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Da Barra aos icebergs da Sibéria: Aleixo Belov e Marcelo Brocchini navegam em rota épica
Marcelo Brocchini revela bastidores de viagem de 80 mil milhas com o lendário Belov

Por Gilson Jorge

No último domingo, 7 de setembro, por volta das 14h30, a servidora pública Fernanda Brocchini interrompeu a celebração do seu aniversário para atender uma ligação da cidade russa de Anadyr, no litoral do Mar de Bering, bem perto do Alasca.
Quem estava no outro lado do mundo, e do outro lado da linha, era o seu marido, o velejador Marcelo Brocchini, que está a bordo do veleiro-escola Fraternidade, embarcação de Aleixo Belov, desde o último mês de abril, na viagem mais longa de sua vida e que, possivelmente, se encerre em janeiro do ano que vem, com o barco atracando em Salvador.
Por alguns minutos, Marcelo conversou com sua mulher, com o filho Matheus, e recebeu uma saudação coletiva dos mais de quarenta amigos que compareceram à festa.
"A figura principal não estava presente, mas a gente tem que celebrar", conta Fernanda, que acompanha pelo WhatsApp e pelo Instagram o itinerário do barco e registra a rota diariamente no mapa-múndi pregado na parede de sua casa. Um mapa que foi construído pelo próprio Marcelo, dias antes de o barco zarpar.
Seu marido é um grande especialista em navegação, que estima ter viajado por mais de 60 mil milhas náuticas antes da atual expedição.
Sua mais longa viagem até aqui havia sido a travessia França/Irlanda/França, em 2010, no barco do navegador Kan Chum. Agora, o baiano de Itiruçu que é apaixonado pelo mar desde a adolescência, participa de uma aventura ainda maior.
A tripulação cruzou o Oceano Atlântico em direção ao Ártico e costeou todo o norte da Rússia. Na volta, o barco desce pelo Oceano Pacífico, visitando o porto de Dutch Harbor, no Alasca, México, Polinésia Francesa, faz a volta no extremo da Patagônia, para depois aportar no Rio de Janeiro e, finalmente, a Bahia.
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80 mil milhas

Serão 80 mil milhas, 20 mil a mais do que tudo o que Marcelo tinha navegado em toda a vida. "Tive a honra de ser convidado pelo comandante Belov a participar dessa aventura", declarou Marcelo ao A TARDE pelo WhatsApp, no dia 8 de setembro, ainda desde Anadyr. A parada nessa cidade russa deveria ter sido de apenas três dias, mas um furacão obrigou os tripulante
Marcelo nunca teve dúvidas sobre viver dedicado às águas. Aos 13 anos, recém-chegado a Salvador, construiu um barco de madeirite com o qual passeava nas águas quentes do Porto da Barra, na companhia de um amigo que fez a embarcação com ele. Mas a aventura durou pouco tempo. A Capitania dos Portos rebocou o barco que não tinha licença para navegar.
O aspirante a descobridor dos sete mares não tinha a bússola orientada aos estudos na juventude. Pelo menos até se mudar para os Estados Unidos, acompanhando a mãe, a artista visual Maria Adair, que fez mestrado em artes na University of Iowa.
"Marcelo nunca gostou das escolas daqui. Todo ano, ele mudava. E lá, ele gostou porque tinha muita coisa prática. Mas você só pode fazer a parte prática depois de aprender toda a teoria", explica Maria. Uma das habilidades práticas aprendidas por Marcelo nos Estados Unidos foi a marcenaria.
A viagem atual começou com uma ligação de Aleixo Belov convidando Marcelo para tomar café em sua casa e lhe fez a proposta de navegar no veleiro Fraternidade. "Ele estava me escolhendo porque sou forte, por estar sempre navegando, porque toda vez que me ligava e me perguntava onde eu estava, eu estava navegando", declara Marcelo, salientando que a travessia da Passagem Nordeste, rota que liga o Atlântico ao Pacífico através do Ártico Siberiano, é extremamente complicada.
"Desta vez, ele não queria levar um estudante pois seria a rota mais difícil que ele iria fazer, e a companhia de um outro capitão e tripulação russa, seria muito útil para navegar nesta área", afirma o navegador baiano. Há um trecho hostil e traiçoeiro no litoral da Sibéria, que pode complicar a vida de navegantes que não conheçam a região.
Afinal, para fazer um drible no futebol ou passar de barco por certas regiões, às vezes é preciso combinar com os russos, como disse Garrincha. No litoral do município de Murmansk, no Círculo Polar Ártico, o barco teve que parar ao se encontrar com uma geleira.
Elogios
Marcelo enche de elogios o seu anfitrião, o experiente Belov, ucraniano naturalizado brasileiro que mantém o seu legado náutico à vista no Museu Aleixo Belov, no Santo Antônio Além do Carmo.
"Ele sempre motivou as pessoas com suas milhas e experiências navegando ao redor do mundo por algumas vezes e seus livros com toda a sua história", declara Marcelo.
O baiano afirma que foi muito difícil parar o seu trabalho na Bahia Boats, especializada em manutenção e logística de embarcações, além de aulas de velejamento: "Mas com o apoio de minha família resolvi encarar o que sempre foi um sonho meu, sair pelo mundo navegando. Estou numa experiência maravilhosa com um comandante que possui fartura de conhecimento para eu poder aprender mais".
Há obstáculos, porém, na viagem. Navegar durante meses com uma tripulação desconhecida não é fácil e pode ser muito desafiador. Mas também há recompensas. "Aqui fiz amigos em todos os portos, sempre fomos super bem recebidos e acolhidos na Rússia, me surpreenderam com carisma, alegria e apoio a todos da expedição. Por aqui ninguém fala de guerra, as cidades continuam normais seguindo suas rotinas, visitamos museus, escolas, monumentos históricos, atividades locais, jogamos até futebol", afirma Marcelo.
Desde fevereiro de 2022, a Ucrânia, terra natal de Belov, está em guerra com a Rússia, que, após uma escalada de hostilidades, invadiu o território ucraniano e desde então enfrenta sanções dos Estados Unidos e da União Europeia. Esta semana, o conflito ganhou novos contornos com a acusação de que drones russos invadiram o espaço aéreo polonês.
Mas os navegantes estão bem longe do sítio de guerra. A Rússia é o país mais extenso do mundo e a embarcação com os brasileiros estava na outra extremidade do continente asiático quando Marcelo atendeu a reportagem de A TARDE.
Eventuais conflitos só mesmo dentro da embarcação. "Na convivência em um barco, a salvação é individual. Você fica responsável pelo seu turno e se fizer algo errado complica", diz Marcelo.
Refeições

Segundo ele, a melhor parte da interação entre os tripulantes, e o que deixa todos com uma maior expectativa é a hora da refeição. A regra é que cada tripulante fica responsável por cozinhar um dia, com total liberdade para escolher o cardápio que vai preparar. "Às vezes saem coisas maravilhosas, mas outras não dá nem para comer, mas como temos que comer o que está na mesa, então você se acostuma com todo tipo de prato, mesmo que você não goste", diverte-se Marcelo.
Os mantimentos são providenciados pelo comandante, que compra de tudo o que for necessário para a próxima etapa da viagem nos mercados locais. "Há uma fartura de variedades, o problema é saber fazer a combinação dos ingredientes para agradar a todos. E outra regra é que não pode fazer comida em excesso, tem que ser na medida para não sobrar para o outro dia", declara o baiano.
Mas satisfazer o estômago é o de menos em uma viagem dessas. O grande barato é saciar a sede de contato com as maravilhas naturais que uma viagem a barco proporciona. "O mais importante são os momentos, as imagens, os animais, o pôr do sol, o nascer do sol, a aurora boreal, as ondas, o mar, a neblina, os icebergs. São imagens que vão ficar registradas na minha mente para sempre", relata o baiano.
Reflexões
Marcelo assume que tem passado por momentos complicados durante essa viagem. "Tenho sentido que o tempo desacelera e nos coloca diante de reflexões inevitáveis. O mar, com sua força e silêncio, mostra o quanto somos pequenos e ao mesmo tempo capazes de deixar marcas imensas. Vamos viver o hoje, aproveitando cada experiência que Aleixo está me proporcionando", afirma o baiano.
Foi um russo, o poeta e dramaturgo Vladimir Maiakovski, o poeta da revolução, que declarou: “O mar da história é agitado. As ameaças e as guerras havemos de atravessá-las, rompê-las ao meio, cortando-as como uma quilha corta as ondas”.
Enquanto Marcelo navega por essas ondas e pensa nas implicações de velejar, a sua família em Salvador acompanha as suas aventuras pela internet, na frequência que a conexão permite.
Seu filho Matheus Brocchini, que veleja desde os seis anos de idade, vai tocando os negócios na Bahia Boats, vibrando com as aventuras do pai e sonhando com os seus próximos passos, às vezes recalculando rotas.
Matheus, que começou a cursar administração de empresas pensando em gerir a empresa familiar, foi fisgado pelo desejo de fazer oceanografia. "Eu fui criado com a ideia de sair para velejar e dar a volta ao mundo", conta o estudante, que em 2023 comandou uma viagem de barco na costa leste dos Estados Unidos, de Maryland à Flórida, para ensinar um tio a velejar. "Eu estou muito feliz por ver meu pai realizar o seu sonho e em breve espero viajar com ele", anima-se Matheus.
Casada há 30 anos com Marcelo, Fernanda aprendeu a velejar com ele, ainda no início do namoro. De longe, ela monitora as aventuras da tripulação com um certo temor, mas confiante na expertise dos comandantes.
"Quando eles começaram a navegar, eu vi que era tranquilo, mas tinha horas que a navegação era tensa, para desviar dos icebergs. Mas como era o tempo todo dia, não tinha noite, a viagem foi mais tranquila", lembra Fernanda.
O eixo de inclinação da Terra faz com que em certas regiões do Círculo Polar Ártico, haja luz solar durante o dia inteiro, ao longo de meses. Esse fenômeno é conhecido como O Sol da Meia-noite, e em Murmansk, a maior cidade do Ártico, acontece entre 22 de maio e 22 de julho, segundo explica o site brasileiro da revista National Geographic.
Ao relatar seus sentimentos em relação à viagem do filho, Maria Adair demonstra tranquilidade. "Preocupação a gente sempre tem. Mas Belov é muito experiente", pondera a artista, que ao longo do tempo presenteou Marcelo com obras suas ligadas ao mar, como uma Iemanjá e dois peixinhos de cerâmica comprados na Feira de São Joaquim e que foram pintados por ela.
A superfície do Oceano Pacífico, onde o veleiro se encontra, aponta no horizonte uma distância física infinita entre o velejador Marcelo Brocchini e a sua família. Mas, no fundo, estão todos no mesmo barco.
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