MUITO
“A imagem da axé music é branca”: artistas cobram reconhecimento e espaço
Tatau, Lazzo e Márcia Short expõem as origens negras do ritmo baiano no Afropunk

Por Gilson Jorge

Nascido em 22 de janeiro de 1968, Gilson Menezes dos Santos Dorea foi classificado como pardo em sua primeira carteira de identidade. "Isso é extremamente contestado por mim. Negro é negro. Acho isso uma maluquice. Mas naquela época, 90% dos negros eram chamados de pardos. Mas eu rejeito esse nome, eu sou negro", pondera o soteropolitano que aos 26 anos começaria a ficar famoso em todo o país como Tatau, vocalista da Banda Araketu.
A chegada de Tatau ao Araketu levou a banda a outro patamar. A música Araketu Bom Demais, de Dinha, ecoou no país inteiro e ajudou o quinto álbum do grupo, Bom Demais, a vender mais de 200 mil cópias em 1994.
Quatro anos depois, Tatau voltaria a encantar o país, com Mal Acostumado, canção de Meg Evans e Ray Araújo. O cantor ainda fez sucesso com Periperi, de Odibar e Paulo Diniz, divulgando em outros estados o bairro do Subúrbio Ferroviário que abriga o Araketu. Tatau ainda brilhou como compositor de Protesto do Olodum, a música que fez todo mundo cantar "e lá vou eu...".
Neste domingo, o artista é um dos destaques da programação do festival Afropunk Brasil 2025 e recebe no palco, no Parque de Exposições, Lazzo e Márcia Short para celebrar o show 40 anos da afro axé music, uma referência à presença negra no movimento que há quatro décadas transformou o Carnaval da Bahia.
"Eu recebo essa incumbência muito feliz, por ser o mês da Consciência Negra e por participar de um evento tão diferente, tão nosso. Eu me sinto completamente entre os meus", afirma o músico.
Tatau considera o show em que convida dois cantores amigos ao palco uma homenagem do Afropunk à história do axé. "São 40 anos e eles reconhecem a turma que pavimentou essa estrada", declara o cantor.
Nessas quatro décadas, contadas a partir do sucesso nacional de Fricote, de Luiz Caldas, um dos debates que acompanham a axé music é se artistas brancos do Carnaval baiano se tornaram ou não mais ricos e famosos do que os seus colegas negros em um movimento que teve como um dos seus pilares o samba-reggae, criado por Neguinho do Samba e lastreado na cultura afro-baiana.
"É uma discussão antiga. Eu refiz minha rota. A gente tem esse tipo de visão sobre o mercado baiano, isso é notório. Mas eu evito entrar nessas discussões, porque a outra parte são pessoas amigas, pessoas éticas, que me respeitam", afirma Tatau, que declara ter uma relação muito boa com todo mundo.
Dom

Sobre a sua experiência pessoal, o cantor afirma ter mudado a rota da sua carreira, focando em shows corporativos. "Eu me especializei, aproveitei esse dom que Deus me deu e aprendi com os ensinamentos da música", declara o cantor.
"Eu refiz os caminhos e peguei alguns atalhos para também não ficar só no universo da lamentação. É normal reclamar. Eu estou com a dor dos meus. Mas sou um cara que procurou outro viés", relata.
Convidado do show, Lazzo Matumbi ressalta que, por decisão pessoal, nunca se viu como integrante da axé music, mas aceita a missão de celebrar a presença negra.
"Até porque o nome axé music vem de dentro da religiosidade do Candomblé, vamos fortalecer esse lado mais afro", declara o autor de Do jeito que seu nego gosta e Me abraça e me beija, entre outros sucessos.
O incômodo de Lazzo com esse movimento tem na origem justamente a letra de Fricote. "Se a música que deu o chute inicial do movimento desconstruía o trabalho de um bloco do qual eu fiz parte, o Ilê Aiyê, e a imagem da mulher negra, obviamente eu não faria parte", assinala o cantor. A letra da música começa com a frase "nega do cabelo duro que não gosta de pentear".
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Alegria da cidade

Em resposta à música, Lazzo, que havia voltado de São Paulo, comporia depois Alegria da cidade em parceria com Jorge Portugal. "A música nasceu da minha indignação, depois de termos feito um trabalho tão árduo na construção da autoestima da comunidade negra, ter uma música que desconstrói tudo e desvaloriza a imagem da mulher negra", afirma o cantor.
Além da rejeição à música Fricote, Lazzo considera que ao longo do movimento da axé music foi-se criando a exclusão de artistas negros dos espaços de visibilidade e que houve apropriação cultural. "Eu como um cara que luto pela questão social, pela igualdade e pelo respeito, não estaria participando disso com alegria", afirma o cantor.
Sobre o seu papel ao longo dessas quatro décadas, Lazzo declara: "Eu me vejo como um cara que observou o movimento todo, mas não participou diretamente, apesar de músicas minhas terem sido tocadas por outras pessoas", afirma o cantor.
Lazzo afirma respeitar todos os colegas músicos, mas pontua que não havia muitas oportunidades para os cantores e compositores negros. "Não se pode negar que foi um movimento em que houve a exclusão de muitos em benefício de poucos", declara o cantor.
Ele considera que a axé music replicou o quadro de desigualdade existente na sociedade brasileira. "Não há como negar que as comunidades negras e indígenas estão em um país que lhes nega as oportunidades", pontua o artista, ressaltando o que considera falta de avanços sociais no Brasil entre o momento em que compôs com Portugal Alegria da Cidade, em 2007, e a repetição da parceria na canção 14 de maio, composta em 2019. "Não é à toa que, depois de ter me dado a primeira letra de presente, Portugal me deu outro presente, 14 de maio, que traz uma reflexão mais profunda ainda", afirma o cantor.
A outra convidada, Marcia Short, concorda que a imagem da axé music é branca. E vê na oportunidade de subir hoje ao palco com Tatau e Lazzo um momento simbólico. "A gente reforça o movimento da música preta feita na Bahia. Lazzo, que tem uma música de maior contundência, de cunho social mais evidente, e Tatau e eu que caminhamos pelo entretenimento, mas também com questões sociais", pondera Marcia.
Crença e fé

Ex-vocalista da Bamda Mel, Márcia Short foi uma das primeiras estrelas da axé music e estourou nas paradas de sucesso com Crença e Fé (“vou dar a volta no mundo, eu vou, vou ver o mundo girar”), canção de Beto Jamaica e Ademário. Em 1993, Márcia Short deixou a Bamda Mel e montou a Bandabah, antes de seguir carreira solo e, quatro anos depois, lançar o álbum Márcia Short.
Para ela, o encontro dessa noite serve para o trio de artistas potencializar a sua história e o jeito baiano de protestar, de dançar, de fazer música. Apesar do protesto, a cantora adota um tom mais otimista.
"Hoje, nós estamos avançando e essa revolução não vai dar ré", aposta Márcia, que vê uma oportunidade de se reescrever a história da música na Bahia com a abertura de portas a novos talentos. "Há muita gente talentosa na ativa, se o mercado do axé quiser, a hora é essa", declara a cantora.
Márcia também ressalta que não aponta para colegas de profissão ao tecer críticas. "Eu não atribuo essas questões às pessoas. É importante frisar que eu não tenho nada contra um colega porque é branco ou ganhou mais dinheiro do que eu. É sobre um sistema que nos alija, nos pretere, que quer tudo o que é nosso, só não quer a gente", pontua.
A cantora afirma que, além da parabenização pelos 40 anos, é preciso se debruçar sobre essas questões e encontrar formas de melhorar a vida das pessoas: "É preciso ações que, de fato, criem oportunidades e se desdobrem em coisas positivas para todo mundo, trabalho, visibilidade. Estamos caminhando, a gente vai chegar lá".
Ao falar de apropriação cultural, a cantora afirma que isso é algo normalizado e que precisa ser combatido, mas que não adianta ficar com o dedo em riste apontando casos. Para ela, o importante é pensar em mudanças no sistema.
No radar
Um dos curadores do Afropunk Brasil, o gerente artístico do festival Ismael Fagundes ressalta o tom político do show desta noite, mas destaca que trazer o show de Tatau para o evento já estava no radar da produção independente dos 40 anos da axé music.
Com a data festiva, aproveitou-se para destacar a importância da presença negra no movimento. "O axé nasce ali, no berço das religiões de matriz africana, nos afoxés, dos blocos afros. E aí surgiu a ideia de usar o afro axé, de uma forma política, define Ismael, do Núcleo de Curadoria da IDW Company.
Ismael evita tecer comentários sobre o embranquecimento da axé music, mas considera que a noite de hoje com Tatau, Lazzo e Márcia Short já é uma resposta do evento ao mercado de música. "Acho que dentro dessa discussão o nosso papel é homenagear essas figuras", avalia o produtor.
O Afro Punk Music Festival foi criado há 20 anos em Nova Iorque, nos Estados Unidos, pelo músico, tatuador e documentarista James Spooner e pelo empresário de bandas Matthew Morgan, dois anos depois que a dupla lançou um filme sobre a cena afro punk da cidade. Em 2019, aconteceu o Afropunk Brasil, em São Paulo.
A primeira edição do Afropunk em Salvador aconteceu em 2021, no Centro de Convenções. Desde 2022, o evento acontece no Parque de Exposições. O início do show Afro Axé Music está previsto para 1h40.
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