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Curtidas não contam: amizades reais estão em extinção?
Em meio à multiplicidade de relações em grupos, amigos mostram que há espaço para conexões profundas
Por Pedro Hijo
A baiana Ita Espinheira diz que conquistou muitos amigos durante a vida. No entanto, apesar do grande número de relações que cultivou ao longo de 68 anos de idade, ela consegue contar nos dedos as pessoas que considera amigos de verdade.
"Gosto de muita gente, mas são poucas pessoas que estão comigo para o que der e vier", diz. A afirmação de Ita ecoa um questionamento relevante em tempos digitais de tantas conexões: é possível criar vínculos reais dentro de grupos grandes?
Segundo o psicólogo Anderson Chalhub, nem todo agrupamento vira amizade. Há diferença entre estar cercado e ser acolhido. "A qualidade de um vínculo não se mede pela quantidade de nomes na agenda, mas pela possibilidade de ser quem se é, com segurança e verdade", explica o psicólogo.
O empresário Claudio Freitas, de 60 anos, teve a ideia de criar um grupo menor de contatos no aplicativo de conversas WhatsApp apenas com os amigos mais próximos. O Diretoria Panelinha é formado apenas por 10 amigos íntimos que já estavam em um grupo original chamado Panelinha, voltado para as conversas geradas pelo clube de corrida que participa. "Assim, temos liberdade para fazer brincadeiras que, às vezes, não têm a ver com corrida", diz. O novo grupo foi criado há cinco anos.
A relação dos amigos não se restringe às resenhas online ou aos encontros esportivos. "A gente marca passeios, forró, viagens", lista Claudio. Ele conta que até mesmo dentro do Diretoria Panelinha há níveis diferentes de intimidade.
"Há quem eu convide para a minha casa aos fins de semana, por exemplo", diz o membro do grupo que conta apenas com homens de mais de 50 anos.
Para Anderson, a idade também influencia diretamente na forma como os vínculos são construídos. Segundo o especialista, com o passar do tempo, as pessoas tendem a ser mais seletivas. "Com a maturidade, valorizamos profundidade e reciprocidade", analisa. É a experiência acumulada que ajuda a reconhecer o que realmente importa nas relações: segurança emocional, confiança mútua e afinidades reais. “Não se trata apenas de estar junto, mas de sentir-se pertencente", completa.
Identificação é uma palavra-chave na relação da profissional de harmonização facial Ana Luísa Assis, de 29 anos, com as amigas Ana Castro e Graziele Tenório. Moradoras de Salvador, elas frequentavam a praça Ana Lúcia Magalhães, no bairro da Pituba, ponto de encontro habitual de tutores de cães da raça maltês, para passear com os cachorros. Foi ali que surgiu, há cerca de sete anos, o grupo Família Maltês, criado por Ana para reunir quem dividia a rotina de caminhadas com os pets.
O grupo cresceu rápido e chegou a ter 300 participantes. O vínculo entre as três nasceu das tarefas compartilhadas nos bastidores: a organização de eventos, a coleta de rações para doação e a gestão do grupo. O convívio constante e o apoio mútuo em tarefas voluntárias foram o ponto de partida para uma amizade que, aos poucos, deixou de ser apenas sobre cachorros e se tornou pessoal, íntima e profunda.
As três perceberam que compartilhavam algo além do amor pelos pets: todas tinham histórias de famílias pequenas ou ausentes e encontraram umas nas outras um apoio emocional constante. “Viramos família mesmo", diz Ana Luísa. "A gente se ajuda nas escolhas de vida, profissionais e amorosas. Uma motiva a outra”.
A profundidade da relação se fortaleceu nos momentos mais difíceis. Estiveram juntas na gestação complicada de Graziele, na perda da mãe de Ana Castro e também durante o burnout vivido por Ana Luísa. “Foram elas que me encorajaram a sair do trabalho que me adoecia”, relembra.
O vínculo permanece forte até hoje, mesmo depois do fim do grupo original. Além do convívio rotineiro, elas passam juntas o Natal, a virada para o Ano Novo e a Semana Santa. “Amizade de verdade não se faz só de afinidade. É quando a convivência vira presença real, nos altos e baixos”, resume Ana Luísa.
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Histórias divididas
Para Ita Espinheira, a amizade que construiu com as amigas é como um casamento. “É muita convivência, muita história dividida", diz. A pedagoga e funcionária pública aposentada é uma das agregadoras do grupo formado, em sua maioria, por mulheres com mais de 70 anos, muitas delas professoras e militantes por causas sociais. “O que nos une é uma visão de um mundo mais justo, somos todas de esquerda não partidária, mas militante”, explica.
As amizades ali têm raízes antigas. Algumas começaram na infância, outras na faculdade, e todas foram sendo costuradas ao longo de décadas. “A mais recente tem uns 30 anos”, diz Ita.
O grupo, que hoje tem oito participantes fixos, se reúne a cada dois meses, mas se fala diariamente. “Tem gente que mora fora de Salvador, mas mesmo assim participa", conta. "A gente se fala o tempo todo, marca almoços e viaja juntas".
A solidez do vínculo se confirma nos momentos difíceis: foi com essas amigas que Ita contou quando enfrentou um câncer e também quando ficou viúva. “São essas mulheres que me seguram. A amizade não é só sobre rir juntas, mas sobre estar quando a vida aperta".
Para Ita, os subgrupos são parte natural e até necessária dessa dinâmica. “Tem uma amiga minha que é rainha de criar grupinhos dentro dos grupos", conta se referindo aos aplicativos de conversa. "Isso é ótimo, porque nesses espaços menores a gente fala de assuntos mais pessoais, se aprofunda mais”.
A fisioterapeuta Milena Rios garante que amizades verdadeiras podem, sim, nascer em agrupamentos maiores. Ao lado de outras oito mulheres, ela formou um grupo que nasceu durante os treinos de Crossfit, mas ultrapassou rapidamente o espaço da academia.
“A convivência diária foi aproximando a gente, e hoje é muito mais do que treino. É escuta, apoio, incentivo e amizade verdadeira”, afirma. Embora reconheça que, em grupos maiores, as afinidades naturais criam laços mais estreitos entre algumas pessoas, Milena acredita que isso não enfraquece o coletivo. “É possível ter amizade em grupo grande. Claro que a intimidade é diferente com cada uma, mas somos todas amigas”, diz ela.
O que mantém o grupo unido, segundo Milena, é o equilíbrio entre o afeto coletivo e as conexões individuais. Há espaço para todos os tipos de trocas. “Já passamos por momentos difíceis individualmente, e no grupo sempre encontramos apoio”, conta. “Eu sou uma pessoa de poucos amigos, mas encontrei nas meninas do Cross uma conexão real”, diz Milena, que desafia a ideia de que a intimidade só floresce em grupos pequenos.
Para o psicólogo Anderson Chalhub, os vínculos mais profundos costumam surgir em espaços menores, onde há abertura para a intimidade e para a exposição do que se é de verdade. Segundo ele, os subgrupos acabam funcionando como pequenos refúgios emocionais, onde a confiança pode ser construída com mais cuidado. “A amizade exige espaço para que a pessoa possa se revelar e ser acolhida", explica.

Novos vínculos
A baiana Brenda Nascimento, de 28 anos, é uma das 17 integrantes do clube do livro Lugar Feliz. Mesmo tendo entrado no grupo há apenas seis meses, ela já experimenta o que chama de “amizade com profundidade”.
Doutoranda em Comunicação e Cultura, Brenda conta que conhecia uma das participantes desde a faculdade, o que ajudou na aproximação inicial. Mas o vínculo se fortaleceu com o convívio regular e com os encontros mensais para discutir leituras.
“A gente sai para além do clube", diz Brenda. "Já fomos ao cinema, tomamos café da manhã juntas, fazemos manhãs de pintura, artesanato, virou um espaço de troca sobre a vida”.
O grupo pode ser numeroso, mas as conexões criadas ali não se perdem na quantidade, segundo Brenda. Para ela, o segredo está na intenção: “Tem quem vá só pelo livro, mas tem quem queira se abrir, criar laços. E isso acontece”. Mesmo já tendo feito parte de outros grupos de leitura, inclusive um que mantém desde os 14 anos com amigas conhecidas pela internet, ela se surpreendeu com a intimidade que nasceu tão rápido no clube atual. “Tem meninas que eu conheci há pouco tempo, mas que já criei laços fortes".
Para Anderson, conexões profundas são uma necessidade humana e influenciam diretamente no bem-estar emocional. “Vínculos verdadeiros ajudam a fortalecer a autoestima, a sensação de pertencimento e a segurança nas relações”, explica.
Segundo ele, o tamanho do grupo não é determinante. O que faz diferença é a abertura para o diálogo, a confiança e a disposição de cada pessoa em se conectar. “Para que relações significativas aconteçam, é preciso se abrir e confiar".
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