RESISTÊNCIA
Bahia além das três cores: como o clube virou referência na luta LGBT+
Pioneiro na criação de torcidas LGBT+ e primeiro clube a ter um presidente gay, o Bahia é pioneiro na luta contra a homofobia no futebol
Por Marina Branco

Para que algo mude, alguém precisa lutar pela mudança - e, no panorama de racismo na Bahia, o clube que leva o nome do estado tomou a primeira atitude rumo a um novo futebol. A história foi contada no seminário 'Racismo no Futebol: Combate à Discriminação nos Estádios' pelo ex-presidente Guilherme Bellintani, movimentador mas (faz questão de ressaltar) não protagonista desse processo.
Em sua fala, o ex-dirigente recordou os desafios de sua gestão à frente do clube, destacando o papel do Esquadrão como protagonista em políticas de inclusão no futebol brasileiro desde mudanças na Fonte Nova até a criação de núcleos de diversidade e enfrentamento ao racismo e à LGBTfobia dentro e fora do estádio.
Tudo começou com a nova Arena Fonte Nova. O estádio, que em sua versão original abrigava mais de 70 mil torcedores e era símbolo do futebol baiano, foi "gourmetizado", de acordo com o ex-presidente. “Quando me tornei presidente, a Fonte Nova era a arena gourmet do futebol brasileiro. O estádio antigo, participativo, inclusivo, de cinco reais a arquibancada, acabou, e veio um estádio para a classe média, maioria branca, tradicional. E quase sempre vazio", comenta.
"Meu primeiro movimento, então, foi tentar trazer a torcida do Bahia de volta para o estádio, considerando o preço dos ingressos e sócios não pelo que outros clubes cobravam, mas sim pelo que era necessário pra encher o estádio. Seis anos depois, eram 50 mil sócios com 35 mil ingressos vendidos por ano. A gente precificou como o torcedor de uma cidade pobre como Salvador podia pagar”, explicou.
A primeira mudança do Bahia rumo à agregação de sua torcida não parou por ali. Se por um lado, os tricolores haviam voltado para casa, por outro, nem todos se sentiam em casa ou eram abrigados por ela. Entre pessoas negras e lgbt, muitos torcedores não se sentiam parte da torcida que tanto era deles, e o Esquadrão se dedicou a mudar essa realidade.
“O Bahia passou a não ter mais diretorias, horizontalizando a gestão. Dava mais trabalho, mas o caldo cultural de criação de projetos era muito mais rico. Em uma reunião, alguém levantou o braço e disse: ‘não adianta colocar o povo na Fonte de volta e ter racismo na torcida como tem na sociedade’. Ali nasceu o Núcleo de Ações Afirmativas, com protagonismo de quem estava fazendo o clube acontecer. Não partiu de mim, mas do movimento do Bahia na sociedade”, conta Bellintani.
Na época, em meados de 2018/19, o cenário político do país vivia uma guinada conservadora, segundo o ex-dirigente. O Bahia, no entanto, remava na direção contrária pela primeira vez no país: “No dia do orgulho LGBT, só três clubes postaram nas redes sociais. Seis anos depois, só três da Série A não postaram. Eu não tive protagonismo nenhum, mas o Bahia foi protagonista".
"Se o Bahia não tivesse feito isso, dificilmente o futebol brasileiro estaria aceitando as políticas de inclusão como hoje, seja por cultura, seja goela abaixo. O Bahia, o Internacional, o Corinthians e o Vasco da Gama, clubes que têm relação forte com questões populares, foram protagonistas em um ambiente tão conservador quanto o futebol, onde parece que violências são aceitas com facilidade", completa.
O processo, é claro, não foi simples. Entre violências e ataques dolorosamente clássicos no futebol, o Bahia sofreu as retaliações por se posicionar. “Quando soltaram uma bomba no ônibus do Bahia, a decisão foi por lesão corporal leve, porque só (o goleiro) Danilo Fernandes se machucou. Mas poderia ser visto como uma tentativa de homicídio em massa. No futebol, se pode dizer ‘viado’, chamar qualquer coisa, e ser relevado pela lógica do futebol que aceita violências. Então fazer esse enfrentamento a partir do futebol é muito mais corajoso”, relembra o ex-presidente.
“Quando o time não tava bem em campo, era ‘antirracismo não ganha jogo’, ‘se preocupe com bola na rede’, ‘tá fazendo política ao invés de contratar centroavante’. Nessa hora o conservadorismo aflorava. Nessa hora, eu dizia: ‘batam em mim, quem contrata os pernas de pau sou eu, mas não mexa no núcleo’", conta.
Segundo ele, o Bahia mostrou ao mundo que o futebol pode ser ferramenta de transformação. “Hoje a gente tem um clube nascido na nossa cidade que mostrou ao mundo que há caminhos. A luta ainda é muito grande. Há cerca de quarenta dias, tive uma proposta pra um clube do México contratar um jogador do Londrina que visivelmente não era o melhor, e eu perguntei por quê. E ele disse que era porque no México os jogadores de pele escura são muito mais cobrados. Por isso, ele preferia um de pele clara com menos cobrança", conta.
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Bahia além das três cores
Uma das grandes atitudes do clube em direção a essas mudanças tem nome, presidente e cores - a LGBTricolor. Presidida por Onã Rudá, a torcida lgbtqiap+ do Bahia luta pela presença de seus integrantes nas arquibancadas, sendo pioneira no panorama de torcidas pela diversidade no país.
“O futebol é mais que a bola em campo e os três pontos. Eu acredito que o futebol pode ser diferente, e que ele ajuda a sociedade a mudar, porque chega onde o Estado não chega. Ele chega no trabalhador. Eu nasci no Nordeste de Amaralina, e só na LGBTricolor eu pude encontrar minha comunidade, com pessoas que podiam até não ter letramento, mas tinham boa vontade", diz o presidente.
“Bellintani, no Bahia, fez o que pessoas com privilégio precisam fazer — abrir espaço para dar passagem. Foi assim que pudemos fazer a LGBTricolor", completa. Assim, surgiu o movimento, que a partir de 2019 começou a receber respostas por todo o país na forma da criação de outras torcidas tricolores Brasil afora.
Nos primeiros três meses, foram 15 torcidas LGBTs pelo país. Atualmente, já são 23 grupos, espalhados pelas Séries A, B, C e D e incluindo alguns times não seriados no momento, seguindo o pioneirismo gerado pelo Esquadrão.

“O que temos no Bahia não existe no resto do Brasil. É uma integração. No Bahia, mudamos resoluções discriminatórias, enviamos a primeira denúncia sobre o Flamengo que fez com que um clube fosse punido por LGBTfobia pela primeira vez, sugerimos à CBF que incorporasse a resolução que dava autonomia à confederação para punir qualquer clube, dentre muitas outras ações”, relembra Rudá.
Representação no lugar mais alto
Prova inegável dessa mudança na torcida vem da voz da própria. Na última eleição presidencial do clube, foi eleito o primeiro atleta assumidamente gay do futebol brasileiro como presidente do Bahia - o ex-goleiro Emerson Ferretti.
Há três anos, Ferretti quebrou um tabu que atravessava toda a história do futebol nacional. Em um podcast, o ex-atleta falou sobre sua sexualidade pela primeira vez, se assumindo como um homem gay e rompendo o silêncio que perdurava desde o nascimento do futebol no Brasil - a presença de pessoas LGBTs no futebol.
"Esse silêncio passava a imagem de que não existiam pessoas gays atuando no futebol, mas elas sempre fizeram parte, seja dentro de campo, com carreiras enormes, inclusive atletas da Seleção Brasileira, como em comissões técnicas, na imprensa... sempre fizeram parte e sempre amaram o futebol. Mas assim como eu precisei fazer com que essa condição fosse invisível, todos eles também precisavam, porque se qualquer um de nós abrisse a boca, nossa carreira estaria acabada em alguns dias. Todos precisaram ser invisíveis para sobreviver no futebol", relata o presidente tricolor.
A trajetória é construída desde a infância. Para alguém que começou sua vida no futebol aos oito anos de idade, jogando na base do Grêmio, o sonho de ser goleiro veio muito antes da descoberta da própria sexualidade, vindo ela já acompanhada das máscaras que sua profissão exigia dele.
"Criei um personagem para me parecer com os atletas heterossexuais, escondi meus companheiros, nunca saí para jantar em casal para não levantar suspeitas. Vivi o tempo todo com medo de ser descoberto sob pena da minha carreira se encerrar. Me escondendo, tive depressão, e acredito que o mesmo aconteceu com outros que não puderam se expressar como gostariam. O pior é a solidão desse processo todo", conta.

A decisão de falar publicamente, então, foi resultado de um longo processo. Foram mais de dois anos de reflexão até que ele aceitasse falar sobre o tema, sempre acompanhando histórias de muito sofrimento de pessoas LGBT no futebol.
"Eu refleti e decidi que eu poderia deixar um legado para o futebol e para a sociedade maior do que o que eu deixei como goleiro em campo. Eu podia fazer algo para que o futebol evoluísse. Meu comportamento como atleta profissional rompe com esses conceitos de que o esporte precisa de virilidade e que o homem gay não tem. Eu sempre tive, todas as vezes que precisei. Conheço muito homem hétero que não tem a virilidade necessária para jogar futebol", afirma.
Ferretti também rebate estereótipos preconceituosos. “Outro conceito é que um atleta gay vai criar problemas em um clube porque não vai conseguir segurar seus desejos rodeado de homens. Eu vivi mais de 20 anos em vestiários e sempre fui exemplo de comportamento. Já vi héteros criarem mais problemas", conta.
Mesmo após sua revelação, há três anos, ele segue como o único atleta brasileiro do futebol a falar abertamente sobre o tema, sendo pioneiro como foi o Bahia na temática, identificação reafirmada por Ferretti. “O Bahia foi o primeiro clube que entendeu a importância que os clubes têm de se posicionar socialmente, se preocupar com sua torcida e ajudar a sociedade a evoluir", elogia.
“Minha eleição como primeiro presidente assumidamente gay de toda a existência do futebol brasileiro trouxe uma consciência à torcida do Bahia, que na hora da eleição desconsiderou minha sexualidade e focou na minha competência. Quando você faz campanhas, tem muita gente que aprende, e outros só aprendem na dor, e aí vem a legislação", comenta.
Apesar das conquistas, no entanto, Ferretti revela também episódios de preconceito ao longo de toda a carreira. “Pela suposição da minha sexualidade, fui vetado, tive treinadores que não quiseram trabalhar comigo, dirigentes que não me quiseram como titular, sofri preconceito", conta.

Para ele, esse ambiente hostil resulta em perdas irreparáveis para o esporte: “A gente perde talentos no futebol por puro preconceito. Muitos atletas desistiram de tentar a carreira no futebol quando perceberam que era um mundo muito hostil pra quem não é padrão no futebol”.
A luta, então, segue. O apoio começa a vir cada vez mais de diferentes espaços e, aos poucos, clubes se unem em prol da diversidade no futebol. Nas três cores do Bahia, fica uma certeza - o orgulho em defender muito mais do que simplesmente vermelho, azul e branco.
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