TRADIÇÃO
Missa Afro representa manifestação de fé e sincretismo religioso em Salvador
Celebração aconteceu no Santuário de São Lázaro e São Roque
Por Flávia Barreto
Uma manifestação de fé, devoção e sincretismo religioso acontece sempre no dia 16 de agosto, no Santuário de São Lázaro e São Roque, localizado na Ladeira de Xaponã, na Federação. Quem vai até a celebração usa o branco, e, antes mesmo de chegar ao templo, já é possível observar religiosos celebrando ao santo ou realizando tradições religiosas.
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Neste ano, o evento contou com a mistura de religiões ancestrais, como o Candomblé, a Umbanda e o Catolicismo. As famílias, com crianças e idosos, não perderam a tradição religiosa. Nos cenários não faltaram palha, pipoca, folhas de reza, fios de conta e, para quem tem interesse em fazer uma boquinha, em algumas esquinas era possível encontrar mulheres pagando promessas e distribuindo um delicioso mungunzá.
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Entidade viva
Na boca do povo, apontada como referência e reverenciada como ancestral e entidade viva, esteve durante mais um ano na celebração Dona Matilda, a rezadeira mais velha da festa. Vale ressaltar que a matriarca já está próxima de completar 100 anos. “Essa é a minha última missa”, disse acreditando que seus dias na terra estão se encerrando.
Ainda assim, não deixou sua responsabilidade religiosa de lado. Quem passa pelo seu balaio se encanta e reverência a senhora sentada de torço, com seus fios de contas, balaio de pipoca e suas folhas para benzer. “Eu sinto paz, sossego e prosperidade”, completa Matilda.
Continuidade de legado
O Babalorixá Neto, de 28 anos, faz parte da religião africana há 12 anos, é morador da Liberdade e babá do terreiro de Candomblé Ile Axé Of Aromi. Também faz parte dos benzedeiros da festa. Chamando bastante a atenção, vestido de branco com seu balaio de palha, pipoca e búzios, ele participa da celebração desde que iniciou sua vida de santo, há 12 anos.
O babá manifesta sua fé e comenta sobre o seu santo Obaluaê: “Um orixá da palha, da força, da doença, da natureza. Uma coisa que não tem mais ninguém que possa mais do que ele. Abaixo de Deus, só ele e mais ninguém”, afirmou.
Caridade
O Babalorixá Robson do Agôgô esteve presente mais um ano na celebração para manter a tradição do "Ọkàn ṣí", que significa "Coração aberto", que já dura há 4 anos. É um ato de caridade do religioso, junto com seus filhos de santos, que realizam a doação de alimentos dentro de cestos de palha para mulheres, especificamente para mães.
O babalorixá comenta sobre o seu ato de caridade: “Por este ano, ser o ano do dono da terra, do nosso pai Obaluaê, eu trouxe mais cedo para pegar as bênçãos da missa. Porque o nascer do sol é o nosso nascer, é a nossa vida, é a nossa carne, é o nosso sol, é a nossa água. Então, essa oferta, eu acredito que se em quatro anos podemos fazer, virão mais 40 anos aí pela frente”.
“O balaio é onde a gente representa a abertura, o coração aberto da solidariedade. Do 'Ọkàn ṣí', né? O coração aberto para doar, para levar para essas pessoas o alimento na mesa, em um ano em que muitas pessoas ainda estão passando dificuldades, mesmo fora da pandemia. As coisas estão muito caras. Mas, para a gente do Axé, dá para somar e poder fazer o ano todo”, contou o Babalorixá.
Xirê
Na festividade, foi possível contemplar um xirê ao céu aberto. A manifestação de fé acontece há cerca de três anos no bairro da Federação, nas celebrações, principalmente, na festa de São Roque.
O Babalorixá Edson Almeida, Tata Mutalanke, morador da Cidade Baixa, é um dos responsáveis pelo xirê de rua. Ele comenta sobre a motivação para iniciar essa tradição: “A iniciativa foi trazer a manifestação da cultura do Axé para mostrar ao povo, à comunidade, às pessoas, e quebrar também a intolerância religiosa, porque somos um povo hoje muito criticado na nossa cidade, que é uma cidade africana, com descendência africana, e hoje estamos unidos para poder quebrar esse dogma”, explicou o babalorixá.
Doutrina religiosa
Na porta da igreja, vestida de branco, com balaio de pipoca e sentada em um "apoti" [banco branco de madeira], com uma guia de Iansã no pescoço, a pequena Eloá, de 6 anos, chama a atenção ao lado da sua Yalorixá Dona Nenzinha e seus irmãos de santo. A zeladora comenta sobre a importância de ensinar a doutrina aos seus descendentes.
“A gente tem que botar ela no ritmo. Ela já recebe Orixás”, declarou a mais velha, que tem o dever de ensinar aos mais novos o encanto da sua religião para que perpetuem o legado e mantenham a tradição.
Tradição familiar
Maria Lourdes é mãe de Marília e Mari Lourdes, moradoras do bairro de Brotas, mantêm a tradição familiar por uma promessa feita pelo pai enquanto estava em vida.
“Eu venho desde quando era criança. Foi uma promessa que meu pai fez quando eu era criança. Então, eu ficava muito doente. E aí ele fez uma promessa para São Lázaro que, se eu ficasse curada, ele viria comigo a pé. Depois que meu pai faleceu, eu continuei vindo. Sempre que eu posso, eu venho”, conta Marília, que faz parte da religião de matriz africana.
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Sincretismo religioso
No local, aconteceu a celebração da Missa Afro na Igreja de São Roque e São Lázaro. Com tecidos de estampa africana, vasos de barro, incensos com cheiro de água de flor e ao som de instrumentos africanos como atabaque e agogô, a missa foi celebrada.
Devotos dos santos se ajoelharam, choravam e sorriam, e houve até quem gritasse durante a celebração: “Eu esperei isso durante tanto tempo”, disse uma mulher negra vestida de branco, bastante admirada pela união das religiões ancestrais.
A celebração começou com religiosos de matrizes africanas cantando, dançando, incensando com o prato de nagé e dando um banho de pipoca ao templo. Logo depois, o Padre Maciel foi responsável pela celebração da missa, que entrou ao som das músicas católicas.
O pároco, ao iniciar a celebração, citou o combate à intolerância religiosa e completou falando sobre a intenção da missa: “Humildemente, nós nos unimos a São Roque. Ele se une a Deus também para que esses espaços sejam curados em nós e na sociedade. E por isso, humildemente, coloquemo-nos como São Roque se colocou diante de Deus. Coloquemo-nos a nossa vida para que também sejamos curados conforme Ele. O estado de silêncio, o movimento penitencial, coloquem a sua vida para que as feridas do corpo e da alma sejam curadas em nossa própria fé”, manifestou.
Mistura de Ritmos
O músico Diogenes já participa da celebração há quase 20 anos e aproveita o momento para comentar sobre a celebração e o sincretismo religioso: “Primeiro, a Igreja de São Lázaro é um local que é aberto e acolhedor. Acolhe todas as crenças, principalmente o povo do santo. Na verdade, o povo do santo é o que fortalece mesmo essa comunidade com sua fé, com suas manifestações religiosas, banhos de pipoca. Então, para mim, é um encontro da fé, do fortalecimento da fé”, declarou.
Devoção
Três amigas católicas, Ana Paula, Fátima e Claudia, não resistem ao branco na sexta-feira, ao toque do agogô e do atabaque. Admiradas com a manifestação de fé, Paula comenta sobre como se sente ao prestigiar o sincretismo religioso:
“Então, é isso que me encanta, né? É a fé junta, vamos dizer, do católico, aquela coisa tradicional, com esses elementos que trazem do culto afro. A música, os instrumentos, isso me encanta e eu acho que fé é fé. E a gente tem que unir a fé para que seja única, não importa de que maneira ela seja manifestada”, afirmou Paula.
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