Desigualdades e cortes de verbas desafiam combate à Aids | A TARDE
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Desigualdades e cortes de verbas desafiam combate à Aids

Dados do Ministério da Saúde mostram que a população negra é a mais afetada

Publicado quarta-feira, 07 de dezembro de 2022 às 06:00 h | Atualizado em 07/12/2022, 17:18 | Autor: Rafaela Souza
Uso de preservativos são importantes para a prevenção de doenças e infecções sexualmente transmissíveis
Uso de preservativos são importantes para a prevenção de doenças e infecções sexualmente transmissíveis -

As desigualdades socioeconômicas, de gênero, o racismo e a falta de acesso ao tratamento têm dificultado o combate da Aids no Brasil e no mundo, provocando o aumento de novas infecções pelo vírus HIV e impactando profundamente a meta de fazer a doença deixar de representar uma ameaça à saúde pública até 2030. O cenário alarmante é apontado pelo novo relatório 'Desigualdades perigosas', do Programa das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids), divulgado na última terça-feira, 29, às vésperas do Dia Mundial de Combate à Aids, em 1º de dezembro.

No Brasil, as desigualdades impactam a resposta ao HIV de diferentes formas. Dados do Ministério da Saúde mostram que a população negra é a mais afetada. Entre 2010 e 2020, houve uma queda de 9,8% na proporção de casos de Aids entre as pessoas brancas. No entanto, no mesmo período, entre pessoas negras, houve um aumento de 12,9%. A disparidade também foi vista em relação às mortes por doenças decorrentes da Aids. No período, houve uma queda de 10,6% na proporção de óbitos de pessoas brancas e o crescimento de 10,4% entre pessoas negras.

Cenário na Bahia

Em relação aos casos na Bahia, os números de casos de pessoas com HIV e Aids são preocupantes. De acordo com a Secretaria de Saúde do Estado (Sesab), em 2021, foram notificados 2.424 casos de HIV e 1.047 de Aids em adultos, que representam taxas de detecção equivalentes a 16,2 e 7,0 por 100 mil habitantes, respectivamente. 

Quanto aos casos em menores de cinco anos, foram registradas oito crianças com Aids. O total de gestantes diagnosticadas com HIV foi de 442 casos, o que representa uma taxa de detecção igual a 2,4 casos por 1.000 nascidos vivos. Em relação ao número de óbitos, no período de 2021, foram notificadas 685 mortes por Aids, o que representa uma taxa de mortalidade equivalente a 4,6 por 100 mil habitantes.

Ainda conforme a Sesab, os dados relativos a 2022 ainda são preliminares, mas apresentam um quantitativo expressivo em relação ao número de casos. Neste ano, foram registrados 1.818 casos de HIV, 793 casos de Aids e 493 óbitos por Aids. 

Para a coordenadora do Programa Estadual de Combate à Aids, Eleuzina Falcão, os dados deste ano ainda não correspondem a uma redução dos casos no estado. “Ainda não podemos dizer que os números de 2022 estão em queda, pois se trata de dados preliminares. Trabalhamos com bancos de dados que ainda levam um tempo para serem fechados. Somente no primeiro trimestre de 2023 que a gente vai ter todos os dados obtidos. Provavelmente, a gente vai se aproximar dos dados de 2021 ou até ultrapassar. Vale lembrar que apesar desse número em 2021, em 2020, nós tivemos uma queda no que a gente chama taxa de detecção de casos notificados por conta da pandemia”, afirma.

A coordenadora ainda reforça que “a doença permanece como um importante problema de saúde pública por conta dos números de casos e impacto socioeconômico”. Ainda segundo ela, o monitoramento dos dados é de extrema importância para a implementação e manutenção de políticas públicas voltadas à prevenção, ao diagnóstico e tratamento. Falcão pontua que, através dos números, é possível mensurar o comportamento da doença e a sua distribuição na população a partir de fatores como raça, cor, faixa etária, sexo e escolaridade. 

Assim como no contexto nacional, as desigualdades também são observadas no estado, principalmente no que se refere à população negra. “A gente precisa olhar como os números estão distribuídos na população. Isso é importante para direcionar as políticas públicas. Quando olhamos os dados de 2021, no quesito raça e cor, a gente tem mais de 50% dos casos em pessoas que se declaram pardas e pouco mais de 27% que se declaram pretas. Se juntarmos as pessoas pardas e pretas, temos mais de 77% de casos na população negra. Por isso, é importante observar os grupos e verificar as situações de maior vulnerabilidade para que a gente possa fazer a intervenção de uma forma mais incisiva”, ressalta.

Cortes no orçamento

Além das desigualdades sociais, a redução e cortes de verbas em programas do Ministério da Saúde para prevenir, controlar e tratar o HIV e outras infecções sexualmente transmissíveis é motivo de preocupação para pacientes, entidades e instituições de saúde. A medida, divulgada em outubro deste ano pelo governo federal e prevista para o orçamento de 2023, acende o alerta para o aumento da dificuldade de acesso e continuidade do tratamento de pessoas que vivem com o HIV e a Aids.

A coordenadora considera a medida preocupante e um retrocesso em relação aos avanços no diagnóstico e tratamento da população com HIV e Aids. “Estamos acompanhando essas medidas e há uma mobilização muito grande da sociedade civil, organizações não governamentais colocando na pauta e discutindo essa questão. Estamos na expectativa de que esses cortes sejam revistos. Neste momento, precisamos aprimorar as políticas públicas que já existem para continuarmos avançando”, disse.

O designer, fotógrafo e ativista pelos direitos de pessoas vivendo com HIV/AIDS e da Comunidade LGBTQIAP+, Ton Shübber, de 36 anos, recebeu o diagnóstico positivo para HIV há cinco anos. Desde então, é atendido em um dos Serviços de Atenção Especializada em HIV (SAE), em Salvador. Ele destaca a importância do acesso ao tratamento em uma unidade pública de saúde e da rede que criou através dos grupos de apoio que conheceu no local.

"No grupo de apoio, eu fui conhecendo outros ativistas. Eu não tinha a pretensão, queria falar sobre o meu trabalho, outras coisas do meu interesse. Mas eu entendi a importância de inspirar outras pessoas que vivem com o HIV", conta.

Ton Shübber é ativista dos direitos das pessoas que vivem com HIV/Aids
Ton Shübber é ativista dos direitos das pessoas que vivem com HIV/Aids |  Foto: Arquivo Pessoal

O ativista, que atua como voluntário em diversas ONGs e projetos na capital baiana, também aponta as dificuldades que já são sentidas pelos usuários do sistema de saúde, a exemplo da falta de infectologistas na rede municipal. Ele também teme que a redução no orçamento proposta pelo governo federal provoque um desmonte maior na assistência de pessoas com HIV e Aids.

“A gente vê uma capital como Salvador ter um esvaziamento da sua equipe médica. O que vem depois? Eu dependo de uma medicação de uso contínuo e se essa medicação for interrompida eu morro. A gente já tem tanta coisa para lutar e ainda tem essa preocupação. O médico é fundamental porque é a pessoa com quem eu vou lidar sobre o meu diagnóstico. Tem pessoas que só falam com o médico, só a equipe de saúde que sabe do diagnóstico, tratamento. Ele vai saber de detalhes que você precisa contar. Se você não tem essa referência, como vai se sentir cuidado?”, questiona.

Diagnóstico e tratamento

A Aids é uma doença crônica causada pela infecção do Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV), que danifica o sistema imunológico e a capacidade do organismo de se defender contra outras infecções. A partir dessa definição, a médica infectologista Clarissa Cerqueira destaca que nem todo indivíduo que contrai o HIV desenvolve a Aids, principalmente se estiver em tratamento.

"A Aids é a síndrome da imunodeficiência adquirida, é quando a pessoa adquire uma imunossupressão, uma imunidade baixa. E só chega nessa fase os pacientes que não estão tratando. Então, assim, após um tempo da infecção, tem que fazer teste para HIV uma vez por ano, na maioria das vezes a pessoa não tem sintoma e aí tem que ficar testando. O mais comum é o paciente não ter nenhum sintoma", explica.

A infectologista Clarissa Cerqueira destaca a importância da prevenção e tratamento
A infectologista Clarissa Cerqueira destaca a importância da prevenção e tratamento |  Foto: Raul Spinassé | Ag. A TARDE
  

Segundo a infectologista, a transmissão do HIV pode ocorrer através de relações sexuais sem preservativo, compartilhamento de seringas, além da mãe que transmite o vírus para seu filho durante a gravidez, no parto e na amamentação.

"Para a pessoa se infectar tem que ter contato com líquido com capacidade de transmissão através de uma forma de transmissão plausível. O que é isso e quais são esses líquidos? Então, os líquidos que podem transmitir HIV são: sangue, secreções vaginais, sêmen, que estão relacionados a transmissão via sexual, líquido amniótico, leite materno, líquor. Mas a questão é que não basta ter contato com esses líquidos sem uma forma capaz de transmissão, como um contato percutâneo, contato com a mucosa e pele não íntegra. Outros líquidos não são capazes de transmitir o HIV, como suor, lágrimas, urina, saliva", enfatiza.

Sobre a transmissão vertical, que é passada de mãe para filho, a especialista destaca que, com os avanços no tratamento, há formas de reduzir a circulação do vírus e, consequentemente, a transmissão para o bebê.

"Tem algumas medidas que a gente reduz muito a transmissão do HIV, a primeira delas e mais importante é que a mãe faça o teste e descubra se ela tem o vírus para começar o tratamento. Mas, pensando num outro quadro, onde a mulher não teve acesso a isso, a gente faz uma medicação para a gestante na hora do parto para controlar a replicação do vírus e, posteriormente, para o recém-nascido que vai evitar que ele se infecte.

Em relação ao tratamento, a infectologista ressalta a eficácia dos medicamentos e a redução dos efeitos colaterais. "Houve um avanço no tratamento, que hoje é bem tranquilo. Em relação ao que se tinha antes, eram vários medicamentos e muitos efeitos colaterais. Atualmente, o tratamento inicial é feito com dois comprimidos uma vez ao dia", pontua.

Conforme a Sesab, a testagem rápida para HIV, sífilis e hepatites virais está descentralizada para as unidades básicas de saúde dos municípios baianos e deve estar disponível para qualquer pessoa. Os testes e tratamentos são disponibilizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e possuem alta eficácia, permitindo melhor qualidade de vida e aumento da longevidade às pessoas que vivem com o HIV.

Prevenção

Para a infectologista, a prevenção do HIV é uma questão importante que deve ser abordada. A partir disso, ela cita a estratégia de prevenção combinada, a profilaxia pós-exposição (PEP) e a profilaxia pré-exposição (PrEP).

“Por isso, a gente fala muito sobre a questão da prevenção combinada, onde a pessoa se previne de uma forma mais global para evitar a transmissão de infecções e doenças sexualmente transmissíveis. Então, como é essa prevenção combinada? O uso de preservativo nas relações sexuais, testagem disponível para detecção, fazer vacina para o que tem vacina, como a Hepatite B. E para o HIV, em específico, ainda temos a PEP e a PrEP", aponta.

A PEP é a profilaxia pós-exposição que deve ser realizada até 72 horas após exposição sexual – violência sexual ou relação sexual consentida e/ou acidente com material biológico. O atendimento é considerado de urgência e pode ser feito em Unidades de Pronto Atendimento (UPAs).

Já a PrEP é a profilaxia pré-exposição que consiste na utilização de antirretrovirais por pessoas que não estão infectadas pelo HIV, mas que se encontram altamente vulneráveis ao vírus por manterem, com relativa frequência, relações sexuais desprotegidas, que implicam um risco substancial de infecção.

Trabalho social

A Instituição Beneficente Conceição Macedo (IBCM) funciona no bairro de Nazaré, desde 1989, com a missão de promover saúde, prevenção e assistência a pessoas que vivem com o HIV. Dona Conceição, fundadora do projeto que leva seu nome, atua com este objetivo há mais de 30 anos.

O local oferece apoio e suporte para famílias que vivem com o HIV e Aids e estão em extrema vulnerabilidade. Segundo o gerente administrativo, o padre Alfredo Doria, a IBCM atua em diversas frentes, desde a conscientização da prevenção ao acompanhamento do tratamento nas unidades de saúde no município. A IBCM ainda realiza rondas noturnas a fim de auxiliar profissionais do sexo que atuam nas ruas de Salvador. A iniciativa acontece a cada 15 dias, nas quintas-feiras, beneficiando de 60 a 100 profissionais do sexo por edição. A entidade reúne funcionários e voluntários para distribuir kits com itens para uma relação sexual segura, mas também lanches, bijuterias, batons, presentes para aniversariantes e até cestas básicas para algumas destas profissionais. 

“Nosso diferencial, a questão que marca o trabalho da instituição é o perfil do público. Trabalhamos com empobrecidos em extrema vulnerabilidade, que é diferente de falar de Aids na classe média e alta. O nosso papel é fazer com que eles tenham acesso à testagem, que nós fazemos. Quando o resultado é positivo, nós encaminhamos e acompanhamos até a unidade de saúde para fazer o teste comprobatório.  E, a partir disso, acompanhar e garantir que a pessoa realize o tratamento", explica o sacerdote.

"Ainda assim, os medicamentos ofertados pela rede pública não enchem barriga, a gente garante a alimentação com a entrega de cestas básicas. Hoje são mais de 475 cestas básicas que são distribuídas às famílias vulneráveis vivendo com o HIV. Muitas vezes, a pessoa foi diagnosticada com o HIV, tem a medicação, mas vive em situação de rua. Atuamos na busca por instalações dessas pessoas em casas de apoio. Também temos creche para crianças de 0 a 5 anos, fazemos acompanhamento das gestantes para que não ocorra a transmissão vertical, oferecemos apoio aos jovens na volta aos estudos e inserção no mercado de trabalho”, conta. 

Padre Alfredo Doria atua como gerente administrativo na IBCM
Padre Alfredo Doria atua como gerente administrativo na IBCM |  Foto: Joá Souza | Ag. A TARDE
  

Ainda segundo o padre e gerente administrativo da instituição, a redução dos casos de HIV e Aids depende de políticas voltadas ao combate da pobreza no estado. Entre 2020 e 2021, a população em situação de pobreza em Salvador cresceu 44,2%, ou 284 mil pessoas, o maior aumento absoluto entre as capitais do Brasil, de acordo com o Censo 2022 do IBGE.

"É fundamental a gente vencer essa situação de fome e miserabilidade. Isso é muito grave porque imagine que as pessoas nesse estado não tem dinheiro para pagar o transporte para pegar o seu medicamento. O país é excelência em tratamento, prevenção, mas tem essa pobreza material que se desdobra em várias formas. A pessoa pensa que já está naquela situação difícil porque me interessa fazer tratamento?", destaca.

A instituição é mantida através de colaboração, arrecadando fundos e produtos através de doações. Para fazer uma contribuição basta acessar as informações no site.

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