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Violência nas escolas expõe desafio do cuidado em saúde mental

Especialistas de saúde e educação acreditam no acolhimento como forma de promover uma cultura de paz

Publicado domingo, 23 de abril de 2023 às 06:00 h | Atualizado em 08/05/2023, 14:31 | Autor: Rafaela Souza
Cuidado com a saúde mental de crianças e adolescente é indispensável para coibir a violência
Cuidado com a saúde mental de crianças e adolescente é indispensável para coibir a violência -

Diante da recente onda de ataques violentos em escolas do Brasil, a sociedade enfrenta o desafio de encontrar soluções que evitem o maior tensionamento no ambiente de ensino, que também é espaço importante para a formação do cidadão. Um dos caminhos apontados por especialistas é a prevenção dos casos através da promoção de uma cultura de paz e diálogo na comunidade escolar e familiar das crianças e adolescentes. A partir desta perspectiva, o cuidado com a saúde mental deve ser um fator indispensável para o entendimento desse cenário.

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Em entrevista ao Portal A TARDE, a psiquiatra Elisângela Oliveira avalia que a questão deve ser abordada de forma multidisciplinar tanto do ponto de vista da saúde mental quanto educacional. A especialista também destaca a importância da participação da família na formação do indivíduo.

"A atuação deve ser em conjunto com a escola nesse momento, estar atento aos discursos, o que eles estão falando sobre isso. Muitas vezes a criança ou o adolescente podem estar dando sinais que não estão sendo percebidos por familiares próximos. Talvez os familiares que não tenham muito tempo, mães solos que tem mais de um filho. Então, é importante disponibilizar um tempo para cuidar, escutar. A criança, o adolescente precisam ser escutados, antes até de olhar as redes é poder conversar, saber o que está acontecendo, o que estão pensando", pontua.

>>>VÍDEO: Série Violência nas Escolas - o que está por trás dos ataques

Além da escuta, a psiquiatra alerta para um olhar mais atento em relação ao conteúdo consumido pelos pequenos na internet, considerando o risco de acesso a páginas inadequadas e perigosas. 

"É preciso orientar porque há perigos nas redes sociais, por exemplo, que muitas vezes eles não conseguem identificar sozinho, até pela imaturidade. Não tem essa experiência do adulto de perceber que ali há perigo. Então, é importante passar a orientação, estar disponível para o diálogo para que a criança e o adolescente se sintam confortáveis para conversar. E a depender da idade, no caso dos mais novos, ter supervisão mesmo do que está sendo acessado", explica.

Quando acontece alguma violência na escola como as que a gente viu recentemente, toda a comunidade escolar sofre junto Camila Rodrigues, pedagoga
  

Segundo a especialista, o diálogo contínuo favorece a participação e confiança nas relações dentro e fora da escola. Ela acredita que a medida é importante para identificar alterações de comportamento e até a ocorrência de agressões, a exemplo do bullying. "É preciso estar atento aos sinais, qualquer mudança de comportamento, humor são pistas que os pais ou responsáveis podem observar", recomenda.

Com o objetivo de enriquecer o debate sobre as ameaças e os ataques nas unidades de ensino, o Portal A TARDE traz até a segunda-feira, 24, a série "Violência nas Escolas: o que está por trás dos ataques". Em cada matéria, que conta com produção audiovisual, o especial de quatro reportagens detalha os casos ocorridos no Brasil e na Bahia e traz uma discussão com especialistas sobre como prevenir novos episódios.

Assistência

A psiquiatra aponta que, ao observar mudanças no comportamento das crianças e dos adolescentes, a busca por atendimento de profissionais de saúde mental não deve ser negligenciada.

"Muitas pessoas podem banalizar que pode melhorar com força de vontade, não reconhecem que a questão pode estar envolvida com um adoecimento e que precisa de um suporte de profissionais de saúde. Então, é importante levar a uma psicóloga, psiquiatra, centros de atenção psicossocial, ambulatório de saúde mental para passar por uma avaliação adequada", aponta.

 

  

Além do cuidado da saúde mental dos estudantes, a especialista reforça a importância da assistência voltada aos profissionais de educação. "A equipe também fica fragilizada, eles precisam de suporte especializado. Precisamos falar também dos profissionais de educação. Não é o que se espera acontecer na escola. É um local para formação, brincadeiras e aprendizado. Mas se estamos com esse problema precisamos falar e combater", pondera.

A psiquiatra Elisângela Oliveira avalia que a questão deve ser abordada de forma multidisciplinar
A psiquiatra Elisângela Oliveira avalia que a questão deve ser abordada de forma multidisciplinar |  Foto: Olga Leiria | Ag. A TARDE

Sobre iniciativas voltadas ao cuidado da saúde mental de alunos, pais e comunidade escolar na capital baiana, as unidades básicas de saúde e de saúde da família promovem atendimentos especializados através de programas, como o Programa Saúde na Escola (PSE). Conforme a Secretaria Municipal de Saúde (SMS), a iniciativa tem como objetivo contribuir para a formação integral dos estudantes por meio de ações de promoção, prevenção e atenção à saúde, além do enfrentamento das vulnerabilidades que comprometem o pleno desenvolvimento de crianças e jovens da rede pública de ensino.

O município conta com dois Centros de Atendimento Psicossocial (CAPSia) voltadas ao público infanto-juvenil com demandas de transtornos mentais graves e persistentes que necessitam de intensificação de cuidados. Entre eles estão o CAPSia Liberdade, unidade localizada na rua Conde de Porto Alegre, no bairro do IAPI (Telefone: 3611-9011); e CAPSia Luis Meira Lessa, na rua Mangaloeiras, em Piatã (Telefones: 3202-1692 3611-7913).

Ainda de acordo com a pasta, as equipes destes CAPS são compostas por psicólogo, médico psiquiatra, médico clínico, assistente social, terapeuta ocupacional, enfermeira, educador físico, técnico de enfermagem e farmacêutico.

Já às demandas relacionadas a transtornos mentais leves e moderados, o atendimento pode ser oferecido pela Equipe Multidisciplinar de Atenção Especializada à Saúde Mental (EMAESM) – Multicentro de Saúde Carlos Gomes, na rua Carlos Gomes, no bairro Dois de Julho (Telefone: 3025-9600). A equipe é integrada por psicólogo, assistente social, médico psiquiatra, enfermeiro e técnico de enfermagem.

Atuação deve ser em conjunto com a escola nesse momento Elisângela Oliveira, psiquiatra
  

Acolhimento

O psicólogo e diretor do Instituto de Assistência Multidisciplinar Especializada (Iame), Rogério Costa, acredita que o cenário de violência nas escolas deve ser avaliado de forma mais abrangente para ajudar a 'criar uma sociedade mais justa e pacífica'. De acordo com ele, que também atua como psicoterapeuta, a questão traz um fenômeno complexo e multifacetado.

"Como profissional de saúde mental, minha posição é que devemos tentar entender as motivações por trás do comportamento violento, ao invés de simplesmente condenar a pessoa. Isso não significa que devemos desculpar ou minimizar a violência, mas sim que precisamos de uma abordagem mais compassiva e empática para lidar com as causas subjacentes do comportamento", aborda. 

Para o psicólogo, a condenação da violência é necessária do ponto de vista legal, mas não pode ser a única maneira de combater o problema. "A abordagem mais eficaz para prevenir a violência a longo prazo é abordar as questões sociais e psicológicas que levam a esse comportamento como: investir em educação, saúde mental, combater a desigualdade social e econômica, promover a justiça social e prevenir a radicalização", enfatiza.

O psicólogo Rogério Costa diz que a violência é um fenômeno complexo e multifacetado
O psicólogo Rogério Costa diz que a violência é um fenômeno complexo e multifacetado |  Foto: Olga Leiria | Ag. A TARDE
  

O especialista ainda afirma que "a ocorrência de um ataque em uma comunidade escolar pode ser uma experiência traumática e dolorosa para todos os envolvidos, causando uma variedade de emoções, incluindo medo, angústia e luto". A partir disso, o cuidado deve ser ainda mais cuidadoso e especializado.

"Para ajudar a comunidade escolar a lidar com essas emoções, é importante estabelecer um ambiente seguro e de apoio para que as pessoas se sintam à vontade para expressar seus sentimentos. Isso pode ser feito através de grupos de apoio, sessões individuais de aconselhamento ou atividades coletivas que encorajem a comunicação aberta e a expressão criativa, como arte ou música", recomenda.

Devemos tentar entender as motivações por trás do comportamento violento, ao invés de simplesmente condenar a pessoa Rogério Costa, psicólogo
  

Cultura de paz

Para a pedagoga e especialista em psicopedagogia, Camila Rodrigues, pensar na assistência à saúde mental é um passo para o estímulo e promoção da cultura de paz e redução do contexto de violência nas escolas. Para isso, a especialista afirma que a mudança desse cenário também depende de toda sociedade.

"Acredito que é importante que a gente entenda que quando acontece alguma violência na escola como as que a gente viu recentemente, toda a comunidade escolar sofre junto e a gente tem a necessidade de abordar essas questões como a saúde mental e emocional de professores que ficam abalados, dos estudantes, de toda comunidade. A gente precisa pensar esses pontos e resgatar precisamos educar para a cultura de paz. Esse é o caminho para conseguirmos resultados positivos. A gente precisa extrapolar as nossas salas de aula, é importante envolvermos mais a comunidade e a sociedade", justifica.

Pedagoga Camila Rodrigues defende promoção de cultura de paz nas escolas
Pedagoga Camila Rodrigues defende promoção de cultura de paz nas escolas |  Foto: Arquivo Pessoal
  

A especialista também aponta que a cultura de paz pode ser trabalhada por meio de intervenções pedagógicas e psicopedagógicas que envolvam a comunidade escolar, além da discussão voltadas ao combate do racismo e da violência em paralelo ao trabalho multidisciplinar de outros profissionais, como assistentes sociais e pesquisadores na área de educação.

“O caminho para mudar a realidade de violência nas escolas deve envolver ações e intervenções pedagógicas e psicopedagógicas que envolvam toda a comunidade escolar, que abordam temas como o racismo, mediação de conflitos envolvendo estudos de caso, entre outros aspectos que podem ser contemplados. Também é importante que tenhamos nas escolas mais acolhimento, uma escuta ativa, uma equipe multidisciplinar de atuação com psicopedagogos, psicólogos, assistentes sociais, pesquisadores na área de educação que podem contribuir muito para além da gestão e dos professores”, sugere.  

O professor e doutor em Educação e Contemporaneidade, Romilson Sousa, ressalta que para o enfrentamento da violência nas escolas também é importante repensar o atual modelo educacional. De acordo com ele, a escola não deve ser pensada apenas como um centro de ensino, mas sim de formação de cidadãos a partir do respeito das subjetividades das crianças e dos adolescentes.

“Uma solução é repensar esse planejamento escolar, o modelo educacional, a política educacional tanto no estado quanto no país, mas também na unidade escolar. A primeira questão é essa, introduzir esse projeto dimensões socioemocionais, socioafetivas, essa possibilidade de ensinar aos alunos mediar os conflitos, é um trabalho em equipe. É importante trabalhar essa necessidade de respeitar a diversidade, algumas características que são fundamentais”, afirma.

Professor Romilson Sousa afirma que a escola não deve ser pensada apenas como um centro de ensino
Professor Romilson Sousa afirma que a escola não deve ser pensada apenas como um centro de ensino |  Foto: Arquivo Pessoal
  

Além do destaque para os aspectos socioemocionais, o docente diz que a escola é um lugar para refletir sobre a cultura e realidade que estamos inseridos, como a discussão de temáticas culturais e sociais. Além disso, a redução de riscos de casos de violência pode ser desenvolvida a partir da orientação direcionada aos integrantes do ambiente escolar.

“É preciso que se pense e repense, mas é preciso também mudar a cultura social, a violência não é por acaso, ela é resultante de uma cultura do ódio, cultura armamentista, cultura da intolerância, da guerra que está presente no Brasil e no mundo. E que, principalmente nos últimos anos, no período eleitoral se agravou, se intensificou. Outro aspecto se refere às relações na comunidade escolar não só com os alunos, funcionários, professores, gestores, mas com toda aquela comunidade que que interage com a escola, além dos familiares e responsáveis. Nesse momento é importante também escutar essas pessoas e dialogar, orientar essas pessoas a saber como lidar com essas situações. Por exemplo, como um funcionário pode lidar com uma situação que pode gerar violência naquele ambiente? Como pode se antecipar, prevenir. É assim que se cria a cultura de paz”, complementa.

Estrutura

Mesmo com a relevância do cuidado com a saúde mental, o professor e mestrando em Educação, Iago Gomes, ressalta a necessidade de melhores condições de trabalho para os profissionais da rede pública de ensino na Bahia e em todo o Brasil. O educador, que leciona em turmas do ensino médio, considera o cenário delicado e aponta também o adoecimento dos professores diante dos ataques pelo país.

“As iniciativas voltadas ao cuidado da saúde mental tem que estar alinhada a melhores condições de trabalho e estudo. Isso gera uma exaustão muito grande em ter que ficar atento o tempo todo à possíveis ataques. E isso não se resolve só com psicólogos, porque vai ser mais um profissional que vai ser acarretado com mais responsabilidade. As responsabilidades com a saúde mental dos profissionais também devem partir da garantia de estrutura, de acesso”, argumenta.

Solução é repensar esse planejamento escolar, o modelo educacional, a política educacional tanto no estado quanto no país, mas também na unidade escolar Romilson Sousa, professor
 

O professor estende a preocupação para o acolhimento familiar em decorrência dos ataques no ambiente escolar. Para ele, a escola não pode ser considerada uma ‘ilha isolada’ e precisa da participação de todos em prol do combate à violência e discursos de ódio. Em contrapartida, o educador também chama a atenção para casos onde a violência é presente no ambiente doméstico.

“Infelizmente, muitos alunos vêm de um contexto de violência familiar e a gente não vai conseguir resolver apenas na escola. Isso requer melhores condições de trabalho, de estudo, porque um professor que não é valorizado, não é bem remunerado, ele vai adoecer e não vai conseguir dar conta. Temos professores com uma carga de planejamento muito alta. Então, como vamos conseguir discutir e identificar os elementos que podem causar violência e estragos na educação?”, questiona.

"Tem um provérbio africano que diz: ‘É preciso de uma aldeia inteira para educar uma criança”. E trazendo isso para a nossa realidade eu digo que a gente precisa de uma comunidade inteira para cuidar da escola. Não adianta a gente tratar a escola como uma ilha isolada porque ela é reflexo de tudo que a sociedade impõe e todas as contradições que estamos vivenciando. Se na sociedade estamos sendo submetidos ao uso irresponsável e desenfreado da tecnologia e o avanço de discursos de ódio é preciso pensarmos sobre isso na escola também. A escola pode contribuir de forma a pensar na humanização dos sujeitos sobre essa própria sociedade. Essa é a característica da escola e precisamos ter condições de trabalho para isso”, acrescenta.

Segurança

Após a onda de ataques a diversas escolas no país, incluindo a Bahia, algumas medidas vêm sendo desenvolvidas a fim de coibir a violência e ameaças no estado. Entre elas está a criação do Comitê Intersetorial de Segurança nas escolas e espaços educacionais pelo governo baiano. A iniciativa visa intensificar a segurança e favorecer a atuação voltada para a construção de ambientes sem quaisquer tipo de ameaças aos professores e estudantes.

O Comitê envolve diversos entes e organizações do poder público e da sociedade civil, para uma atuação colaborativa de políticas de segurança em unidades escolares. O grupo conta com a participação dos secretários de Estado e representantes de órgãos estaduais e das forças da segurança pública da Bahia.

Além da criação do comitê especializado, dois Projetos de Leis estão em trâmite na Assembleia Legislativa da Bahia (Alba) e Câmara Municipal de Salvador (CMS). Com objetivos semelhantes, as propostas preveem a instalação de detectores de metais nas instituições de ensino público do município e do estado. 

Agressões no ambiente escolar apresentam índices elevados no Brasil
Agressões no ambiente escolar apresentam índices elevados no Brasil |  Foto: Rafaela Araújo | Ag. A TARDE
 

Para o professor Iago Gomes, as medidas podem ser importantes para garantir a segurança da comunidade escolar neste momento mais conturbado em relação ao aumento dos casos. Entretanto, ele reitera que é necessário um olhar sensível tendo em vista diferentes realidades e condições nas escolas da Bahia.

“É uma questão delicada que pode funcionar de forma momentânea para conter essa onda de ataques, mas não vejo como algo que deva ser efetivado de forma permanente porque a partir do momento você cria uma outra lógica de, por exemplo, naturalizar a revista de mochila de crianças e adolescentes. Isso pode gerar um outro problema que é o autoritarismo. Acredito que funcionaria como uma medida emergencial, mas poderia ser uma proposta provisória para que a gente consiga lidar com o problema e ganhe tempo para desenvolver outras medidas de prevenção a longo prazo”, diz.

Iniciativas voltadas ao cuidado da saúde mental tem que estar alinhada a melhores condições de trabalho e estudo Iago Gomes, professor
  

O educador ainda fala do caráter emergencial da atuação da polícia em relação à ronda escolar e ao atendimento de denúncias causadas por possíveis ataques e ameaças. A partir disso, ele alerta para o cuidado em não criminalizar os estudantes no ambiente escolar.

“Sobre a polícia, em relação à ronda escolar, aos chamados de denúncia, é o trabalho dela e que tem a ver com a segurança pública, mas isso não pode ser um trabalho permanente dentro das escolas. A escola não é lugar de polícia, é importante falar de prevenção. Precisamos pensar como a polícia vai atuar nesse espaço, como vamos pensar a permanência de crianças, adolescentes periféricos. Então, são questões que precisam ser discutidas na sociedade para que a escola não seja essa redoma. A polícia deve garantir a segurança. E também pensar se essa medida pode ter um efeito reverso do que a gente espera que aconteça. O problema não está somente na presença de mais ou menos polícia, mas na origem do discurso de ódio A gente precisa ter a garantia de estrutura para prevenir os ataques e não somente punir”, completa.

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