CELEBRAÇÃO
Glória Pires conta história nunca revelada sobre o Balé Folclórico da Bahia
Documentário expõe bastidores surpreendentes de companhia baiana

Por Gilson Jorge

Em 2002, a atriz Glória Pires viajou à França para assistir o show do marido, o cantor Orlando Morais, no Castelo Brissac. Na fila de embarque do aeroporto, no Rio, conheceu o baiano Vavá Botelho, antropólogo e diretor do Balé Folclórico da Bahia (BFB), que partia em turnê pela Europa. Por coincidência, Vavá e Glória tinham reservado assentos vizinhos e a conversa fluiu enquanto o avião sobrevoava o Atlântico.
A atriz e o marido tornaram-se depois amigos de Vavá, ou Vazim, no sotaque goiano de Orlando, e o casal se encantou com a história do balé. Tanto que no próximo ano deve ser lançado o filme Direto do coração, documentário produzido por Glória Pires sobre a companhia de dança baiana que há 37 anos encanta o mundo, tendo se apresentado em mais de 40 países e em 283 cidades dos Estados Unidos, mas no Brasil ainda é pouco conhecida.
"Eu fui arrebatada primeiramente pela história do balé e, posteriormente, pelo espetáculo que assisti no Teatro Miguel Santana", declara a atriz e cineasta, que ressalta a potência dos bailarinos, a criatividade nas coreografias e o capricho dos figurinos como fatores que mais chamaram a sua atenção.
"Falei para o Vavá que precisávamos fazer um documentário para não somente enaltecer, mas registrar esse trabalho monumental que tem sido mantido com tanta garra e beleza", diz a artista, que vê o Bale Folclórico como motivo de orgulho para todos os brasileiros.
E essa não é a única forma de celebrar. O espetáculo que faz este ano turnê pelo Brasil em oito cidades, com o patrocínio do Will Bank, chama-se O Balé que você não vê, que marca a comemoração dos 30 anos da companhia, em 2018. Com a pandemia, a estreia aconteceu no Teatro Castro Alves, em 2022, o único palco em Salvador apto a abrigar esse espetáculo.
Com a destruição parcial do teatro após o incêndio de 2023, a cidade está temporariamente sem a possibilidade de desfrutar da obra. O nome do espetáculo é uma referência a um projeto de 15 anos atrás, quando, sem recursos, o balé realizou um festival interno.
O balé que você não vê, na verdade, começou a ser desenhado em 2017, durante uma turnê do BFB pelos Estados Unidos. Vavá e o diretor artístico do balé, Zebrinha, observavam da plateia uma aula ministrada pelo dançarino Slim Mello, oriundo do BFB, que se formou na primeira turma do Ballet Bolshoi Brasil, em Santa Catarina, e que desde 2009 mora em Nova York, onde se uniu à Alvin Ailey American Dance Theatre.
"Ele chegou a ser solista da companhia, que é possivelmente a companhia de dança negra contemporânea mais importante do mundo", testemunha Vavá. Atualmente, Slim é um respeitado sommelier de vinhos, mas mantém-se ligado à dança.
Enquanto observava o ex-dançarino, nascido em Plataforma e hoje cidadão do mundo dar uma aula aos jovens da BFB, Vavá encantou-se com um movimento de Slim no palco que mesclava dança afro-baiana, jazz, hip hop e balé clássico. "Eu comentei com Zebrinha que a gente podia convidar Slim a criar uma coreografia para os 30 anos do balé", lembra Vavá.
O mesmo convite foi feito a outros dois ex-dançarinos do BFB, Carlos dos Santos, que mora nos Estados Unidos há 35 anos e Nildinha, que se tornou professora do balé. "É uma homenagem aos mais de 800 bailarinos formados pela companhia nesse período, diz Vavá.
A coreografia criada por Slim para esse espetáculo chama-se 238, referência a uma linha de ônibus nos tempos em que o artista morava em Salvador. "Essa coreografia é uma carta de amor aos meus pais, a Plataforma, ao Subúrbio Ferroviário, onde eu nasci. 238 cheira a nostalgia, tem cheiro de maré", afirma Slim.
O artista declara que os movimentos dessa coreografia estão relacionados a flashbacks do caminho entre a sua casa e o BFB, quando pegava o ônibus. "É uma celebração do lugar em que eu estava e minha cabeça manifestando o lugar em que eu queria chegar", aponta o dançarino.
Slim atribui os movimentos coreográficos aos sonhos, à repetição diária dos deslocamentos e até à sua dramaticidade existencial, que credita ao fato de ser pisciano. "Eu não me considero um coreógrafo, mas às vezes o nosso corpo tem muita coisa a falar", declara o artista, que ainda se considera parte do BFB e se refere ao grupo na primeira pessoa do plural. Sempre com orgulho e alegria pelas portas que a companhia lhe abriu. "A Bahia talvez não tenha noção da dimensão do Balé Folclórico", pontua Slim.
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Bolero

Autor da coreografia Bolero, Carlos dos Santos começou no BFB aos 17 anos e na sua primeira turnê internacional precisou da autorização escrita dos pais para deixar o país. Mas era só o começo de uma longa viagem. "O Balé Folclórico teve um impacto muito grande em mim, não só artístico, mas espiritual. Eu tinha um pouquinho de problema em aceitar a minha espiritualidade, o Candomblé", afirma Carlos, que é codiretor da Jun Lu Performing Arts, em San José, California.
"Eu enfrentei tudo e fiz o meu orixá. Exu é meu orixá", conta Carrlos, que ficou no BFB por oito anos e depois trabalhou como assistente de coreografia de Rosangela Silvestre, então professora da Escola de Dança da Funceb e criadora da Técnica Silvestre. "Não só na minha vida, mas na de muita gente, o Balé Folclórico tem importância para se descobrir a si mesmo", afirma o artista.
Carlos declara ter se emocionado com o convite de Vavá para desenvolver uma coreografia em comemoração pelos 30 anos do balé. "É fechar um ciclo, eu comecei a ter um monte de ideias. Quando a energia é boa, as coisas acontecem rapidamente", declara o artista, que se refere a Zebrinha como o seu "pai na dança".
O artista enaltece a companhia e os seus bailarinos, que fizeram suas próprias intervenções na coreografia criada ele. "Eu acho o Balé Folclórico a melhor representação do Brasil no exterior", declara Carlos.
Para acompanhar as novas coreografias, o BFB foi atrás de uma nova música. Por meio de uma amiga em comum, Vavá chegou ao nome de Renato Neto, músico, produtor e diretor musical, ex-tecladista de Prince por 11 anos, que também trabalhou com Rod Stewart.
Apesar de nunca ter tido contato profissional com a música afrobaiana, Renato aceitou o desafio de fazer uma nova roupagem para o Bolero de Ravel, especialmente para a companhia. "Eu nunca tinha musicado nenhum balé, foi um experimento. E acabou sendo algo bem assertivo, foi divertido", descreve Renato, que veio a Salvador em 2022 para acompanhar a estreia do espetáculo no TCA.
Reação

Renato descreve a sensação que teve com a reação do público soteropolitano ao balé há três anos como pura alegria. "O papel do artista é dar emoção ao público. E a junção do balé com a música ficou emocionante", afirma o músico.
Renato descreve com especial carinho uma sessão vespertina do espetáculo, voltada para alunos da rede pública de ensino. "Tinha, sei lá, umas duas mil crianças numa alegria, numa excitação. Isso foi mais prazeroso ainda", declara o músico.
No processo de criação dessa versão, Renato acompanhou ensaios da companhia e assistiu vídeos com as coreografias, " Eu observei os movimentos do balé para poder fazer acentuações, com a percussão ou com alguma outra instrumentação. A música já estava ali, eu simplesmente a vesti com afro", destaca Renato.
O BFB continua coreografando histórias de vida. Dos 17 bailarinos do corpo atual, apenas dois são veteranos. Os outros se juntaram recentemente em oficinas que a companhia realiza em bairros periféricos de Salvador. Foi assim começou o balé pessoal de Adna Rodrigues, 22 anos, que quando criança participava dos núcleos artísticos da igreja evangélica frequentada por sua família no bairro.
Adna cresceu, não se converteu à religião dos pais, e passou a sonhar com o jornalismo e a medicina veterinária como profissões. Um dia, sua mãe viu na TV a chamada para oficinas do balé em diferentes localidades, lembrou-se do encantamento da filha com as artes na infância e a incentivou a participar. Adna se inscreveu na do Pelourinho. "Eu me apaixonei pela dança e logo depois das oficinas eles anunciaram audições para participar do espetáculo em 2022", conta a jovem bailarina, aprovada para uma das 15 vagas.
Ela afirma que, com o tempo, foi "pegando amor" ao ofício e animando-se com o seu progresso na companhia. "Houve outra audição e eles mudaram o elenco para a turnê de 2025 pelo Sul e Sudeste. Eu entrei como reserva e este ano assumi o protagonisno desse espetáculo", celebra.
Adna conta ter ficado impressionada e surpresa com a receptividade das plateias na sua primeira turnê com o BFB, especialmente no Rio de Janeiro e em Florianópolis. "Foi incrível. Normalmente, a gente pensa em lugares com gente preconceituosa e racista, mas a gente passou por lugares em que a recepção foi fantástica, houve uma troca muito boa com o público", afirma a jovem.
O ano inteiro

Sediado desde 2014 nas instalações do Teatro Miguel Santana, na rua Gregório de Mattos, no Pelourinho, o BFB é muito procurado por turistas. Não é raro que grupos parem em frente ao casarão de número 49 enquanto ouvem explicações em inglês do guia sobre a companhia.
Os espetáculos que acontecem o ano inteiro às segundas, quartas e sextas, às 19h, costumam estar lotados. Na última segunda, dia 17, os 100 ingressos já haviam sido vendidos quatro horas antes do início da sessão.
O Balé Folclórico foi criado em 1988 por Vavá e por Ninho Reis, ambos ex-integrantes do Viva Bahia, um grupo folclórico criado pela etnomusicóloga e folclorista Emília Biancardi, que era anteriormente uma das principais expressões da arte afrobaiana. Com o encerramento das suas atividades, o balé foi fundado por Vavá e Ninho, que morreria três anos depois.
O balé foi criado por dois motivos. Dar continuidade ao legado de Emília e a diversão de viajar, viver da arte e ser feliz. "Com o fim do grupo, cada um de meus colegas tomou seu próprio rumo e eu me senti meio órfão", afirma Vavá.
Por mais de 20 anos, a missão de mostrar ao mundo a cultura afrobaiana esteve basicamente sob a responsabilidade do Viva Bahia, que a própria Emília definiu certa vez como grupo parafolclórico. Além da dança, o grupo levou a diversos palcos do planeta encenações do Candomblé, o que lhe rendeu críticas de intelectuais como Vivaldo Costa Lima. E o grupo, que no final teve Vavá Botelho como braço direito de Emília, também é considerado um dos responsáveis pela disseminação mundial da capoeira.
Poucos anos antes de sua extinção, o grupo levou a Roma em 1983 um grupo de capoeiristas que causou sensação entre os italianos durante o mítico festival Bahia de Todos os Sambas, que levou à capital italiana João Gilberto, Caetano Veloso, Batatinha e Nana Caymmi, entre outros. Agora, pelo menos no que diz respeito à dança, o bastão está com o Balé Folclórico da Bahia.
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