Mulheres trans relatam vivências de lutas e buscas por reconhecimento | A TARDE
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Mulheres trans relatam vivências de lutas e buscas por reconhecimento

Ao Portal A TARDE, entrevistadas destacaram a falta de empregabilidade e a transfobia que as rodeiam

Publicado quarta-feira, 29 de março de 2023 às 06:30 h | Atualizado em 08/05/2023, 12:56 | Autor: Isabela Cardoso
Da esquerda para a direita, Liz Almeida, Tertuliana Lustosa e Laís Ferreira
Da esquerda para a direita, Liz Almeida, Tertuliana Lustosa e Laís Ferreira -

Enquanto o mês de março é um momento para celebrar as conquistas das mulheres e alertar sobre as violências domésticas, é importante questionar se todas elas estariam realmente tendo os seus direitos garantidos. Para as mulheres trans, continua sendo mais um período de luta por reconhecimento e combate à transfobia.

Segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), a expectativa de vida de pessoas trans e travestis é de apenas 35 anos. A Antra ressalta ainda que o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo. Em 2020, foram registrados 175 assassinatos de pessoas trans no país, um aumento de 41% em relação ao ano anterior.

Em entrevista ao Portal A TARDE, mulheres trans relataram sobre suas vivências e conquistas, a falta de valorização dos seus trabalhos, as limitações de inserção na sociedade e, principalmente, a transfobia que ainda permeia toda a comunidade.

Nascida em Corrente (PI) e criada em Salvador, Tertuliana Lustosa é formada em História da Arte pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), mestranda em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e cantora da banda de pagode baiano “A Travestis”.

A artista publicou uma trilogia em que aborda suas vivências de vida em diferentes contextos. Um deles é chamado “Manifesto Traveco-Terrorista”, que busca gerar um impacto na sociedade justamente para as urgências do público trans e travesti. 

“Terrorismo poético é utilizado, por exemplo, pela Diana Torres, quando traz a questão pornoterrorismo para discutir essa pornografia normativa que gera uma série de misoginias para população feminina. Se o Brasil é o país que mais mata travestis no mundo, está tudo errado. O traveco eu uso como terrorismo, contra a aplicação dessa palavra, que não deve ser utilizada para referir a nenhuma pessoa. Está no diminutivo, sufixo eco. Quando a gente fala reco, qualquer coisa no sentido, é negativo e é no masculino. Nós, população travestis e mulheres transsexuais, não aceitamos o masculino como uma forma de nos tratar”, explicou a artista.

Tertuliana Lustosa é cantora da banda "A Travestis", formada em História da Arte e mestranda Cultura e Sociedade
Tertuliana Lustosa é cantora da banda "A Travestis", formada em História da Arte e mestranda Cultura e Sociedade |  Foto: Olga Leiria/ Ag. A TARDE
  

Por ser uma cantora de pagodão baiano, um cenário predominantemente masculino e sexualizado, Tertualiana também enfrentou impasses para conseguir um espaço de protagonismo. A mestranda contou sobre o impacto de ser uma artista que se impõe em um sistema capitalista.

"A gente vê a mulher nesses lugares bem definidos, que são mais sexualizados, onde estão gemendo, dançando, e não como a cantora, a criadora do som, ou seja, tocando os instrumentos. Isso é fruto de uma sociedade capitalista, que infelizmente induz esses lugares de não protagonismo das mulheres e reflete no pagodão. Foi muito difícil por isso e também pela minha postura anti-capitalista, com as performances que eu faço. Geram muita reação da galera que, em Salvador, muitas vezes está relacionada a frentes do poder de direita, são pessoas que muitas vezes não estão acostumadas com artista sendo anti-capitalista", comentou a cantora.

Laís Ferreira, esteticista e moradora do bairro da Canabrava, em Salvador, foi a primeira mulher trans a concorrer ao título de Deusa do Ébano 2023, do Ilê Ayê. Durante o momento que procurava reconhecer a própria identidade, a conquista a preencheu quando percebeu que seu público e sua comunidade se sentiram representados.

“Resolvi me incluir nesse processo de passar por um concurso que enaltecia não só a minha luta, que lutava pela minha existência enquanto mulher, enquanto trans, preta, periférica. Quando fui anunciada que era selecionada para participar de um concurso onde tem 42 anos de existência, meu público, minha comunidade, se sentiu muito representada. A intenção era justamente essa, fazer com que sejamos vistas, não invisibilizadas, mostrar que todos os dias os ciclos são para ser vividos e rompidos para almejar o melhor”, comentou Laís.

A soteropolitana Liz Almeida trabalha com maquiagem, alguns freelancers e chegou a participar de uma propaganda da Prefeitura de Salvador nas redes sociais sobre assistência à saúde para mulheres trans. Ela contou que seu processo de transição teve apoio psicológico no Centro Estadual Especializado em Diagnóstico, Assistência e Pesquisa (CEDAP), que possui o Ambulatório Transexualizador.

Liz Almeida mora em Salvador e trabalha com maquiagem
Liz Almeida mora em Salvador e trabalha com maquiagem |  Foto: Reprodução
  

"Inicialmente foi um processo difícil, até pra mim mesma, porque eram parâmetros sobre mim que eu custava a crer. Com o apoio psicológico que tive no CEDAP e apoio de amigos, fui compreendendo que não adianta fugir de quem você é. Aos poucos, fui refletindo sobre tudo aquilo e me identificando com minha verdadeira identidade", disse Liz.

O contexto social em que mulheres trans e travestis estão inseridas pode impactar o estado de vulnerabilidade desse grupo. Segundo a Antra, estima-se que 90% da população trans no Brasil, cerca de 4 milhões de pessoas, tem a prostituição como fonte de renda e única possibilidade de subsistência. 

Um dos principais pilares a serem debatidos nesse público é a empregabilidade. Tertuliana, por exemplo, quando saiu do Rio de Janeiro para Salvador, formada, não conseguiu emprego e começou a vender brigadeiro na praia da Barra. Com isso, seu negócio ficou famoso como "Brigadeiro da Lôra".

Laís contou que também não conseguia emprego e sempre precisou trabalhar para si mesma, seja com arte transformista, seja criando o próprio concurso de misses e até mesmo abrindo o próprio negócio.

“Sempre fecharam as portas, as empresas não contratavam mulheres Trans, não tinha mulher trans no mercado de trabalho. Por mais que tivéssemos capacitação, formação, era exclusão na certa. Está modificando, vejo empresas contratando especificamente pessoas transgêneros para então trabalhar e mostrar seu potencial. Mas nunca foi fácil, por isso decidi trabalhar para mim”, destacou a esteticista.

Laís Ferreira foi a primeira finalista trans do concurso Deusa do Ébano do Ilê Aiyê
Laís Ferreira foi a primeira finalista trans do concurso Deusa do Ébano do Ilê Aiyê |  Foto: Reprodução
  

A vida de cada pessoa trans possui um processo com realidades diferentes, mas com a mesma pressão social. Assim como Tertuliana e Laís, Liz também comentou sobre a dificuldade de conseguir um emprego fixo.

“Todas as entrevistas que fiz foram inclusivas, me receberam de forma respeitosa e agradável. Mas, infelizmente, percebo que existe uma retração em algumas empresas para contratação. Gostaríamos de oportunidades pelas nossas capacidades e talentos, pois temos capacidade para conseguir o que desejamos, o que ainda falta é abrir mais oportunidade”, disse Liz.

Apesar das enormes lacunas de políticas públicas de inclusão direcionadas a população trans e travesti, nos últimos anos houveram algumas conquistas oficializadas por lei. A criminalização da transfobia, o tratamento hormonal e a retificação do nome e gênero nos documentos civis, sem a necessidade de ação judicial, foram alguns dos reconhecimentos mais relevantes.

Segundo o advogado Nathan Lopes, toda instituição, seja pública ou privada, deve respeitar o nome social e o gênero do qual a pessoa se identifica. Caso não seja concedido, pode configurar crime de transfobia, sem prejuízo de indenização moral. Além disso, o profissional reitera ainda que também existem outros direitos que devem ser evidenciados.

“É possível citar a garantia de aposentadoria, adoção de crianças e adolescentes; registro de filiação de dupla paternidade/maternidade, procedimentos reprodutivos e a realização de procedimentos clínicos e cirúrgicos de acordo com a identidade autopercebida”, disse. 

O advogado Nathan Lopes fala sobre a saúde e os direitos do público trans
O advogado Nathan Lopes fala sobre a saúde e os direitos do público trans |  Foto: Rafaela Araújo/ Ag. A TARDE
  

Outra garantia ao público trans são os procedimentos cirúrgicos e acompanhamento profissional com psicologia e psiquiatria, tanto pelo SUS, quanto por planos de saúde, autorizados pela Portaria n. 2803/2013 do Ministério da Saúde (MS), pela Resolução n. 2265/2019 do Conselho Federal de Medicina (CFM) e também pelo Parecer Técnico 26/2021 da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

Leia mais: Mês da Visibilidade Trans: atenção integral à saúde ainda é desafio

Por que pautar mulheres trans no mês da mulher?

Debater sobre a pluralidade do universo feminino não focando somente na pauta cisgênera, como também no feminismo negro e no transfeminismo, é uma realidade a ser colocada em prática. É fundamental reconhecer os desafios que cada mulher passa e dar espaço a essas vozes, sem exceção.

Para Tertuliana, é necessário considerar a diversidade e a importância de incluir todas as narrativas, principalmente pela falta de visibilidade das mulheres trans e travesti dentro do feminismo. 

“Eu vejo vários festivais que foram feitos neste mês da mulher, apresentações falando da questão da mulher. Cadê alguma mulher trans nesses eventos do governo e da prefeitura? É muito feio que as mulheres trans estejam apagadas. Nós precisamos ter visibilidade assim como as mulheres cisgêneras, porquê, além de sofrer machismo e misoginia, a gente ainda sofre a transfobia e o apagamento dentro da própria militância. É muito difícil”, explicou a cantora.

Laís Ferreira também ressaltou a relevância do papel de agregar todas as temáticas do mundo feminino para que se tornem uma causa só. 

“Respeito e igualdade é, sim, válido ser dito, não apenas no mês da visibilidade trans ou no mês das mulheres. É somar com a temática e histórias sobre todo tipo de mulher, seja ela cis ou trans, em seu próprio mês. A importância é essa, não ter categorias ou separar, mas sim juntar, para então haver mais respeito e igualdade uma com as outras. Inclusive, que a sociedade possa enxergar sem espanto, porque não há nada de incomum nisso”, disse a esteticista.

Por fim, Liz comentou que a ênfase necessária para pautar mulheres trans está ligada à sobrevivência, respeito e acessos a espaços e direitos legais.

"Nós buscamos poder realizar uma retificação de documentos com dignidade, poder trabalhar dignamente qualquer profissão, sendo respeitadas. Ser atendida em qualquer ambiente com respeito. Então, o mês da mulher se soma às conquistas que obtivemos todos os dias. Um exemplo disso é que a retificação de documentos sem precisar ir na justiça, isso em 2018, pouco tempo considerando o fato que sempre existimos", concluiu.

No início deste mês, em pleno Dia Internacional da Mulher, o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) usou o momento de fala, na tribuna do plenário da Câmara dos Deputados, para fazer um discurso transfóbico. Na ocasião, o parlamentar utilizou-se de uma peruca para dizer que “se sente mulher”. Casos como esses, deixam explícitos a necessidade de fomentar as pautas sobre a transfobia urgentemente. 

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