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SAÚDE MENTAL

Negro, pobre e baiano: Quem foi o psiquiatra que deu nome a hospital fundado há 150 anos

Conheça Juliano Moreira, o médico psiquiatra que desmistificou estigmas e preconceitos promovendo humanização

Por Vagner Ferreira

08/08/2024 - 13:41 h
Fachada do Hospital Juliano Moreira no Cabula
Fachada do Hospital Juliano Moreira no Cabula -

O Hospital Juliano Moreira (HJM) está longe de ser um dos principais pontos de interesse da cidade de Salvador. Mas, provavelmente, sua existência é conhecida por grande parte dos soteropolitanos - mesmo que de forma indireta e/ou estereotipada. Este centro de saúde mental e psíquica está localizado atualmente no bairro de Narandiba, na região do Cabula, e completou, em Junho de 2024, 150 anos de fundação e história.

Ao longo dos anos, a instituição tem se dedicado a desmistificar estigmas associados à psiquiatria, tais como os aspectos de transtornos mentais e a relação humanizada entre médico e paciente, levando o legado de seu mestre por anos. Entreatnto, é importante ressaltar, antes de tudo, quem foi Juliano Moreira, o psiquiatra, negro, pobre e baiano, que deu origem ao nome do hospital e que revolucionou a história da psiquiatria com estudos de repercussão internacional.

Juliano Moreira

Nascido em Salvador, no dia 6 de janeiro de 1872, o médico Juliano Moreira era filho de Galdina Joaquina do Amaral - que trabalhava para o Barão de Itapuã, que também era médico - e do português Manoel do Carmo Moreira Junior - funcionário público. Ele foi um jovem à frente do seu tempo, ingressando na faculdade de medicina em 1886, aos 14 anos de idade.

“Ele tinha como padrinho o Barão de Itapoan, de quem a mãe dele era empregada doméstica. Sua brilhante carreira de estudante levou o Barão a ‘quebrar lanças’ para queimar etapas no ensino do menino, a ponto de facilitar seu ingresso na faculdade de medicina da Bahia aos 14 anos e sua graduação aos 18 anos como um dos melhores alunos da sua turma”, descreve William Dunningham, Médico Especialista em Psiquiatria e um dos fundadores do Programa de Residência Médica do HJM, em 1983, ficando como coordenador até 2019, quando se aposentou.

Após 5 anos de formado, Juliano Moreira se tornou professor de psiquiatria na Faculdade de Medicina da Bahia da Ufba e foi reconhecido como fundador da disciplina psiquiátrica no Brasil, segundo artigo do Brazilian Journal of Psychiatry. “Juliano foi um professor sem cátedra mas, como psiquiatra culto, fez do hospital nacional de alienados o principal centro formador de psiquiatras do início do século XX, superando com folga o ensino da Universidade do Brasil (Atual UFRJ). Foi ele o mais importante psiquiatra do Brasil no primeiro terço do século passado”, prossegue Dunningham, que é Membro Titular da Academia de Medicina da Bahia.

“Ele é sinônimo de genialidade e superação. Um jovem negro, pobre, que consegue entrar para a Faculdade de Medicina da Bahia, da Ufba, aos 14 anos de idade, e que supera todas as dificuldades enfrentadas à época. no final do século 19 e início do século 20”, descreve o médico psiquiatra, Antônio Freire, antigo Diretor Geral do HJM.

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Vivendo uma época em que o racismo era tratado como ciência, Juliano Moreira ia na contramão ao acreditar que a pobreza, e não a raça, era um fator determinante para o adoecimento mental. Ele reconhecia, contudo, que entre as pessoas mais pobres, a maioria era negra.

“Ele sofreu, obviamente, muitos preconceitos, e conseguia demonstrar que as doenças psiquiátricas não estavam relacionadas à raça, à cor, porque àquela época haviam os que defendiam que a raça negra estava mais predisposta às doenças psiquiátricas. E ele demonstra que essa hipótese não é verdadeira”, continua Freire, que é atual coordenador da Residência Médica do Hospital.

150 anos do Hospital

Originalmente chamado Asylo São Jorge de Deus, o hospital foi fundado em 24 de jJnho de 1874 na chácara Boa Vista, no bairro de Brotas. Devido a denúncias de violências, a instituição tornou-se pública em maio de 1922, mudando seu nome para Hospício São João de Deus. Três anos depois, o nome ‘hospício' foi abolido e, em 1925, passou a se chamar Hospital São João de Deus.

No entanto, somente em agosto de 1936 que a instituição adotou o nome atual, ‘Hospital Juliano Moreira’, uma decisão tomada pelo Governo da Bahia da época, após o falecimento do Professor Juliano Moreira em 1933, em Petrópolis, depois de ser internado para tratamento de tuberculose. Nos anos seguintes, o hospital passou por reformas e melhorias em sua estrutura, em seus serviços e no seu funcionamento. Anos depois, em 18 de março de 1982, foi inaugurada a nova sede do HJM, onde perdura até os dias de hoje.

“O Asilo São Jorge de Deus, que passou a se chamar Juliano Moreira, foi inaugurado em 1874, na Boa Vista de Brotas, numa chácara que fora propriedade do pai do poeta Castro Alves, e seguiu o modelo dos manicômios. Mesmo com a Revolução Psicofarmacológica do anos 50, os hospitais públicos chegaram aos anos 80 degradados, porque abrigava doentes das camadas socioeconômicas inferiores. Essa realidade começou a se modificar com a luta dos setores progressistas da sociedade civil em prol da humanização desses hospitais ao qual se sucedeu o movimento antimanicomial”, recorda Dunningham.

Devido a inquietação e aos esforços de Juliano Moreira, uma lei federal foi sancionada para assegurar assistência médica e legal aos pacientes psiquiátricos, conforme destacado pela Academia Brasileira de Ciências. Além disso, ele exerceu a presidência da Academia, e teve um papel fundamental na fundação da Sociedade Brasileira de Psiquiatria, Neurologia e Medicina Legal.

“Juliano humanizou o hospital, tirou as algemas, tirou as grades, ficava junto à porta e recebia as pessoas na relação de humanização. Ele separou as crianças dos adultos que sofriam molestações e eram abusadas, teve estudos incríveis sobre a paranóia e pensou na ideia da colônia agrícola para dar uma atividade de emprego, fazendo assim a laboterapia, que impressionou Albert Einstein quando visitou o hospital”, diz o professor titular da UFBA e biógrafo de Juliano Moreira, Ronaldo Ribeiro Jacobina. ”Ele foi um revolucionário”, define.

O psiquiatra Antônio Freire define Juliano Moreira como uma figura fundamental na psiquiatria contemporânea, pois mesmo durante anos, com sua abordagem pioneira e humanizada, continua a inspirar jovens psiquiatras e a moldar práticas atuais no tratamento de doenças mentais.

Ele traz para os jovens psiquiatras a importância da desmistificação dos conceitos, de demonstrar cientificamente as possibilidades e de testar as hipóteses, abandonando ideias pré-concebidas e os preconceitos. Ele colabora muito nesse aspecto de uma psiquiatria humanizada e mais preocupada com o outro, que vem em consonância com a psiquiatria moderna, que é a individualização do tratamento. Ele conseguiu quebrar preconceitos existentes do próprio paciente, de familiares, e conseguiu mostrar para as pessoas que se elas estão deprimidas, aquilo não é fraqueza, não é preguiça, aquilo é uma doença. Uma pessoa com um quadro depressivo também pode não ter força para realizar suas atividades normais

Antônio Freire - sobre inspiração para o seu ofício

Atual estrutura

O HJM conta com uma estrutura de emergência, funcionando de domingo a domingo, durante 24 horas, contando com serviços de triagem e acolhimento, com classificação de risco em psiquiatria. A internação possui 101 leitos distribuídos em quatro unidades de internação. Segundo dados disponibilizados pela direção do HJM, entre janeiro a julho de 2024, o hospital registrou uma média de 715 atendimentos na emergência, resultando em aproximadamente 119 internamentos para tratamento psiquiátrico, por apresentar quadros agudizados do transtorno mental, ao passo que, foram efetivados uma média de 119 altas.

Os pacientes podem ser tratados tanto em regime de internação integral, quanto de forma extra-hospitalar. Quando a doença está agudamente descompensada, a internação hospitalar é necessária, pois o Centro de Atenção Psicossocial (Caps) ou o ambulatório não conseguem atender ao quadro clínico. Essa necessidade ocorre em situações de alto risco de agressão a outros ou a si mesmo, exposição social grave, depredação de patrimônio ou incapacidade de autocuidado, como tomar medicações, manter a higiene pessoal e se alimentar adequadamente, sem apoio familiar ou de amigos.

Freire destaca que o hospital utiliza abordagens da psiquiatria moderna, focadas em ajudar o indivíduo a sair do estado de desorganização e incapacidade total de autocuidado, permitindo que ele possa, posteriormente, retomar sua vida fora do ambiente hospitalar. Segundo ele, o hospital tem avançado nos últimos anos devido a este quesito.

“Se pegarmos um recorte de 5 ou 6 anos, o espaço tinha quase 50 moradores, que estavam no hospital abandonados por suas famílias ou que não tinham nenhuma referência familiar, portadores de transtornos psiquiátricos graves, sem nenhum apoio, e que moravam lá há 10, 15 ou 20 anos”, explica o Doutor. “Conseguimos desinstitucionalizar isso e hoje contém exclusivamente os pacientes que estão em estado agudo. Os antigos, foram conduzidos para serviços de residência terapêutica, que são casas com 6 a 8 pacientes, onde esses indivíduos moram com outros ex-pacientes de instituições psiquiátricas. Assim, conseguimos que quase 50 pacientes deixassem o hospital e retomassem suas vidas fora do ambiente hospitalar”, prossegue Freire.

Além da emergência de internação psiquiátrica, o hospital oferece ambulatórios especializados - embora esteja fechado para novos atendimentos a anos -, disponível em diversas áreas: transtornos do humor, transtorno bipolar, transtornos de ansiedade e depressão, primeiro episódio psicótico, psicose na infância e adolescência, e psiquiatria geral. Sendo uma instituição pública estadual, o hospital dedica-se exclusivamente ao atendimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS), servindo não apenas a Salvador, mas toda a Bahia, e sendo uma referência na área de Saúde Mental no estado.

Sobre o trabalho humanizado, Ronaldo avalia: "Eu tenho visitado o HJM e posso observar que, agora, depois de tantos anos desonrando o nome e a memória de Juliano, ele vem merecendo o nome, porque a ideia do tratamento psiquiátrico é isso: um paciente psicótico num estado agudo, ele precisa de uma intervenção, sem dúvida. Mas assim que sair do estado agudo, ele deve retornar à sua família, ao seu lar, e fazer o tratamento ambulatorial regularmente”.

Já Freire destaca que o hospital é um grande vanguardista quando se trata de saúde mental. “Uma das inovações implementadas é o serviço de triagem e classificação de risco em saúde mental. Quando o paciente chega à emergência, ele faz sua ficha de atendimento e passa imediatamente pelo setor de triagem e acolhimento. Neste setor, os dados vitais do paciente são aferidos, incluindo pressão arterial, frequência respiratória, temperatura e saturação de oxigênio no sangue. Também é possível avaliar a glicemia capilar. Isso ajuda a determinar se o paciente tem uma doença psiquiátrica descompensada ou se há uma condição clínica contribuindo para os sintomas psiquiátricos”, Freire

Após a avaliação, o paciente é examinado para saber a gravidade do quadro psiquiátrico ou clínico. Com base nisso, o risco é classificado. Se o paciente for considerado de alto risco, ele precisa ser atendido imediatamente pela equipe médica, com uma marca vermelha no sistema indicando a urgência. Se o paciente apresentar sintomas menos graves, como insônia e preocupação com a descompensação da doença, ele recebe uma classificação de risco menor e é atendido assim que possível, sem necessidade de prioridade sobre casos mais graves.

Reflexo do seu legado

No mais, vale ressaltar que Juliano Moreira é uma figura importante entre os estudiosos negros da história do Brasil e deixou o seu legado na área da psiquiatria que perdura até os dias atuais. Seu trabalho pioneiro e suas contribuições científicas estabeleceram bases sólidas para o tratamento e a compreensão das doenças mentais no Brasil. Ele não apenas desafiou preconceitos raciais em sua época, mas também lutou contra a institucionalização e o tratamento desumano dos pacientes psiquiátricos.

“Embora ‘negro retinto’, graças ao seu saber, respeitabilidade, elegância, civilidade, bondade e contemporaneidade e o seu modo de ser, ele tinha livre acesso aos ambientes refinados do Brasil e de países do Exterior”, lembra Dunningham.

“Ele teve um impacto muito grande no mundo. Chegou a ser homenageado quase 10 vezes como presidente de congresso internacional, foi homenageado pelo mundo todo, recebeu a maior comenda do Japão, 'A Ordem do Tesouro Sagrado', da mão do imperador; foi homenageado por mais de cinco universidades alemãs, recebendo uma medalha em Hamburgo por todo esse trabalho. Ele dominava seis línguas vivas e o latim, escrevia em alemão, inglês e francês, com a maior facilidade, e isso fazia os seus textos circularem pelo mundo e ganhar esse prestígio que ele teve”, detalha Ronaldo.

Não conhecer a história de Juliano Moreira, pode ser ainda um reflexo do preconceito - do preconceito estrutural - presente no sistema educacional e informativo que, por muitos anos, gerou desigualdade e minimizou a importância de heróis negros em diversas áreas, assim como colaborou para a redução na visibilidade no seu reconhecimento público.

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