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Um universo de beleza: histórias dos sucessos do Ilê Aiyê

Os 50 anos do ilê Aiyê do ponto de vista dos compositores

Por Gilson Jorge

23/02/2025 - 6:00 h
Vovô do Ilê
Vovô do Ilê -

Na segunda metade da década de 1970, quando o recém-criado Ilê Aiyê se preparava para desfilar pela avenida, um grupo de amigos do Tororó se mandou para o Curuzu a fim de acompanhar o ensaio do bloco. A aproximação da turma com o Mais Belo dos Belos aconteceu através de amigos em comum de Popó e Vovô, fundadores do bloco.

Em um boteco nas proximidades, os foliões forasteiros, que sentiram alguma animosidade na vizinhança por não serem da área, começaram a batucar na mesa. Dois deles, Cuiuba e Paulinho do Reco, eram músicos e começaram a delinear ali mesmo uma composição inspirada na festa do primeiro bloco afro da história.

"Aquele negócio dos mais jovens de antes. A gente ia compondo e escrevendo em guardanapos", lembra Paulinho, que em 1975 tinha viajado ao Rio de Janeiro como integrante do grupo Independentes do Samba, que acompanhou Nelson Rufino e Valmir Lima na gravação da lendária coletânea Bahia de Todos os Sambas.

Paulinho do Reco
Paulinho do Reco | Foto: Uendel Galter /Ag A TARDE

Paulinho, que tinha começado a tocar reco-reco por casualidade, dividia o tempo entre o trabalho como servidor público da Sudesb, que cuidava da antiga Fonte Nova, e a vida boêmia, que incluía compor e cantar com os amigos.

Em um certo mês de novembro, durante uma viagem a Alagoas, onde o Ilê se apresentaria, Paulinho e os amigos começaram a cantar no ônibus a canção que tinha sido composta em um boteco do Curuzu. "No ônibus que eu estava, no meio do caminho as pessoas já sabiam cantar", lembra o músico.

Surgia assim Negrume da Noite, uma música que começa com a saudação a Oxóssi, “Odé komorodé, Odé, arerê, Odé, komorodé, odé, Odé, arerê", que Paulinho do Reco aprendera no candomblé. A letra cita ainda o Perfil Azeviche, nome da máscara criada em 1978 pelo artista visual J. Cunha, que se tornaria um dos principais ícones do Ilê.

De volta a Salvador, Paulinho do Reco e Cuiuba viram sua composição ganhar terreno entre os foliões nos ensaios e desfiles do bloco, ano após ano, mas sem que tivessem a chance de ver a música no repertório oficial do bloco.

"O cantor puxava qualquer música lá em cima do carro ou do palanque e cá em baixo o povo puxava Negrume da Noite, principalmente quem viajou. Uma coisa incrível", destaca Paulinho do Reco.

A história da música muda quando ela chega aos ouvidos de Margareth Menezes, que a gravaria no álbum Kandala, em 1991. Seis anos depois, Virgínia Rodrigues apresentaria uma versão de Negrume da Noite no disco Sol Negro.

Se a canção de Paulinho do Reco e Cuiuba se impôs depois de mais de uma década, anualmente dezenas de pessoas, de dentro e de fora da Bahia, buscam a chance de entrar para a história de um bloco que já nasceu fazendo história.

A cada ano, depois que o Ilê Aiyê decide o seu tema para o Carnaval, a caixa de e-mail da organização do Festival de Música Negra do Ilê Aiyê se enche de arquivos de áudios com músicas candidatas nas categorias poesia e tema. Este ano, foram mais de 180 inscritos, com várias candidaturas vindas de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.

Para ouvir as músicas e fazer a triagem de quem disputaria a final foi designada uma equipe de seis pessoas. Os candidatos haviam recebido previamente às inscrições uma apostila com o que deve e o que não pode estar presente na composição. "Antigamente, a gente recebia as fitas e CDs aqui na sede e uma equipe ouvia o material", lembra Sandro Teles, um dos coordenadores do festival.

As músicas pré-selecionadas são apresentadas a um corpo de jurados que decidem quais vão disputar a grande final. "Os pesquisadores do Ilê fazem um levantamento de dados sobre o tema do ano e nós enviamos aos inscritos para que eles possam se inspirar", afirma Sandro.

O festival escolhe as três primeiras colocadas em duas categorias, tema e poesia. "A categoria poesia trabalha muito a questão do resgate da autoestima, da valorização e do orgulho do povo negro", explica o presidente do Ilê, Antonio Carlos dos Santos, o Vovô. O festival não aceita músicas com cordas, só percussão.

Este ano, a música-tema vencedora foi Harambee Ilê, de Sid Mancini, Wostinho Nascimento, Fidel Cobra e Damásio. Na categoria poesia, venceu Bamburucema no Ilê, de Juninho Magaiver e Rosselini Leite.

Mas, às vezes, as músicas que vão marcar mais profundamente a trajetória do bloco não vencem o festival e triunfam por outros canais. O autor da música Deusa do Ébano, o dentista Geraldo Lima, por exemplo, tinha um foco maior nos chamados blocos de índios.

Mas, um dia, uma mulher negra desconhecida atravessou o caminho do dentista Geraldo Lima, no Centro. Foi a inspiração para escrever Deusa do Ébano. "Originalmente, eu não escrevi para o bloco. Mas tem um verso que termina em você, que chama a rima com Ilê, conta compositor.

Geraldo Lima
Geraldo Lima | Foto: Olga Leiria / Ag. A TARDE

Música feita, Geraldo encontrou com Apolônio Popó na Cantina da Lua e disse que tinha feito uma música para o bloco. "Ele falou: vai lá cantar no ensaio. Em três domingos, o pessoal já estava fazendo coro", conta o dentista.

Da cadeira odontológica do consultório de Geraldo Lima, na Rua do Cabeça, é possível observar um trecho da Rua Carlos Gomes, que no Carnaval faz parte do Circuito Dodô. Uma paisagem interessante para o momento do desconforto necessário dos tratamentos dentários.

Há 21 anos, desde que sua assistente se aposentou, doutor Geraldo atende sozinho os seus pacientes no sexto andar de um edifício comercial, que durante a folia recebe tapumes de madeira e fica praticamente sem movimento.

Ao longo do ano, o dentista formado em 1972, único negro da turma, filho de operários, gosta de circular pelas ruas e becos do Centro de Salvador e observar pessoas e situações que esporadicamente lhe inspiram a batucar e compor certas canções, nas horas vagas.

Ao lembrar dos blocos de índios que observava desfilar no Garcia quando ainda tinha 13 anos de idade, Geraldo declara: "Eu gostava do que via, mas não tinha a menor ideia de que participaria disso". Em 1968, ele começou a escrever letras para participar do Festival de Música do Garcia. "Nessa época, eu ainda não tinha o traquejo de fazer melodia, cantar", explica o dentista.

Deusa do Ébano foi inscrita em 1979 no festival do Ilê, que seria num sábado. Mesmo dia em que o Cacique ensaiava. "Isso já me deixou angustiado. Tudo do Ilê é naquele método. Demorou e eu doido para ir embora. Popó me disse: não vá, não, que pode ter surpresa. Me chamaram para uma menção honrosa, me tiraram da concorrência com o pessoal da casa. Eu fiquei mais um pouquinho e depois me piquei para o Garcia", declara Geraldo.

Deusa do Ébano não ganhou o festival, mas a expressão acabou batizando anos mais tarde o concurso da Rainha do Ilê. "Provavelmente, a música deu um glamour. Deixou de ser a Rainha e passou a ser a Deusa do Ébano", aponta o compositor, que ainda viu Lazzo, então o cantor do Ilê, puxar a sua música na avenida naquele ano.

Beleza negra

O concurso da Deusa do Ébano fez com que o compositor Marito Lima buscasse inspiração para um dos grandes sucessos recentes do bloco. "Eu era louco para escrever para a Deusa do Ébano, queria que os deuses da música me trouxessem qualquer tipo de caminho", conta o compositor.

Marito então se fixou no fato de que o evento mais esperado no Curuzu era a noite da Beleza Negra. "Eu tive esse ponto de partida e outras partes da canção vieram através de sonhos", declara Marito, ao explicar como surgiu Exalou.

Marito Lima
Marito Lima | Foto: Uendel Galter /Ag. A TARDE

"Eu dormia e acordava com um pedaço da música. É incrível como isso acontece", declara o autor da música gravada por Daniela Mercury em 2020, no álbum Perfume. Este ano, Marito ficou em terceiro lugar em música-poesia com Ilê Aiyê nas Águas de Oxum.

Parceria

Uma das músicas mais conhecidas em homenagem ao Ilê, Charme da Liberdade, surgiu da aproximação de duas pessoas que não compunham. Adailton Poesia e Valter Farias foram apresentados em 1986 por Luciano Gomes, autor de Faraó.

Os dois novos amigos começaram, então, a se encontrar na portaria do hospital em que Valter trabalhava à noite para fazer batuque. "Um dia a gente decidiu fazer música, sem saber para que lado ir. A gente queria fazer uma música para o bloco afro pioneiro, o Ilê Aiyê. Mas a primeira tentativa não deu certo", diz Adailton.

A dupla começou a frequentar os ensaios de blocos afros e, ao mesmo tempo, conhecendo compositores dos blocos e visitando bibliotecas em busca de conhecimento para aprimorar o trabalho. "Nós criamos a nossa primeira música para o Ilê, que infelizmente não deu em nada", lembra Adailton aos risos.

O primeiro sucesso da dupla foi Reggae dos Faraós, feita para o Olodum e gravada em 1987. A música segue o modelo muito usado durante aquela década, em que a letra descreve fatos históricos.

Mas o grande sucesso da dupla, Charme da Liberdade, ganharia o Brasil em 1992, na voz de Daniela Mercury, que naquele momento era sem dúvida a principal cantora do que se chamava de axé music, depois da explosão comercial e midiática do álbum O Canto da Cidade.

"Foi uma música que fizemos para os 18 anos do Ilê, uma música-poesia, que é quando você fala da história do bloco afro. Nesse caso, o Ilê foi uma fonte de inspiração, como se fosse uma mulher para mim", explica Adailton.

O refrão "não me pegue, não, me deixe à vontade" foi uma homenagem que a dupla fez ao verso "Não me pegue, não me toque, por favor não me provoque, eu só quero ver o Ilê passar", da música Depois que o Ilê Passar, de Milton Souza.

Por um critério adotado pela produção do disco de Daniela Mercury, a música Charme da Liberdade foi unida a um trecho da música A Verdade do Ilê, de Guiguio, que era o cantor oficial do bloco, e foi para o disco com o nome O Mais Belo dos Belos. "Todo mundo queria estar naquele disco e então eles pegaram um trecho da música de Guiguio e a música inteira de Adailton Poesia e Valter Farias", declara Adailton.

Independência

O Ilê, que estreou no Carnaval no mesmo ano em que Angola, Cabo Verde e Moçambique tornaram-se independentes de Portugal, criou a tradição de falar de temas africanos nos seus desfiles. Para este ano, o tema escolhido foi o Quênia. A decisão por esse assunto motivou a esteticista Shirley Kayala, que nunca tinha participado do festival, a inscrever uma canção.

Shirley Kayala
Shirley Kayala | Foto: José Simões/Ag A TARDE

Irmã de um percussionista do Olodum, tem uma forte ligação com a música. "Eu cresci em meio a tambores, tudo isso é muito pulsante na minha vida", afirma a esteticista. Tímida, Shirley sempre gostou de transcrever seus sentimentos e musicá-los. Um dia, a menina que sonhava em ser psicóloga ou dançarina e julgava não ter talento para a música foi incentivada por uma prima que a viu cantar e passou a se apresentar, ainda criança, em festas da família. Na adolescência, Shirley entrou para um bloco afro chamado O Farol da Bahia. "Foi um aprendizado incrível, tinha muita similaridade com o balé folclórico", afirma a esteticista.

Shirley, que também cantava rap, deixou a música de lado e abriu um salão de beleza ao lado de sua casa, na região do Cabula, mas passou a se interessar por culturas africanas, como a Suaili, presente no Quênia, na Tanzânia e em Moçambique. "Assim que eu vi o tema desse ano do Ilê, eu fiquei muito apaixonada. Eu estava afastada da música, mas tive aquele faniquito de querer participar", conta a compositora, que ficou em terceiro lugar na categoria música-tema com Ilê Kenya Watu Weusi. Em suaili, watu weusi significa povo preto ou pessoas negras.

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