CRÔNICA
Até as crianças precisam aprender malandragem para sobreviver no Brasil
Leia a Crônica da Muito deste domingo, 7, Dia da Independência do Brasil

Por Franklin Carvalho*

Malandro não carrega embrulho e também não entra em fila, já dizia um dos grandes filósofos do Brasil, o carioca Bezerra da Silva, que eu ouvia no rádio quando ainda era criança, no interior da Bahia.
Foi só com o tempo que absorvi cada pedaço daquela lição, porque, afinal, a gente tem a obrigação de melhorar e aprender com os tropeços da vida, ainda mais quem sai da terra natal e em outros cantos não para.
A primeira constatação é de que é necessário ser malandro num país que tem milhares de leis e burocracias, e somente uma regra: Ordem para uns, Progresso para outros. Essa norma está escrita numa faixa branca que separa uma estrelinha num camarote enquanto outras estrelinhas se espremem na geral. Uma no latifúndio, e o restante na favela. Um país onde o mercado de trabalho é indecente desde 1500, e quem rejeita a escravidão é chamado de preguiçoso. Já o malandro colonial, que chegou nas caravelas para explorar os outros, nem se coçou nem levou má fama.
Como dizia Cazuza, é preciso pedir a Deus um pouco de malandragem. Ainda mais nós, que lemos jornais e livros, e acreditamos na escola, e por isso somos taxados de ingênuos num país que ridiculariza a educação. O pior é que o Brasil desrespeita ainda mais a massa que não estudou.
Até as crianças precisamos treinar na arte da esperteza e do drible nas ruas, elas que têm saído cada vez menos de casa. Antigamente se dizia que essa influência deveria vir de uma “referência masculina”, como se os pais ou avós homens fossem naturalmente safos e habilidosos com o mundo exterior. Ora, nem só muitos varões se revelaram verdadeiros néscios e bocós, quanto muitas vezes são as mulheres, as mães, que enxergam longe, nos alertam e cortam as ilusões.
Mas voltando a Bezerra da Silva, creio que algumas vezes é exigido da nossa parte entrar em fila, e ele próprio via as comunidades pobres madrugando na espera de atendimento em hospitais e escolas, etc. O que não admito é me torturar para “viver uma experiência única”, esperando um tempão na calçada por uma mesa no restaurante badalado, ou pelo lançamento de um produto ou loja da moda. Ou passar aperto num evento chato e superlotado, ou deixar a entrega de um documento para o último dia do prazo. Até onde posso, descubro rotas alternativas, faço outro esquema, compro diferente, ou não compro, contorno, escapo de sofrer.
E quanto a carregar embrulho, aqui na Bahia temos algumas expressões ótimas. “Fique lá com seu mandu”, “Vá morrer pra lá”, “Quem pariu Mateus, que balance” e “Quem comprou seu carvão molhado, que abane”. De fato, maravilhosas. Sou a favor de toda forma de solidariedade, de dedicação e de entrega ao próximo. Mas ao final das contas o maior apoio possível é deixar o outro fazer o que lhe cabe.
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Tudo o que excede a gentileza e abusa da boa vontade é esse “embrulho” que a canção (de autoria de Julio Belmiro Filho) menciona. Gente que entra no seu tempo, no seu roteiro, e lhe faz encomendas abusivas, e constrói planos com o seu nome e quer gozar com o seu playground.
Todo aquele que quiser ficar na aba do meu chapéu (outro hino imortalizado por Bezerra, de autoria de Reinaldo Silva, Belmiro Lima e Paulo Corrêa) vai cair e vai se machucar.
Malandro por malandro, eu também sigo com Chico Buarque, vendo tanto malandro oficial, malandro candidato a malandro federal, malandro com retrato na coluna social. E patriotas diversos, patriotas de até três países simultaneamente, segurando diversas bandeiras estreladas.
Todos valentes.
Mas se ergues da justiça a clava forte…
*Escritor, autor de Tesserato – A tempestade a caminho (Ed. Noir)
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