ABRE ASPAS
"A história do Brasil e a do Martagão se entrelaçam", diz gestor do hospital
Cirurgião Carlos Emanuel Rocha de Melo, há 25 anos ligado à instituição, lança o livro 'O Hospital da Minha Vida'

Por Pedro Hijo

No ano em que completa 60 anos, o Hospital Martagão Gesteira ganha um registro histórico inédito. Localizada em Salvador, a instituição filantrópica e sem fins lucrativos é referência em atendimento pediátrico de alta complexidade para crianças e adolescentes em todo o estado. O cirurgião pediátrico e gestor hospitalar Carlos Emanuel Rocha de Melo, há 25 anos ligado à instituição, lança o livro O Hospital da Minha Vida, obra que entrelaça a trajetória dele com a do Martagão.
“A minha maior motivação para escrever o livro nasceu da reação que costumo ver nas pessoas que vão ao hospital", conta. Além de recuperar a memória da instituição, o livro traz uma análise política da saúde no Brasil, reflete sobre o papel do terceiro setor, o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS) e os caminhos para garantir a sobrevivência de hospitais filantrópicos.
“Defendo que essas instituições são ferramentas da sociedade civil organizada, instrumentos que permitem a diferentes segmentos praticarem o altruísmo de forma estruturada”, resume Carlos, que doou os direitos autorais da obra à instituição. Ilustrado por Elano Passos, o livro tem previsão de lançamento para o próximo mês e faz parte das comemorações de aniversário do Martagão, hospital que realiza mais de 500 mil atendimentos anuais em 27 especialidades médicas.
Por que a escolha de um livro como veículo de divulgação da história do Martagão Gesteira?
A minha maior motivação para escrever o livro nasceu da reação que costumo ver nas pessoas que vão ao hospital. Ao final da visita, elas sempre se mostram impressionadas com o que encontram e dizem que a gente precisa divulgar melhor o nosso trabalho. Muitas desconhecem o que é feito ali. Por isso, senti a necessidade de contar o que acontece dentro do Martagão, pois acredito que as pessoas precisam conhecer a instituição. No livro, eu apresento uma narrativa em primeira pessoa que entrelaça duas histórias: a do hospital e a da minha trajetória dentro daquele espaço
É claro que a minha história é muito menor do que a da Liga Álvaro Bahia, fundada em 1923, cuja principal realização foi a construção do Hospital Martagão Gesteira, que agora completa 60 anos. Ao longo da narrativa, vou provocando reflexões sobre temas mais amplos: a história da filantropia no mundo e no Brasil, as razões do altruísmo, a criação das primeiras instituições filantrópicas e a chegada desse movimento ao país. Também trato dos primeiros movimentos sanitários e da fundação do SUS. Na parte final, dedico espaço para refletir sobre o papel do setor filantrópico na assistência e no cuidado das pessoas no Brasil. Além disso, reservo um capítulo específico para analisar o olhar do país em relação à pediatria. Assim, acredito que consegui construir uma abordagem ampla, que parte da minha história, se expande para a trajetória do Martagão Gesteira e se insere em um contexto ainda maior: a própria história do Brasil.
Quanto tempo levou para a produção da obra?
O texto foi escrito entre outubro de 2024 e janeiro deste ano. O processo foi rápido, porque eu já tinha muitas ideias na cabeça e algumas partes estavam previamente registradas. Foi quase uma catarse: tudo saiu de uma vez só e, em poucos meses, o material estava pronto. De janeiro até agora, o foco passou a ser a revisão, a editoração e a ilustração. Considero etapas que, de fato, exigem mais tempo e dedicação. Optamos por lançar o livro no fim do ano, alinhando o lançamento virtual ao mês de outubro, quando se celebra o Dia das Crianças. Dessa forma, conseguimos associar a obra a uma data simbólica. Quando finalizei a escrita e a editoração do livro, decidi doar os direitos autorais ao hospital. A partir desse momento, a obra passou a ter novos donos que não sou eu. Em seguida, começou um grande debate sobre o título do livro que acabou sendo construído em conjunto com a própria equipe do hospital. O título O Hospital da Minha Vida foi escolhido como definitivo na última terça-feira, 16.
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Por que o senhor considera importante que o Martagão seja reconhecido como um “patrimônio da Bahia”?
Ao longo da narrativa eu trago diversas reflexões sobre o papel das organizações do terceiro setor em algo que considero essencial para a humanidade: o altruísmo, que é o ato de cuidar do próximo sem se preocupar consigo mesmo. Esse princípio não depende da época, do sistema de governo ou do modelo de saúde vigente; ele atravessa todas as transformações da sociedade. Dentro desse contexto, destaco como o Hospital Martagão Gesteira se tornou um exemplo de filantropia, sustentado por contribuições e pela participação ativa da sociedade baiana. Ao longo dos anos, o hospital foi erguido a partir do esforço conjunto de pessoas anônimas, empresas, artistas, imprensa, políticos e governantes. A narrativa deixa claro que nada ali foi feito por uma única pessoa. O Martagão foi construído pelos baianos e para os baianos
Quais momentos mais críticos o Martagão enfrentou nos últimos 60 anos e como a instituição conseguiu se reerguer?
Desde o início, o hospital já anunciava a trajetória que viria a seguir. Poucos sabem, mas Álvaro Bahia, idealizador do Martagão, levou 19 anos para conseguir construí-lo. Foram quase duas décadas de campanhas, mobilizações e arrecadações. Perto da inauguração, Álvaro tinha a promessa de apoio do governo federal para a operação inicial, com recursos garantidos. Porém, pouco antes da abertura, recebeu a notícia de que o ministro responsável pela pasta já não considerava o projeto prioritário e, por isso, os recursos não seriam liberados. Com a saúde fragilizada, Álvaro sofreu uma crise hipertensiva, teve um AVC e faleceu sem ver o hospital funcionar. Sua morte causou grande comoção na Bahia. Entre o falecimento e o sepultamento, antes mesmo de o caixão tocar a terra fria, o então governador Lomanto Júnior declarou que a situação não ficaria daquele jeito e que o governo apoiaria a operação inicial do hospital. Assim, o Martagão nasceu em meio a altos e baixos.
Desde o princípio, o projeto foi ambicioso, voltado para atender as crianças mais carentes da Bahia. Ao longo dessa trajetória, o hospital enfrentou várias dificuldades, como o fechamento por um ano, entre 1996 e 1997, e a ameaça de encerramento definitivo em 2008 e 2009, justamente quando passo a integrar a administração. Em 2024, voltamos a viver momentos muito difíceis. Esses episódios ajudam a compreender a luta diária que sustenta o hospital e explicam por que sua existência é tão desafiadora. O Martagão se propõe a cuidar das crianças que mais precisam, justamente daquelas que, sem assistência, correm risco de morrer. Ora, se uma atividade é economicamente inviável, dificilmente outra instituição a assume. Cabe ao Martagão ocupar essas lacunas, assumindo o que não está sendo feito em cada época. Essa é, em essência, a história do hospital: mais do que a trajetória de uma instituição, é o relato de um projeto que não mede esforços para enfrentar situações em que crianças estejam sofrendo.

Além de resgatar o passado, o livro também aponta caminhos para o futuro do Martagão?
A última parte de O Hospital da Minha Vida assume um tom mais analítico. Nela, apresento reflexões e compartilho as estratégias que temos adotado para garantir a sobrevivência e a continuidade da missão da instituição. Explico, por exemplo, por que a Liga Álvaro Bahia precisou crescer para ganhar robustez e até mesmo dialogar com o mercado de seguros. Também trago nosso posicionamento sobre a necessidade de aperfeiçoar o SUS, em consonância com vozes já reconhecidas. Eu me apoiei em informes do Banco Mundial, do BID (um braço da ONU), em manifestações do Tribunal de Contas da União e em movimentos recentes no Congresso, todos apontando para a importância de dedicar mais atenção a instituições como o Hospital Martagão Gesteira. Em determinado momento, o livro deixa de tratar apenas do Martagão e passa a abordar o setor filantrópico brasileiro como um todo. Mostro como a trajetória do hospital se assemelha à de muitas santas casas, associações beneficentes e hospitais filantrópicos, especialmente na Bahia, que enfrentaram processos semelhantes.
Aponto, ainda, as razões históricas que explicam esse percurso comum. Trata-se, portanto, de uma análise política não partidária, mas voltada às políticas públicas de saúde. Convido o leitor a refletir sobre como o Brasil e a Bahia enxergam, e como deveriam enxergar, o setor filantrópico e o terceiro setor em sua totalidade. Na parte final, apresento sugestões para que instituições como a nossa possam seguir cumprindo sua missão. É uma análise propositiva, que vai além do Martagão e se estende a todo o terceiro setor na saúde. Com esse livro, eu defendo que essas instituições são ferramentas da sociedade civil organizada, instrumentos que permitem a diferentes segmentos praticarem o altruísmo de forma estruturada, dentro do nosso modelo político
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