ARTE
Samba quilombola ganha o mundo em álbum histórico da Quixabeira
Quixabeira da Matinha leva o samba de roda às plataformas digitais

Por Maiquele Romero*

Antes de se tornar faixa, álbum ou catálogo digital, o samba de roda é chão batido, corpo em giro, canto que se aprende vivendo.
Nascido no Recôncavo Baiano e reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, ele articula música, dança, poesia e ritual, em uma estrutura própria: o canto antecede a dança, o coro responde ao cantador, a viola machete, as palmas e a percussão sustentam histórias de trabalho, fé, festa e resistência.
É desse chão que nasce Vencedor de Batalhas, álbum do grupo Quixabeira da Matinha, lançado no último dia 13 e que agora amplia a circulação do samba quilombola da Matinha dos Pretos para o circuito global da música.
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Primeiro disco do grupo a chegar às plataformas digitais, o álbum marca um novo momento para a Quixabeira, que há 37 anos atua na preservação e difusão do samba de roda em Feira de Santana. Mais do que um lançamento, trata-se de um gesto simbólico de ocupação, da memória ancestral ao ambiente digital.
Formada na comunidade quilombola da Matinha dos Pretos (em Feira de Santana), a Quixabeira construiu sua trajetória a partir de um repertório vasto, transmitido há gerações.
Revisitar esse acervo para transformá-lo em álbum exigiu escolhas difíceis. “Imagine aí, num mundo de quase 100 composições de samba de roda”, diz Guda Quixabeira, sambador, compositor e intérprete. A decisão, segundo ele, foi coletiva, envolvendo todos os integrantes, além da direção musical compartilhada com Lore Cerqueira e da curadoria conduzida ao lado da mestra Chica do Pandeiro.
O resultado são 12 faixas que reúnem 24 composições, transitando entre samba chula, samba corrido, ijexá, batuque soletrado e boi de roça. A diversidade rítmica traduz a complexidade cultural da Matinha, onde o samba de roda se entrelaça com a vida cotidiana, o trabalho na roça, as festas religiosas e os rituais de matriz africana e católica.
Vencedor de batalhas
O título do álbum condensa uma história longa de enfrentamentos. Para Guda, Vencedor de Batalhas não é uma metáfora vaga, mas referência direta às lutas travadas pelo quilombo ao longo do tempo. Entre elas, a disputa pelo reconhecimento da autoria de Alô meu Santo Amaro, por Coleirinho da Bahia, pai de Guda e um dos grandes mestres do samba de roda da região.
É também por isso que o disco se constrói como homenagem. “Esse trabalho é uma homenagem a meu pai, Coleirinho da Bahia, e a todo seu legado; e dedicado à minha mestra, Chica do Pandeiro, guardiã de tantos saberes da cultura popular”, afirma Guda. A dimensão afetiva orienta artisticamente o álbum e se transforma em narrativa coletiva de luta e continuidade.
Samba sempre político
Gravar esse repertório, para a Quixabeira, é um gesto político em múltiplas camadas. Desde a aprovação em editais públicos até a escolha das músicas, tudo passa por processos de diálogo e decisão coletiva. Mas a política está, sobretudo, nas letras.
“O próprio repertório da Quixabeira é um fazer político”, diz Guda, ao lembrar que as canções falam do viver na roça, das relações comunitárias, das religiões de matriz africana e do catolicismo, em permanente diálogo sincrético.
Esse sincretismo aparece com força na faixa-título, que o sambador define como uma oração, e em Viola Encantada, que narra a relação espiritual de Coleirinho da Bahia – Pai Marcos no Terreiro Marinheiro de Umbanda – com seu encantado e a viola que o acompanhava.
O álbum foi lançado, inclusive, no dia 13 de dezembro, data celebrada na Umbanda como o Dia dos Marinheiros, linha espiritual ligada às águas, superação e proteção.
O sincretismo também se materializa na capa do disco. “[Na capa] você vê os pés com uma percata de couro, juntamente com o pandeiro e uma conta da mistura de Ogum com Oxóssi e um texto ali para ressaltar todas as questões do catolicismo, para também lembrar da mãe de Jesus, Nossa Senhora”, descreve Guda.
O pandeiro, segundo ele, traz a força do samba de roda, todos os elementos juntos evocam a força, a raiz e a cultura ancestral do grupo.
Quilombo às plataformas
Levar o samba de roda às plataformas digitais significa, para o grupo, ampliar sua escuta. “A esperança é que o samba de roda chegue para todos”, afirma Guda, ao destacar a dimensão de conquista desse novo circuito.
Se na Matinha o samba é vivido no cotidiano, nas casas, nas noites de reza, nas rodas comunitárias, fora dela ele passa a circular também em shows, praças públicas e, agora, nos fluxos digitais que atravessam redes sociais e aplicativos de música.
A distribuição pelo selo coletivo Casa das Águas 75 aponta caminhos para outros grupos tradicionais do interior da Bahia.
“Distribuir esse álbum nas plataformas musicais contribui para que as nossas tradições se mantenham vivas e em diálogo com novos públicos, fortalecendo a história e a cultura da nossa amada Feira de Santana”, afirma Lore Cerqueira, fundadora do selo, produtora musical e coordenadora geral do projeto.
Gravado no estúdio quilombola da Casa do Samba Dona Chica do Pandeiro, após uma residência musical de 12 meses na comunidade, Vencedor de Batalhas não se limita a registrar canções.
Ele condensa décadas de história, espiritualidade e resistência em um objeto sonoro que agora circula para além do território onde nasceu. Sem perder o vínculo com a roda, o álbum projeta o samba da Matinha para o mundo, como memória viva, em movimento, e em permanente estado de luta.
A produção e lançamento viabilizados por projeto contemplado em edital da Lei Paulo Gustavo, Ministério da Cultura, Governo Federal, através da Prefeitura de Feira de Santana, Secretaria Municipal de Cultura, Esporte e Lazer.
*Sob supervisão do editor Chico Castro Jr.
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