BASTIDORES DA MORTE
Trabalhador supera a necrofobia e ganha a vida fazendo autópsia
Há 50 anos, Ruy trabalha no Instituto Médico Legal Nina Rodrigues, em Salvador
Por Andrêzza Moura

Para muita gente, lidar com a morte não é uma tarefa nada fácil. Aliás, para muitas pessoas, falar sobre este assunto ainda é um grande tabu. O medo de quem já partiu "dessa para uma melhor" e de tudo relacionado à morte, como por exemplo: cemitérios, velórios e caixões tem nome: necrofobia. Um temor explicado pela a Psicologia como sendo irracional e que pode estar associado a alguns fatores e crenças.
"A morte sempre foi e será um enigma para a humanidade, onde a religião tenta explicar e trazer respostas para tentar amenizar tais conflitos junto a psicologia. O medo dela também envolve o medo do desconhecido, medo da dor e sofrimento e medo do não existir, questão as quais o ser humano conflita", explicou o Gabriel Reis, psicólogo clínico.
O medo é uma emoção natural e inerente ao ser humano, emoção essa que ajudou o mesmo ao longo dos tempos frente a própria preservação da espécie, hoje, essa emoção pode ser prejudicial quando o excesso toma conta
Este já não é mais um problema na vida do funcionário público Ruy de Jesus, de 70 anos, que assim como uma grande parte da população, há alguns anos, também convivia com a necrofobia, até entender que a morte é um processo natural da vida e que quem já morreu não tem como lhe fazer mal algum. Agora, ele atua fazendo autópsia.
"Antigamente, quando eu era mais jovem e passava ao lado de uma funerária, saía correndo, não queria conta. Botava a mão no rosto e saía correndo", lembrou ele, ao revelar que, há 50 anos, trabalha como auxiliar de necropsia, no Instituto Médico Legal Nina Rodrigues (IMLNR), em Salvador. Antes, ele também foi auxiliar de rabecão - veículo que transporta os mortos.

Quando chegou ao IML, aos 20 anos, Ruy prestava serviço também no Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac) e, depois de algum tempo, precisou escolher entre os dois empregos e, por conta dos benefícios, optou em ficar no Nina Rodrigues.
"Felizmente, Deus me deu a permissão de parar onde eu estou. Para mim, é uma honra eu fazer aquele trabalho com respeito, com honestidade, ser apoiado por todos os médicos. Na realidade, temos que ter medo dos vivos, os mortos não fazem mal a ninguém, isso eu tenho certeza", afirmou o trabalhador.
Ao falar sobre o medo que muita gente ainda nutre dos mortos, o auxiliar esclareceu que não há motivos para isso e reafirma que tudo que se é dito a respeito de cadáveres assustando vivos não passa de boatos e invenções.
"Não tenho nada para contar, dizer que o cadáver já me pegou, já levantou... Isso é lenda. Quem conta isso não fala a verdade, é mentira. Eu, graças a Deus, quando eu saio do meu trabalho, do portão pra fora, eu já esqueci o que eu faço. Eu só lembro quando eu passo de fora pra dentro, que eu vou saber que eu vou ter que exercer aquela função", explicou de Jesus.
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Lembranças
Ruy conta que, durante todo esse tempo de trabalho no IML, muitos casos lhe chamaram a atenção. Mas, um, em específico, não sai de sua cabeça. "O caso que me chamou mais a atenção é quando eu trabalhava no Rabecão. Eu estava recente, novo, aí eu fui fazer um levantamento em Pirajá. Quando eu cheguei lá, eu encontrei uma criança com um livro debaixo de um ônibus, com a cabeça amassada. As rodas passaram por cima da cabeça. Nesse dia, realmente, eu tive que pedir força a Deus e ver que a realidade da vida e o que a gente encara vendo no dia a dia. Até hoje, eu tenho essa lembrança", recorda.
Diferentemente do que muita gente acredita, apesar dos longos anos de profissão e acostumado a ver de tudo dentro do IML, o auxiliar conseguiu preservar sua humanidade e ainda se compadece com alguns casos.
"Têm algumas lembranças dessa coisa de facção que tem hoje. Eles pegam o próprio ser humano e cortam em pedaços. E quando chega lá a gente tem que fazer um quebra-cabeça. Nós temos que costurar todinho, botar todo o emendadinho, todo arrumadinho, do jeito que ele estava. Tem que fazer. É triste, né?", questionou o profissional.
A profissão que o orgulha
Hoje, veterano na profissão, Ruy não esconde o orgulho do que faz e diz ter experiência de sobra para ensinar. "Ensino também, porque os que estão lá são todos novos, inclusive, têm os médicos também. Para mim, todo mundo é novo. Chamo eles de recrutas", contou ele, entre risos.
Quando perguntado se indicaria sua profissão, o auxiliar foi categórico ao dizer: "Essa é uma profissão diferente. Nem todo mundo tem 'peito', nem todo mundo encara. Se parar bem e analisar, vai ver que têm poucas pessoas que querem trabalhar com isso. Têm pessoas que olham para mim e perguntam quantos anos eu tenho lá [IML]. Eu digo: tenho tantos anos. Aí dizem: 'Rapaz, eu não quero exercer essa função que você tem por dinheiro nenhum. Para mim, não tem dinheiro para fazer aquilo [necropsia] ali'. Realmente, a gente tem que ter coração".
Para este Dia do Trabalhador, Ruy deseja apenas que as pessoas se respeitem, tenham mais empatia uns pelos outros e que ele não precise mais fazer autópsia em corpos vítimas da violência.
"O orgulho da vida é a morte. O ser humano tem que entender isso, ter mais um pouco de respeito, parar com essa violência desenfreada. Hoje, se mata por nada e não deveria ser assim, deveria todo mundo, todos nós, darmos as mãos", concluiu.
Tratamento para a necrofobia
"Freud dizia que o inconsciente não reconhece a própria morte — portanto, o medo da morte pode estar mascarado como outros sintomas, como ansiedade ou fobias. Para outros autores psicanalíticos, como Melanie Klein, a angústia de morte está ligada às fases mais primitivas do desenvolvimento psíquico", observou Gabriel Reis, psicólogo clínico.
Segundo ele, quando o medo for incapacitante e estiver interferindo na vida da pessoa, a saída é procurar ajuda de um profissional.
"Nesse sentido qualquer tratamento psicológico frequente a essas questões são necessárias quando o excesso do medo da morte começa a prejudicar e, ao sujeito, buscar ajuda com profissionais da saúde mental é imprescindível", finalizou.
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