Analistas abordam possíveis efeitos no Brasil de vitória de Milei | A TARDE
Atarde > Política

Analistas abordam possíveis efeitos no Brasil de vitória de Milei

Vencedor das primárias, deputado de extrema-direita promete acabar com Banco Central do país

Publicado domingo, 20 de agosto de 2023 às 00:00 h | Autor: Lucas Franco
Vencedor das primárias, Javier Milei concorrerá com Sergio Massa, Patricia Bullrich, Juan Schiaretti e Myriam Bregman
Vencedor das primárias, Javier Milei concorrerá com Sergio Massa, Patricia Bullrich, Juan Schiaretti e Myriam Bregman -

Atualmente presidida por Alberto Fernandéz, quadro político historicamente ligado ao clã Kirchner, a Argentina está a pouco mais de dois meses do primeiro turno da sua eleição presidencial.

A vitória do candidato de extrema-direita Javier Milei nas primárias do país chamou a atenção não só da população local, mas do mundo, já que grupos políticos tradicionais ficaram para trás nesta votação que é obrigatória e define os candidatos que concorrerão ao pleito. Isso sem falar que Milei propôs acabar com o Banco Central e dolarizar a economia do país, duas das suas pautas que mais foram temas de discussão durante a semana.

Entre as preocupações no Brasil, estão a de que as relações comerciais com a Argentina poderiam mudar. Não é o que acredita o professor de Relações Internacionais da Unifacs, Henrique Campos de Oliveira. “Não sei se essa relação bilateral seria abalada, pois ela é dada por empresas e por um corpo burocrático que se conhece há muito tempo. A gente viu a experiência de Bolsonaro em tentar mudar do nada um corpo burocrático. Tentar colocar um terceiro secretário para ser um chanceler [Ernesto Araújo, demitido em 2021]”, analisa.

Uma possível mudança de rota, no entanto, não é descartada pelo professor de Administração Pública da Universidad de Buenos Aires, Alejandro Estévez. “Se Milei ganhar, vai privilegiar não tanto a integração com o Brasil, mas sim os interesses com Estados Unidos e Europa. Isso por conta de sua orientação ideológica. O mesmo que aconteceu com Bolsonaro, que quando chegou ao poder, desalentou o Mercosul”, discorre o professor argentino. “Um Lula que não está sendo tão pragmático como antes e um Milei ideologizado do lado da Argentina não é uma boa combinação”, conclui Estévez.

Leia mais: Clã Bolsonaro declara apoio a candidato que lidera na Argentina

Henrique e Alejandro concordam, porém, que atualmente Brasil e Argentina têm uma relação comercial muito boa. “A Argentina é um dos principais destinos comerciais do Brasil. É um parceiro muito importante também pela qualidade de sua importação. A gente exporta produtos com alto valor agregado para a Argentina. O termo de troca com a Argentina é muito melhor do que [o termo de troca] com a China e com os Estados Unidos. Obviamente devido à proximidade e por serem dois países de economia grande”, reflete Henrique Oliveira.

Período de campanha

Na medida em que o dia 22 de outubro se aproxima, a disputa por votos deverá se intensificar. Além de Milei, concorrem ao pleito Sergio Massa, Patricia Bullrich, Juan Schiaretti e Myriam Bregman.

Até o momento, não há nos candidatos qualquer posicionamento que indique uma mudança de rota nas relações comerciais com o Brasil, é o que afirma o presidente da Câmara de Comércio Argentino Brasileira (Camarbra), Federico Servideo. “A campanha está muito doméstica. Ou seja, os candidatos olharam muito para o público interno e realmente fizeram poucas propostas ou declarações concretas sobre a relação bilateral [entre Argentina e Brasil]. Então, o que podemos imaginar tem um certo tom especulativo”, opina Servideo.

Para o presidente da Camarbra, independentemente do resultado eleitoral, a prioridade para quem lida com a relação bilateral entre Brasil e Argentina é uma solução para o desequilíbrio macroeconômico que a afeta a Argentina. “A relação comercial entre os dois países é complexa, porque é difícil importar e exportar daqui [do Brasil] para lá [Argentina]”, alega Servideo, que aponta as limitações para fazer os pagamentos com as importações e os problemas no tipo de cambio como fatores que dificultam a relação bilateral.

“Nossa Câmara de Comércio é uma câmara privada, apolítica e apartidária. Por isso há oitenta anos estamos aqui no Brasil”, afirma Servideo, que enxerga que o sucesso da Argentina depende da boa relação comercial bilateral com o Brasil. “Nosso papel é ajudar os nossos associados a desenvolver e incrementar a relação bilateral e o comércio entre esses dois países. Trabalhamos todo dia para isso”, conclui.

Propostas de Milei

Duas das propostas de Milei que mais ganharam destaque, o fechamento do Banco Central e a dolarização da economia do país têm tido adesão de boa parte da população, afirmou o professor Alejandro Estévez. “As pessoas que tem dinheiro na Argentina guardam dólares. Os setores mais baixos que tem algum dinheiro extra também juntam dólares”, disse o professor de Administração Pública da Universidad de Buenos Aires.

As reações do mercado ao resultado das primárias, para Estévez, não refletem apenas uma rejeição a Milei. “Tem a ver com as incertezas que se vê no mundo político argentino. Não se trata apenas de temas econômicos”, afirma.

Henrique Oliveira alega que o que poderia mudar na relação bilateral entre os dois países sul-americanos, caso Milei vença a eleição e coloque em prática estas suas duas ideias, beneficiaria o Brasil. “Com o amadurecimento do Banco Central do Brasil, os investidores poderiam dizer ‘vixe, eu vou investir é no Brasil, em que eu tenho mais segurança jurídica e é mais estável do que a Argentina’”, acredita Henrique.

Riscos para a democracia

Os professores Henrique e Alejandro não acreditam que uma possível vitória de Milei poderia trazer riscos de rompimento do regime democrático. Ambos alegam que, diferentemente de países sul-americanos como Brasil, Peru, Bolívia e Paraguai, a Argentina acertou as contas com o seu passado. A vice de Milei, Victoria Villarruel, é filha de um militar que participou de operação de combate a guerrilheiros que lutavam contra a ditadura.

“A Argentina deu uma resposta [aos militares que cometeram crimes durante a ditadura]. Se você assistir ‘Argentina, 1985’, você vê que os caras deram a solução na janela de oportunidades. O Ministério Público conseguiu uma janela de oportunidades para dar uma resposta e frear qualquer aparelhamento e colocar limite”, afirma Henrique, sobre o filme estrelado por Ricardo Darín, que concorreu ao Oscar de filme internacional este ano (perdeu para o alemão “Nada de Novo no Front”) e que narra o processo que levou militares à prisão pelos crimes cometidos durante a ditadura.

Alejando Estévez reforça que mesmo duas profundas crises econômicas, a atual e a da década de 1990, não levaram riscos à democracia da Argentina, e cita os motivos para a estabilidade política do país. “Os militares na Argentina se foram com uma derrota militar externa. Nesse sentido, há um aprendizado muito profundo de não voltar ao passado autoritário”, conta.

“Haveria problemas se fosse iniciada a negação dos julgamentos dos militares. Se fossem revisados os julgamentos que aconteceram, isso sim poderia ser problemático. Mas o militarismo na Argentina não existe mais. É uma sociedade civil a cargo da democracia. A democracia argentina é bastante estável e mostra indicadores de confiança maior que os dos outros países da América Latina”, conclui o professor da Universidad de Buenos Aires.

Publicações relacionadas