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Evento do Neojiba reúne músicos internacionais: "Salvador será ponto de encontro da juventude"
Neojiba Conecta tem a presença de 30 instrumentistas de Angola, Chile, Colômbia, Equador, Moçambique e Peru
Por Gilson Jorge
O barulho contínuo de um cortador de grama ecoou por pelo menos duas horas na sede do Neojiba, Parque do Queimado, na manhã da última terça-feira. Era bem mais discreto e suave do que o som de um martelo batido em uma estrutura metálica, que estava sendo consertada por um funcionário, na entrada secundária do prédio principal. Se estivesse por ali, o falecido João Gilberto possivelmente teria reclamado.
Mas nada tirou a concentração dos jovens músicos, a maioria violinistas, que praticavam com seus instrumentos, sozinhos ou em pequenos grupos, ao ar livre, com o mesmo afinco de seus companheiros que ocupavam as salas de ensaio dotadas de isolamento acústico.
Este mês, o Parque do Queimado está mais musical do que de costume, com a presença de 30 instrumentistas de Angola, Chile, Colômbia, Equador, Moçambique e Peru, convidados para a primeira edição do Neojiba Conecta.
Trata-se de um programa de intercâmbio organizado pelo Instituto de Desenvolvimento Social pela Música (IDSM), órgão gestor do Neojiba, que inclui uma série de saraus no Parque do Queimado, sempre com entrada gratuita.
Hoje, às 17h15, acontece a última das três apresentações comemorativas dos 17 anos do Neojiba. E no próximo domingo, dia 28, às 17h, será o grande concerto de encerramento, com a Orquestra Neojiba Conecta, no Teatro Salesiano, em Nazaré, com a regência do maestro Ricardo Castro.
Essa exibição contará com a presença dos 30 músicos estrangeiros, além de instrumentistas do projeto baiano, que é inspirado no modelo de El Sistema, método de ensino gratuito de música clássica criado na Venezuela, em 1975.
Uma ideia que foi semeada em outros países. Em 2013, surgia em Moçambique o projeto Xiquitsi, inspirado no Neojiba, que se destina à formação de orquestras e coros, ensinando música gratuitamente a crianças e jovens de 6 a 25 anos. E um de seus ex-alunos, o violoncelista Manuel Fabião Matsinhe, 29 anos, veio a Salvador participar do Neojiba Conecta.
Ex-músico de igreja evangélica e um fã ardoroso do saxofonista Charlie Parker, Manuel Fabião deliciava-se ao ar livre na manhã da última quarta-feira com o seu instrumento. Seu foco não foi abalado nem mesmo quando um táxi estacionou a menos de um metro da sua cadeira, e o motorista desceu carregando bandejas de lanches e garrafões plásticos de suco, que seriam servidos minutos depois aos jovens artistas.
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Absorto em sua partitura e no aplicativo de celular que mensurava o seu desempenho, Manuel interrompeu o ensaio solitário por alguns minutos para dar entrevista e, depois, para emprestar o instrumento à jovem angolana Teresa Balanga, que é violinista, mas também toca violoncelo e contrabaixo.
Manuel começou a tocar clarinete e trombone aos 19 anos, de forma autodidata, ainda na igreja. "Eu queria estudar música, mas meus pais não tinham condições de pagar, então, me matriculei no Xiquitsi para aprender violoncelo. O mais incrível é que eu não conhecia o instrumento", conta o rapaz.
O violoncelista já participou, junto com a Orquestra Xiquitsi, de festivais na África do Sul, tocou no interior de seu país e, recentemente, foi à Itália. "Sempre com a música. Música sem fronteiras", celebra Manuel.
Sobre a primeira vinda ao Brasil, junto com músicos internacionais, o violoncelista elogia a diversidade. "É uma oportunidade incrível para o meu desenvolvimento musical e também humano. Conhecer novas pessoas, ter uma nova forma de pensar, uma nova forma de resolver as coisas", afirma Manuel, que recomenda aos brasileiros ouvir o cantor moçambicano Fany Mpfumo, falecido em 1987.
A violinista Teresa Balanga, 20 anos, conheceu a música brasileira com a Turma do Balão Mágico, que ainda ecoava em Angola há 20 anos, quando ela nasceu. Não havia musicistas em sua família, mas ainda assim ela ganhou um violino de presente aos oito anos de idade. E aprenderia a tocá-lo aos 10.
"Eu nem sabia que existia uma escola de música aí, perto de casa. A Escola Kaposoca foi formada em 2008 e, em 2009, a minha tia já queria me meter aí, só que não deu por causa da idade", lembra a jovem, que finalmente se matriculou em 2014. Aos 10 anos, Teresa encarava a música como uma brincadeira, mas com o tempo se apaixonou pela arte e quis aprender outros instrumentos.
Sobre a sua vinda a Salvador, a jovem angolana credita a viagem a Deus. "O maestro (Ricardo Castro) foi lá na escola, me viu tocar e disse que eu devia vir. Foi mais uma escolha do maestro. E eu disse: 'Uau, vai ser o maior privilégio da minha vida’", declara Teresa.
A jovem musicista confessa que estava com receio de viajar e de ter problemas de comunicação com as pessoas, mas afirma que a experiência está indo além das expectativas. "O português do Brasil já é bastante complicado, mas o que vou levar daqui é a experiência. E como eu ainda sou uma pequeninha na música e estou com pessoas grandes, vou aprender muito. Vou sair grande também", afirma a violonista, que afirma não ter um compositor preferido, mas sim uma ligação especial com Beethoven. "Sempre que eu estou com uma obra sem saber de quem, eu estou com Beethoven", declara.
A ideia do Neojiba Conecta surgiu na Fundación Teatro del Lago, em Santiago do Chile, onde o Neojiba se apresentou em fevereiro deste ano, sob a regência de Ricardo Castro, com a participação de músicos de outros países latino-americanos. "A vontade de fazer o encontro surgiu quando eu vi a potência da junção desses jovens da Bahia com a América Latina. Aí eu fui atrás de financiamento privado", afirma Castro.
Segundo o regente, o Neojiba Conecta é fundamental para promover o diálogo, a paz e o crescimento pessoal e artístico desses músicos do Sul Global, referência usada nas relações internacionais para designar a América Latina, a África e a maioria dos países asiáticos. "O pensamento é ter Salvador como um ponto de encontro dessa juventude, para promover o diálogo, o intercâmbio. Esse encontro deve ser pelo menos bianual", afirma Castro.
Um dos artistas convidados foi o chileno Benjamin Aguilar, 27 anos, que começou a estudar música aos 15 anos na Fundación Teatro del Lago. Sobre a discussão entre o repertório erudito e a música popular, muito presente na Bahia, o jovem conta que em seu país também há orquestras que executam diferentes estilos, como o jazz e o rock, por exemplo. "É muito importante ter uma variedade de estilos, conhecer outros tipos de música. Eu gosto de variações musicais", afirma Benjamin.
Os amigos colombianos Juan Andrés Rodriguez, 22 anos, e Valentina Vargas, 24, ambos violinistas, concordam com a ampliação de repertório por parte das orquestras. "Eu acho muito importante a aproximação com as nossas músicas tradicionais, porque sinto que é com elas que estamos convivendo o tempo todo", afirma Valentina.
A musicista colombiana acredita que os artistas devem valorizar não apenas a música de origem europeia, mas abraçar também as músicas tradicionais e apontar para um caminho novo. "Acho que as duas tradições devem caminhar juntas", declara a violonista.
Seu amigo, Juan, sublinha que a música que chamamos de clássica é a tradicional europeia. "É um pouco ambíguo, porque é como se não tivéssemos apreço e respeito pelas tradições musicais de outras regiões", declara o jovem.
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Diversidade de tradições
Para ele, é importante que se abrace a diversidade de tradições musicais. "Esses dois mundos são o mesmo mundo. Tudo é música", completa o violonista, que destaca ter se dedicado ao violino porque o sistema educacional de seu país privilegia esses instrumentos e essa musicalidade europeia, mas afirma desfrutar também outros gêneros.
"O bacana da música, o que eu mais gosto, não é apenas o gênero em si, mas o ambiente em que ela se formou. Tocar Tchaikovsky me parece igualmente incrível do que tocar Luiz A. Calvo", pondera o violonista colombiano, citando um dos mais famosos compositores de seu país, autor de sucessos como Amapola, música que ganhou versão em português, gravada por Roberto Carlos.
Juan e Valentina, que tocam juntos na Filarmonica Joven de Colombia, destacam ainda a relevância de Los Bambucos, um conjunto argentino que fez sucesso nos anos 1950 tocando jazz e música latina, inspirados no bambuco, ritmo tradicional dos Andes Colombianos.
Valentina sorri ao saber que a banda de rock colombiana Aterciopelados frequentou a programação da MTV Brasil e recomenda como algo que os baianos deveriam escutar o El Caribefunk. "É um grupo de Cartagena que, assim como Salvador, é uma cidade portuária. Sinto que é um tipo de música que tem uma vibração parecida à da Bahia", aposta a violonista.
Juan, que faz parte de um projeto similar ao Neojiba em Medellín, chamado Iberacademy, elogia iniciativas como o Conecta, que permitem o intercâmbio com músicos de outras partes do mundo: "As pessoas têm a oportunidade de conhecer outros países, de interagir e criar laços. E ao mesmo tempo poder ajudar no aprendizado de outros jovens e passar o bastão para outras gerações".
Dias baianos
Nos seus dias baianos, os musicistas estrangeiros tentam se adaptar à picardia local, especialmente os moçambicanos, que têm uma tradição de certo recato. Logo nas primeiras horas de convívio, um angolano ficou curioso ao notar que alguns jovens músicos baianos se cumprimentam com um "oi, veado!".
Foi procurar saber o que significa e acabou sendo introduzido às variações locais do uso do palavrão que começa com a letra p e consta inclusive no grito de guerra tricolor: "Bora Bahea, minha p...". A fagotista baiana Nadine Rafaela Silva, 20 anos, que conversou com o angolano, ouviu dele que em seu país não se usa essa palavra, considerada falta de respeito.
Mas fora o pequeno contratempo linguístico, Nadine está curtindo a presença dos colegas estrangeiros. "Na terça-feira, houve uma atividade no galpão, todo mundo tocou junto", contou a musicista, que integra a Orquestra Castro Alves (OCA), núcleo intermediário do Neojiba que mantém três orquestras.
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