pito, causando queimaduras internas e dor intensa.

Mott lembra que a memória popular da região ainda guarda relatos sobre a violência cometida por Garcia d’Ávila, demonstrando como esses episódios marcaram gerações: “Foi feita uma pesquisa com os moradores da região e, segundo ela, havia memória oral que contava que Garcia D'Ávila Pereira de Aragão era um homem extremamente violento, que torturava os seus escravos. Ou seja, essa memória se preservou até contemporaneamente”.

O nome do castelo vai mudar?

Inauguração do Parque Histórico Garcia D´Ávila
Inauguração do Parque Histórico Garcia D´Ávila | Foto: Divulgação

O debate sobre nomes de ruas, estátuas e homenagens a figuras escravistas tem ganhado força no Brasil, especialmente após mobilizações internacionais.

O movimento Black Lives Matter, em escala global, tornou-se um marco fundamental nesse processo. Ele catalisou manifestações contra monumentos que homenageavam figuras escravistas em diversos países, inclusive no Brasil, resultando na derrubada de estátuas e na substituição de nomes de logradouros públicos. Contudo, essa revisão não é simples. Por um lado, os indivíduos homenageados frequentemente possuem descendentes que mantêm influência política e econômica na contemporaneidade.
Alex Andrade Costa - Doutor em História, Professor da Faculdade de Educação (FACED) e do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da UFBA

Na capital baiana, uma iniciativa mapeia homenagens a agentes escravistas. É o projeto Salvador Escravista:

A proposta desse grupo de trabalho é precisamente refletir sobre os significados dessas homenagens, que se inserem numa lógica de monumentalização de certas figuras que tiveram algum destaque na construção da sociedade colonial e imperial, enquanto suas atividades escravistas são deixadas em segundo plano, quando não totalmente esquecidas
Carlos Silva Jr. - Professor de História na Universidade Estadual de Feira de Santana, PhD em História pela University of Hull, no Reino Unido

Luiz Mott defende que museus sediados em antigos centros escravistas assumam explicitamente seus passados: “Seria importante que a Casa da Torre transcrevesse alguns trechos dessa denúncia das torturas do seu proprietário, para que os visitantes tivessem conhecimento dessa particularidade, desses crimes de violação dos direitos humanos que ocorreram ali".

A preservação arquitetônica do castelo é amplamente defendida pelos especialistas, mas acompanhada de críticas sobre a falta de contextualização histórica adequada.

Carlos Silva Jr. explica: “Não se trata de destruir o patrimônio arquitetônico, mas de produzir uma outra narrativa a respeito daquele espaço. Não há quem, em sã consciência, imagine que o Castelo Garcia d'Ávila deva ser demolido por conta das atrocidades cometidas pelos seus fundadores ou herdeiros do morgado. Mas também não se deve jogar para debaixo do tapete o contexto da construção daquele edifício e os trabalhadores escravizados nela envolvidos".

Para Alex Andrade Costa, o turismo cultural tem potencial educativo quando enfrenta o passado sem suavizações: “O turismo cultural só superará seu papel no apagamento histórico quando se reconhecer como uma prática educativa de consequências. Isso implica abandonar a lógica do conforto narrativo e abraçar a pedagogia do incômodo responsável”.

“O turismo deve incorporar os avanços do ensino de história crítica, superando as narrativas tradicionais que romantizam figuras como Garcia d'Ávila. Em vez de apresentar monumentos como o "Castelo" de Garcia d'Ávila como simples marcos arquitetônicos, o turismo crítico deve explicitar como tais edificações materializavam projetos de poder baseados na escravização e na expropriação das terras”, adicionou.

A reportagem do Portal A TARDE procurou a administração do Castelo Garcia d'Ávila para comentar o assunto mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem. O espaço segue aberto.

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