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SETEMBRO AMARELO

Crises de pânico, ansiedade e desânimo: artistas relatam o peso de viver da música

Não são raras as histórias de depressão, ansiedade e dependência química que atravessam a vida de músicos

Beatriz Santos

Por Beatriz Santos

29/09/2025 - 11:40 h
Músicos e especialistas defendem que é urgente abrir espaços para diálogos abertos sobre saúde mental na indústria musical
Músicos e especialistas defendem que é urgente abrir espaços para diálogos abertos sobre saúde mental na indústria musical -

A música que consola e agita milhões ao redor do mundo, muitas vezes, é produzida por artistas em silêncio profundo com a própria dor. Entre a euforia dos fãs e os aplausos, não são raras as histórias de depressão, ansiedade e dependência química que atravessam a vida de músicos mundialmente conhecidos, como Avicii, Amy Winehouse e Chester Bennington, o que escancara uma realidade preocupante na indústria musical.

Até mesmo artistas consagrados convivem com transtornos psicológicos, muitas vezes agravados pelo isolamento, pelo medo do esquecimento e pela pressão constante de se reinventar, provando que fama e reconhecimento não imunizam ninguém contra o sofrimento psicológico. Na Bahia e no Brasil, nomes de gêneros diversos como Simaria, Alinne Rosa, MC Daniel, Karol Conká, Wesley Safadão e a dupla Zé Neto e Cristiano já chegaram a se afastar dos palcos para cuidar da saúde mental.

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O órgão francês Insaart, que oferece apoio psicológico a artistas e técnicos, aponta que 72% dos músicos entrevistados apresentaram sinais de depressão, enquanto a média da população geral é de apenas 12%. Já uma pesquisa conduzida na Austrália pelos especialistas Dianna T. Kenny e Anthony Asher revela que uma carreira musical pode reduzir em até 20 anos a expectativa de vida. No Brasil, o tema também é estudado, ainda sem números exatos, em instuições de ensino como a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

As razões são múltiplas: pressão constante por desempenho e relevância, exposição pública intensa, instabilidade financeira, jornadas irregulares em turnês, falta de segurança trabalhista e, em muitos casos, o consumo de álcool ou drogas para suportar o ritmo.

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Diante desse cenário, músicos e especialistas defendem que é urgente abrir espaços para diálogos abertos sobre saúde mental na indústria musical. A música, embora seja uma poderosa ferramenta terapêutica para muitos, pode se transformar em gatilho quando aliada à pressão do mercado, é o que pontua a psicóloga e neuropsicóloga Andrea Carvalho.

"O glamour da indústria musical é como aquele filtro do Instagram. Mostra só o lado iluminado, mas esconde o peso por trás. O artista acaba vivendo mergulhado nesse descompasso entre o que sente de verdade e as expectativas irreais, tanto as que ele mesmo cria, quanto as que o público projeta. É a lógica do parecer bem”mesmo quando, por dentro, está em pedaços. Essa pressão para ser sempre forte ou inspirador anula a dor real, e essa invalidação constante vai deixando marcas. Psicologicamente, isso gera sintomas e um enorme abismo entre a vida pública e a privada, o que na TCC (Terapia Cognitivo-Comportamental) a gente chama de distorções cognitivas".

A rotina da vida artística, que inclui turnês irregulares e a pressão de palco, contribui para comportamentos autodestrutivos, lembra Andrea.

A rotina de muitos músicos envolve noites sem sono, má alimentação, pressão constante, além do uso de drogas e álcool como válvula de escape e até isolamento social. Tecnicamente, chamamos isso de comportamentos de regulação mal-adaptativos: estratégias que até aliviam a dor no curto prazo, mas encurtam a vida no longo prazo. Sem suporte psicológico, esses fatores se acumulam e comprometem de forma severa a saúde física e mental
Andrea Carvalho - psicóloga e neuropsicóloga

“Sempre preciso produzir mais e mais”

Em entrevista exclusiva ao Portal A TARDE, a vocalista e guitarrista Mariana Alencar Nascimento, da banda de hardcore baiana Cobra de Coleira, detalhou como a pressão constante e a falta de retorno financeiro afetam sua saúde mental e sua motivação.

“Constantemente me sinto pressionada principalmente em relação à necessidade de estar sempre produzindo e correndo contra o tempo, o que acaba gerando ansiedade”, disse.

Mariana Alencar atualmente cursa licenciatura em música na Universidade Católica do Salvador
Mariana Alencar atualmente cursa licenciatura em música na Universidade Católica do Salvador | Foto: José Simões | Ag. A TARDE

Mariana, que atualmente cursa licenciatura em música na Universidade Católica do Salvador (UCSal), aponta que o problema é amplo: “Impacta principalmente financeiramente pois é difícil manter um sonho sem retorno, porém, temos consciência que o início de muitos projetos musicais são assim”.

Buscamos correr atrás o máximo possível, tentando não deixar que a desmotivação vença. A saúde mental fica muito abalada com a ansiedade que a instabilidade financeira causa
Mariana Alencar Nascimento - Integrante da banda Cobra de Coleira

Segundo Mariana, o cansaço é inevitável: “Organizar um show gera cansaço e vai muito além de simplesmente chegar e tocar. Além disso, ainda não existe um retorno financeiro real, basicamente gastamos muito mais do que ganhamos, principalmente por sermos parte de bandas inseridas no rock underground baiano. Isso tudo gera uma desmotivação".

Ela diz que sente como se tivesse que produzir o tempo inteiro para reduzir a pressão e ter mais reconhecimento. “Afeta trazendo um sentimento de que nada é suficiente. Sempre preciso produzir mais e mais para ser vista e, assim, esperar um retorno, tanto artístico quanto financeiro, o que é extremamente instável".

Banda Cobra de Coleira
Banda Cobra de Coleira | Foto: José Simões | Ag. A TARDE

Outros dois músicos do underground baiano, que preferiram não se identificar, também falaram sobre a pressão emocional e financeira que acompanha a carreira independente. O mais velho, de 55 anos, recorda um episódio que marcou sua trajetória: “Uma vez, há uns dois anos, conseguimos um show num bar pequeno aqui de Salvador. Era uma chance de tocar fora do nosso círculo de amigos. Ensaiamos semanas, gastamos o que não tínhamos e quase ninguém apareceu. O dono do bar cortou o cachê pela metade porque disse que não teve consumo suficiente. Voltei pra casa arrasado, com a sensação de que todo esforço tinha sido em vão".

A idade e a falta de visibilidade, afirma, agravam o desânimo: “Quando eu era mais novo, tinha aquela chama de que ‘um dia vai dar certo’. Mas com 55 anos, sinto que as portas estão cada vez mais fechadas. O mercado valoriza a juventude, a novidade. Você começa a se perguntar se ainda tem espaço".

Guitarrista da banda Cobra de Coleira, Fernando Mendes
Guitarrista da banda Cobra de Coleira, Fernando Mendes | Foto: José Simões | Ag. A TARDE

Ele revela sintomas emocionais severos, agravados pelo tabu. “Sinto sintomas claros: insônia, crises de choro e uma sensação constante de peso no peito. Tem dias em que me levanto sem vontade de nada, nem de ouvir música. E, na minha geração, muita gente ainda acha que isso é frescura ou falta de força".

O segundo músico, de 35 anos, descreve como a pressão e a instabilidade culminaram em uma crise de pânico. “Pouco antes de subir ao palco, tive uma crise de pânico pesada. As mãos tremiam, faltava ar e foi ali que percebi que o peso emocional estava me destruindo".

Ele observa que a comparação com outros artistas potencializa o desgaste emocional: “É como se você gritasse dentro e ninguém ouvisse. Eu estudo, ensaio, invisto cada centavo no meu trabalho, e ainda assim sinto que estou invisível. A internet piora muito isso. Você abre o Instagram e vê um músico da sua idade lotando casas de show, enquanto você tá tocando em um bar pequeno pra meia dúzia de pessoas. Não tem como não se comparar".

Baterista da banda Cobra de Coleira, Cauê
Baterista da banda Cobra de Coleira, Cauê | Foto: José Simões | Ag. A TARDE

As dificuldades financeiras, diz, também são um fator crítico. “Tem mês que eu faço três apresentações e penso que as coisas vão melhorar, e no mês seguinte não entra nada. Já atrasei contas básicas, já precisei pedir ajuda para comprar alimentos. E quando você está nessa tensão, é difícil até aproveitar o palco”, disse o artista.

Quando a música cura: benefícios terapêuticos e o poder da arte

Apesar das dificuldades, todos os artistas entrevistados reforçaram o papel da música como resistência. O músico de 55 anos resume: “A música é, talvez, o único motivo de eu ainda estar aqui. Ela me dá um propósito, mesmo quando o resto parece desabar. Quando alguém se identifica com uma letra nossa, isso me lembra que minha existência tem algum impacto".

Mariana Alencar também diz que vê o outro lado da moeda e por vezes, usa a música como terapia:

Eu tenho o hábito de, sempre que estou passando por um momento ruim, escrever sobre isso — criando um poema e, posteriormente, uma música. Ela me ajuda a entender meus sentimentos e a melhor forma de lidar com eles e, mais especificamente, me ajuda muito a aliviar os meus sintomas de ansiedade.
Mariana Alencar Nascimento - Integrante da banda Cobra de Coleira

Para a cantora baiana AnaLuz de Verdade, a música virou um instrumento poderoso de reconstrução emocional. Após enfrentar perdas familiares e sobrecarga emocional, ela chegou a um ponto de ruptura: “Entre o fim de 2019 e 2020 eu comecei a ter ideações suicidas e quando esse pensamento começou a ficar mais constante, eu percebi que precisava de ajuda e busquei terapia".

Antes desse período, a artista havia se afastado da música, sobrecarregada por rotinas profissionais desgastantes e lutos sucessivos. Mas, na terapia, uma vivência simbólica a reconectou com sua essência.

Para a cantora AnaLuz de Verdade, a música virou um instrumento poderoso de reconstrução emocional
Para a cantora AnaLuz de Verdade, a música virou um instrumento poderoso de reconstrução emocional | Foto: José Simões | Ag. A TARDE

“A terapeuta pediu que eu me encontrasse com a Ana criança. Nesse exercício, a criança me guiou pro palco, num teatro muito bonito. Ali eu entendi que me reconectar comigo passaria pela música”, disse.

O ponto de virada foi quando eu estava conversando com uma amiga que estava passando por um processo parecido e da nossa conversa eu compus uma música que era, na verdade, uma carta do resumo do que eu tinha aprendido até àquele momento. Nesse momento eu percebi que eu tinha um discurso importante a comunicar ao mundo através da minha voz
AnaLuz de Verdade - Cantora

Esse reencontro não só a resgatou emocionalmente como redefiniu sua carreira. Hoje, AnaLuz prepara o show Luz Sobre Elas, um tributo às cantoras negras da MPB, com apresentações nos dias 5, 12 e 19 de novembro, no Teatro Gamboa, em Salvador. O espetáculo é, para ela, um ato de cura e também de resistência cultural.

AnaLuz prepara o show Luz Sobre Elas, um tributo às cantoras negras da MPB
AnaLuz prepara o show Luz Sobre Elas, um tributo às cantoras negras da MPB | Foto: José Simões | Ag. A TARDE

O impacto terapêutico da arte, diz AnaLuz, está na capacidade de transformar dor em sensibilidade.

Cantar sempre foi uma forma de extravasar as emoções, inclusive aquelas que eu não tinha consciência que estavam ali. A composição chegou como uma atividade terapêutica de parar, refletir, tomar consciência das emoções. Aos poucos, fui percebendo que as composições tocavam as pessoas e vi a necessidade de falar disso através da música, como forma de reumanizar as relações.
AnaLuz de Verdade - Cantora

Além da experiência pessoal de artistas como AnaLuz e Mariana, especialistas confirmam que a música é um recurso clínico relevante, também através da musicoterapia, que pode, inclusive, ser adotada pelos próprios profissionais da música.

O enfermeiro e musicoterapeuta Vinícius Santana, que atuou por dez anos na oncologia antes de se dedicar integralmente à área, lembra que a musicoterapia não se limita ao simples ato de ouvir canções. “Essa abordagem terapêutica utiliza a música como principal instrumento de intervenção, mas não só a música, como também os sons e o silêncio. Seu objetivo é sempre levar qualidade de vida, de maneira multifatorial”, diz.

Esse processo, afirma ele, é planejado, científico e individualizado. “A música dentro da intervenção pode ser usada para o relaxamento, porém antes disso é necessário uma avaliação e a coleta do ISO do paciente, que é a sua identidade sonora. Com isso, as músicas e os sons serão utilizados de forma correta, conforme a história musical dessa pessoa. Ouvir uma música para relaxar pode ter um efeito terapêutico, porém não será uma intervenção de musicoterapia”, explicou.

Ele diferencia o papel do músico do papel do paciente durante uma sessão de musicoterapia:

A única diferença é que o músico saberá tocar o instrumento e, se ele tocar o instrumento for terapêutico, poderá ser uma abordagem. Mas o objetivo é na saúde e não na arte. Desta forma, ali se tem um paciente em busca de algum resultado para sua qualidade de vida, não um músico que utiliza a música como arte. Musicoterapia é saúde
Vinícius Santana - musicoterapeuta

A psicóloga Andrea Carvalho alerta que o corpo sempre envia sinais antes que a situação se agrave, como "dificuldade de dormir, viver cansado, perder o interesse até na música, começar a evitar pessoas ou precisar de álcool ou outras substâncias para relaxar". O músico deve "romper o tabu de que pedir ajuda é fraqueza. Pelo contrário: é habilidade".

"A psicoterapia é como uma caixa de ferramentas: dá recursos para reestruturar pensamentos, aprender a regular emoções e construir uma vida que valha a pena ser vivida", completa a especialista. A musicoterapia também é vista por ela como um auxílio valioso: "arrisco dizer que é quase como devolver a música ao artista, mas em um espaço seguro e sem cobrança".

Por fim, a responsabilidade de mudança deve ser compartilhada pela indústria e pelo público:

"Temos uma longa caminhada pela frente, porque isso exige uma verdadeira mudança cultural e de paradigma". Andrea sugere que "casas de show e gravadoras podem incluir cláusulas de saúde mental nos contratos, oferecer acompanhamento psicológico e respeitar os períodos de descanso dos artistas".

Já para o público, a dica é: "pode parar de romantizar a figura do artista que 'se destrói pelo palco' e aprender a valorizar também quem cuida de si." A psicóloga conclui: "O que precisamos é criar ambientes validantes porque quando o contexto reconhece a dor, a mudança se torna possível. E esse apoio coletivo pode ser tão transformador quanto a própria música".

Se você ou alguém que você conhece está passando por sofrimento emocional, ligue 188 para o Centro de Valorização da Vida (CVV) ou procure um profissional de saúde mental.

*Sob supervisão da editora Bianca Carneiro

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